terça-feira, 5 de maio de 2020

Às vezes era bom que tu viesses, elegia de Eugénio de Andrade




Elegia

Às vezes era bom que tu viesses.
Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia
a harmonia
dos frutos e dos animais.

Maio trouxe cravos como outrora,
cravos morenos, como tu dizias,
mas cada hora
passa e não se demora
na tristeza das nossas alegrias.

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é maravilha,
um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste ritmo, o ardor,
ao partires um a um
os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:
setembro traz ainda
um fruto em cada mão.
Mas os homens, as aves e os ventos
já não bebem em ti a direção.

Eugénio de Andrade, Amantes sem dinheiro, 1950

___________

1 Elegia: poema de assunto triste ou de lamentação.

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- importância das referências temporais;

- valor simbólico dos elementos da natureza;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- descrição do estado de espírito do «eu».

 

Observação: Relativamente ao terceiro tópico, são exigidos dois aspetos formais e dois recursos estilísticos.

 

Explicitação de cenários de resposta

Importância das referências temporais

A importância das marcas de tempo é visível no poema, na medida em que:

- o uso de formas verbais no pretérito imperfeito do indicativo («era», «Falavas», «havia», «dizias» - vv. 1, 2, 3 e 7), no pretérito perfeito do indicativo («trouxe», «mudou», «passou», «quebraste» - vv. 6, 12, 15 e 18) e, também, no presente do indicativo («passa», «não se demora», «sabemos», «somos», «é», «não é», «não é», «Não estamos», «traz», «não bebem»-w. 9, 11, 13, 15, 16, 17, 21, 22 e 25), marca a oposição passado/presente como um dos tópicos centrais do texto;

- as referências de tempo, ao longo do poema («Às vezes», «Maio [...] outrora»; «cada hora», «Ainda», «agora», «já não», «já não», «juventude», «setembro [...] ainda», «já não» - w. 1, 6, 8, 11, 13, 16, 17, 20, 22 e 25). sublinham, de modo sistemático, a consciência do sujeito de que a sua relação com o «tu» se encontra em progressiva degradação, evidente num «agora» marcado pelo envelhecimento, desprovida de encantamento e de fulgor. (De facto, a «harmonia» e a «plenitude» associadas ao tempo passado estão circunscritas, no presente, apenas aos sinais residuais dessa relação-vv.11-15 e w. 22-23);

- …

 

Valor simbólico dos elementos da natureza

No poema, a natureza é representada pelos seguintes elementos: «frutos», «animais», «cravos», «ramos», «fruto», «as aves e os ventos» (w. 5, 6, 20, 23 e 24). Assim se configura, simbolicamente, a presença de alguns dos elementos primordiais: Terra («frutos», «animais», «ramos», «fruto») e Ar («as aves e os ventos»); note-se que também o Fogo (sugerido por «cravos morenos» e «ardor» - w. 7 e 18) e a Água («bebem» -v. 25) convergem nesta figuração simbólica.

Por outro lado, os elementos da natureza estabelecem, ainda, uma oposição simbólica entre:

- a natureza que se renova («Maio trouxe cravos como outrora» -v. 6) e a plenitude da vida, que já não se recupera;

- a paixão inicial e plena (associada à «harmonia», à floração primaveril dos «cravos» e a «Maio») e a situação de perda atual (representada pelos «ramos partidos» e pelo «fruto» de «setembro», já outonal, indiciando o fim de um ciclo).

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:

- personificação do tempo («Maio trouxe», «cada hora / passa e não se demora», «setembro traz ainda / um fruto em cada mão» - vv. 6, 8-9, 22-23), associando o amor aos temas da mudança e do ritmo cíclico das estações;

- metáforas / imagens («cravos morenos», «ao partires um a um / os ramos todos da tua juventude», «os homens, as aves e os ventos / já não bebem em ti a direção» - vv. 7, 19-20, 24-25), contribuindo para a representação da perda;

- antítese («na tristeza das nossas alegrias» - v. 10) ou formulações antitéticas («um novo gesto é igual ao que passou» -v. 15), salientando o carácter paradoxal das emoções;

