BACH: VARIAÇÕES GOLDBERG
A
música é só música, eu sei. Não há
outros
termos em que falar dela a não ser que
ela
mesma seja menos que si mesma. Mas
o
caso é que falar de música em tais termos
é
como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo
ou sem sequer havê-lo visto uma única vez.
Vejamo-lo,
bem si, calados, vendo. E se a música
for
música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum
silêncio recolhido nos persiste além
de
alguns minutos. E não dura na memória com
silêncio.
Ou se dura, esse silêncio cala
a
própria música que adora. Porque a música
não
é silêncio mas silêncio que
anuncia
ou prenuncia o som e o ritmo.
Se
os sons, porém, não são de devaneio,
e
sim a inteligência que no abstracto busca
ad
infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se
tudo se organiza como a variada imagem
de
uma ideia despojada de sentido;
se
tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que
os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem
necessários; se tudo repercute como
em
cânones cada vez mais complexos que não desenvol-
vem
um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se
tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas
em volutas brancas e douradas cujos
recantos
de sombra são um trompe-l’œil
para
que elas mais sejam em paredes curvas ;
se
uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater
nas teclas em cascatas de ordem;
e
se tudo existiu na música para que tal triunfo
e
dele descende tudo o que de arquitectura
possa
existir em notas sem sentido – COMO
não
proclamar que essa grandeza imensa
não
se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que
não haja segredo em nada que se faça
a
não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é
como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos
ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior
do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda
que volte ao tema inicial, repete
o
que foi proposto como tema para
se
transformar no tempo que contém. Quando, no fim,
aquele
tema torna não é para encerrar
num
círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas
para colocar-nos ante a lucidez
de
que não há regresso após tanta invenção.
Nem
a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não
porque o tempo passe ou porque a cúpula se erga,
para
sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o
virtual de um pensamento, se tornou ali
uma
evidência: se tornou concreto.
Um
concreto de coisas exteriores – e o espanto é esse –
igual
ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.
Será
que alguma vez, senão aqui,
aconteceu
tamanha suspensão da realidade a ponto
de
real e virtual serem idênticos, e de nós
não
sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de
nós
termos sido música somente.
Jorge de Sena, 9 de janeiro
de 1966.
Goldberg Variations, Virginia Naughton |
CARREIRO, José. “Bach:
Variações Goldberg”. Portugal, Folha de Poesia, 11-08-2020. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/bach-variacoes-goldberg.html
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