NADA
DISTO TEM A MÍNIMA IMPORTÂNCIA
É
novembro e sinto-me como o proverbial
canário
de uma mina
de
carvão.
As
folhas das árvores
são
lentamente corroídas pela chuva
ácida,
pelo monóxido.
O
ar da tarde pesa
e
sopesa a minha cabeça
como
uma longa
e
viscosa ressaca.
Nada
disto tem
a
mínima
importância.
Acendo
um cigarro e peço
ao
barman outra
San
Miguel.
A
noite
promete
ser
muito
longa.
A
VERDADE, FINALMENTE
Todo
o dia
a
querer escrever este poema
e
agora não recordo
o
que supostamente
devia
dizer.
Os
bons escritores -
nunca é demais
repeti-lo
- são aqueles
que
sabem sempre, exatamente,
quando
não devem escrever.
Mas
esse
evidentemente
não
é o meu caso.
AMOR,
LOUCO
Traz-me
novas
ofertas e presentes todos os dias,
cuidados,
lembranças, ninharias
que
com grande esmero conservo
no
baú do coração.
É
tudo tão temo
e
patético ao mesmo tempo.
Como
impedir-lhe
estas
pequenas alegrias, estes caprichos?
Como
dizer-lhe que na verdade não preciso
deles,
que não lhes darei uso
jamais?
Que nem ela é um
Rei Mago
nem
eu sou Jesus Cristo
nem
estamos em Belém?
DEMOCRACIA
Outra
maldita tarde
de
domingo, uma dessas
tardes
que um dia escolherei
para
me pendurar
do
último prego flamejante
da
minha angústia.
Pela
rua
famílias
com crianças,
pais
e mães
de
faces rosadas, satisfeitos
pelo
recém-cumprido
dever
eleitoral;
gente
debruçada sobre rádios
que
vomitam números, percentagens
em
bases de dados.
Cordeiros
a caminho do matadouro
dando
a escolher a arma
ao
magarefe.
AS
DUAS RAMEIRAS
Todas
as mulheres de que não me aproveitei
visitam
os meus melhores sonhos,
os
meus piores pesadelos.
Levanto-me
de pau feito
todas
as manhãs.
Tomo
ginseng e vitaminas
A,
B, C, D e E.
Depois
fumo um cigarro
e
sento-me ao computador
a
teclar poemas como este
à
espera das duas rameiras mais infames
da
terra: a Fama e a Morte.
Só
me resta a esperança
de
que não venham, as puras, as duas
de
mão dada.
DESCULPAS
DE MAU PAGADOR
O
aborrecimento
pode
matar
um
homem
e
para esse problema
existem
diversas soluções:
dinheiro
mulheres
álcool
drogas
arte...;
nenhuma
delas
ao
meu alcance,
como
se pode comprovar.
Por
isso
precisamente
estou
aqui.
Qual
é a
tua
desculpa?
A
POESIA
A
poesia de uma mãe que grita da varanda
chamando
os filhos para a mesa.
A
poesia de um rádio que toca do outro lado
de
uma janela entreaberta.
A
poesia de um mendigo curvado à frente de um chapéu
no
passeio, à espera de esmola.
A
poesia de um charco quase seco entre as pedras.
A
poesia de uma mulher que se levanta da cama
e
procura às apalpadelas o sutiã na penumbra.
A
poesia de um cão que se espreguiça
bocejando
numa esteira.
A
poesia de um televisor silenciado
enquanto
se ouve música e os corpos se afastam.
A
poesia de uma rua a meio da tarde
em
cujo extremo há uma fresta de luz que se projeta
sobre
o mar, atravessada pelos tombos de um bêbado.
A
poesia de uma voz ao telefone.
A
poesia de um autocarro que sobe a avenida
cheio
de gente ensimesmada.
A
poesia de um velho e desdentado vagabundo
emborcando
um pacote de vinho na escadaria de uma igreja.
A
poesia de uma mancha de óleo na calçada.
A
poesia de um gordo que se agacha
com
um cigarro entre os lábios
para
atar os sapatos ao fundo do balcão.
A
poesia de uma velha que retoca a maquilhagem
ao
espelho.
A
poesia de umas mãos que quase não são as minhas
sondando
(seduzindo?) o teclado…
Toda
esta poesia que nunca cabe num poema.
O
AMOR, SUPONHO
Tenho
pensado escrever
um
poema de amor
dedicado
à minha mulher
mas
a verdade é que não sei
porquê,
ponho-me
incrivelmente
triste e os poemas
de
amor nunca foram coisa que me corresse
muito
bem - ou quem sabe se nunca
os
tentei muito a sério -;
suponho
que o amor
deve
ser
como
esses raríssimos instantes
de
felicidade:
se
por um momento
os
tens
eu
diria
que
não convém
perderes
tempo
com
poemas.
ARTIGO
NÃO SUJEITO À LEGISLAÇÃO EM VIGOR
Os
poemas?
Alguns
funcionam,
outros
não.
Se
o que queres
é
uma garantia,
então
compra um televisor.
POEMA
ENCONTRADO NO CESTO DE PAPÉIS
Conheço
todos os argumentos.
Conheço
todos os contra-argumentos.
Conheço
a futilidade da vida.
Conheço
a fome, a sede, a ânsia.
A
alegria.
O
amor? Também.
O
desamor. A sorte e o azar.
Tropeço
todos os dias na mesma pedra.
Tropeço
todos os dias na mesma pedra.
Tropeço
todos os dias na mesma pedra.
E
no fim já nem sabemos
se
havia alguma pedra ou se tropeçamos
por
hábito, por amor à arte,
porque
não sabemos fazer mais nada.
Porque
o homem é um animal que tropeça.
Porque
não sabemos fazer mais nada.
Roger Wolfe, Fazer o
Trabalho Sujo.
Seleção, tradução e prólogo de Luís Pedroso.
Língua Morta, 2020
Roger Wolfe nasceu em Westerham,
Inglaterra, em 1962, mas vive em Espanha desde a infância, tendo residido em
várias cidades – atualmente, em Madrid. É um poeta que enquadram no estilo do
Realismo Sujo, embora tal designação possa ser um pouco redutora. A sua poesia
utiliza uma linguagem direta, toma-nos de assalto, alternando entre descargas
de revolta, a observação das falhas e fragilidades humanas e momentos de
contemplação. Alternando entre a raiva e, até, momentos de ternura. Encontramos
nela por vezes um humor ácido que frequentemente se volta contra o próprio
poeta. Estreou-se em 1986 com Diecisiete poemas, contando já doze livros
inéditos de poesia, mas também ensaio e prosa, num percurso que é dos mais
importantes contemporâneos da poesia espanhola.
Luís Pedroso
https://escamandro.wordpress.com/2020/02/04/roger-wolfe-1962-por-luis-pedroso/
CARREIRO, José. “Roger
Wolfe”. Portugal, Folha de Poesia, 28-08-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/roger-wolfe.html
Sem comentários:
Enviar um comentário