- estruturas paralelísticas, marcando ora uma ligação entre o tempo passado e o presente («Como outrora, / [...]como tu dizias»; «somos agora mais lentos,/ mais amargos» - vv. 6-7, 13-14), ora a associação entre poesia e erotismo («Um verso já não é a maravilha, I um corpo já não é a plenitude» - w. 16-17);

- adjetivação («modos naturais», «cravos morenos», «mais lentos,/ mais amargos,/ um novo gesto é igual» - vv. 2, 7, 13-15), descrevendo a perceção disfórica da mudança;

- uso reiterado do advérbio de negação («não» - com cinco ocorrências), o qual, conjugado com outras expressões adverbiais e conjuncionais de valor contrastivo ou restritivo («Só», «já», «Mas»), acentua a tendência disfórica geral;

- recurso aos dois pontos (w. 2, 12 e 21), reforçando a intenção explicativa do discurso (de tom evocativo e intimista);

- …

 

Relativamente a aspetos formais, temos, por exemplo:

- composição constituída por cinco quintilhas;

- esquema rimático variado, com presença de rima Interpolada, emparelhada e cruzada, e ainda de versos brancos;

- grande diversidade métrica, com versos que variam entre três e doze silabas;

- …

Nota - Para a atribuição da cotação referente ao conteúdo deste tópico, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, sendo obrigatoriamente indicados dois recursos estilísticos e dois aspetos formais.

 

Descrição do estado de espírito do «eu»

O sujeito poético mostra-se:

- nostálgico, ao evocar um tempo de harmonia plena, associado ao «tu» e aos seus «modos», similares aos da natureza;

- amargamente consciente da perda do tempo edénico da relação, substituído por um tempo presente disfórico, ao inventariar os fatores que eliminaram a plenitude: a «tristeza» das próprias «alegrias», o passar inelutável de «cada hora», a adulteração das vozes e dos gestos, a rotina que toma «um novo gesto [...] igual ao que passou», a incapacidade de sentir a «maravilha» da poesia e a «plenitude» erótica, a perda da «juventude»;

- infeliz, ao realçar a sensação pessoal de perda, embora reconheça ainda os vestígios de uma relação que persiste (cf. 3.ª estrofe e vv. 21-23);

- lúcido, ao reconhecer a precariedade, a fragilidade do relacionamento, não se mostrando esperançoso, antes sugerindo que antevê a aproximação inevitável do fim (pois o «tu» deixou de ser o polo que irradia o fulgor necessário ao «eu»);

- …

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2003, 2.ª fase)

 

Eugénio de Andrade por Carlos Carneiro (1953)


Texto de apoio

Da obra Amantes sem dinheiro (1950), o poema “Elegia” é composto por cinco quintetos, de versos heterométricos, entre quatro e doze sílabas poéticas, sendo a maioria constituída por versos mais longos. Há algumas rimas emparelhadas, interpoladas (ABCCB/DEFFE), toantes e consoantes (havia/harmonia, plenitude/juventude).
Elegia é uma composição lírica por meio da qual se lamenta com profunda tristeza acontecimentos dolorosos; referindo-se sempre à temática melancólica. No texto em questão, o eu-lírico, num tom melancólico, recorda um tempo passado. A partir da segunda estrofe, a ideia de tristeza, gradativamente, ganha força. Esse sentimento articula-se à ideia de tempo que passa, reiterado pelos verbos, na sua maioria, no pretérito imperfeito e, no presente. Os substantivos que marcam as estações do ano “maio” e “setembro” e outros: hora, demora, agora, outrora também reforçam essa ideia da passagem temporal. Sob essa perspetiva, o poema se estrutura, retoricamente, em dois momentos distintos. Os sete primeiros versos remetem às lembranças passadas e significativas que relembram momentos de plenitude da vida: “Às vezes era bom que tu viesses/ Falavas de tudo com modos naturais: em ti havia/ a harmonia/ dos frutos e dos animais”. A ideia é reforçada pelos advérbios “às vezes” e “bom” e, reiterada pelos substantivos “harmonia” e “maio”, que por sua vez, remete à alegria, juventude da vida, à primavera que renova a natureza “cravos morenos”.
No entanto, a conjunção “mas” rompe com o passado harmônico. Do verso oitavo até o final do poema, o eu-lírico revela sua melancolia diante do tempo que passa. A rutura temática é reiterada pela introdução da adversativa (mas), e a mudança do tempo verbal. Assim, no segundo momento do texto, vislumbra-se um paradoxo que indica o conflito alegria/tristeza: “na tristeza das nossas alegrias”, mas o sentimento que se instala é a tristeza/melancolia, reforçada por adjetivos negativos intensificados por advérbios “mais lentos”, “mais amargos”, por paralelismos negativos “Um verso já não é a maravilha/ um corpo já não é a plenitude”.
A ideia de melancolia cresce, gradativamente, perante a construção linguística, que mostra mais um rompimento na sintaxe, na semântica e sonoridade do poema, com o verso “tu quebraste o ritmo, o ardor”. O tempo que passa é o responsável pela melancolia, uma vez que faz perder o “ardor”, os “ramos da juventude”, com a chegada da velhice, também anunciada pelo outono que chega (o mês de setembro). Nos versos finais, há uma oscilação entre a esperança e a melancolia: o outono ainda traz a vida simbolizada “um fruto em cada mão”. Porém, nos dois últimos versos, a adversativa “mas” em consonância à negativa “não” volta a reforçar a angústia do eu-lírico (metáfora de sua obra) diante da nova realidade da vida: “Mas os homens, as aves, e os ventos /já não bebem em ti a direção”.
A esperança que passa à melancolia e à angústia pode ser reiterada, no plano sonoro, pela aliteração das sibilantes e assonância das vogais “o” e “i”, lembrando um sussurro de lamento. Assim, a musicalidade se configura, nesse poema, a partir do plano fono-semântico, uma vez que a ideia de música inicia-se já com o título “Elegia”, ressaltada por outros vocábulos: cantar, voz e ritmo, e reverberada pelas repetições sonoras: rimas, aliterações, períodos longos que evidenciam um ritmo monótono e contínuo, como a própria elegia lembra num tom de desabafo.
Nota-se que o uso do pronome “tu” é, na verdade, um recurso estilístico usado pelo poeta (como fizera em outros poemas), que revela a proposta de um “voltar-se para si”, numa atitude reflexiva.
Os quatro elementos da natureza são constantes na poesia de Eugênio de Andrade, no “retrato” que faz do homem e da vida. É nesse sentido que em “Elegia” presentificam-se os elementos: a terra, simbolizada pelos vocábulos frutos, animais, cravos, ramos e mão; o ar, nas metáforas “aves” e “ventos”; o fogo, revelado pelo substantivo “ardor” e a água, subentendida pelo verbo “bebem”. A presença dos elementos na poesia reforça a ideia da busca da comunhão do homem com a natureza e seu ciclo (o tempo passa). A vida é revelada pelo poder da palavra poética eugeniana.
Observa-se que toda a construção poemática revela a melancolia do eu-lírico, mas em relação a quê? A resposta pauta-se em algumas leituras possíveis: a melancolia cantada pode ser em relação à consciência do tempo que passa e com ele, o homem envelhece, restando apenas os momentos lembrados. Ou, num plano mais metafórico, pode-se entender que a angústia do eu lírico advém da consciência de que como a vida e o homem, a palavra também passa; “Um verso já não é a maravilha/ Mas os homens, as aves e os vento/ já não bebem em ti a direção”.
No que diz respeito ao efeito de sentido causado pela leitura e pelas estruturas textuais, a sensação de desalento vislumbrada pelo leitor na escrita configura-se desde o título, confirmando-se na adjetivação expressiva, na sonoridade das vogais fechadas e no poder verbovisual das palavras.

Amanda Mantovani, A palavra-imagem em poemas de Eugênio de andrade: Uma leitura dos elementos míticos: o fogo, a água, o Ar e a terra como produção de sentido. Paraná, Universidade Estadual de Maringá - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2006

 

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CARREIRO, José. “Às vezes era bom que tu viesses, elegia de Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 05-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/ainda-sabemos-cantar.html


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