Eugénio de Andrade - desenho de Dordio Gomes |
SONETO
Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exato, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;
amor que me destrói e destruiu
a fria arquitetura desta tarde
– só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.
Só a ti canto que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;
só a ti canto, que não há desastre
de onde não posso ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.
Eugénio de Andrade, Os amantes
sem dinheiro, 1950
O título do poema constitui, em
síntese, a decisão do sujeito lírico em centrar-se no que considera
estruturante e permanente na sua vida. E o que é tido como essencial é a pulsão
para a poesia.
Quanto à circunstância que inspirou o
sujeito lírico (o "Amor desta tarde" e "a fria arquitetura desta
tarde") é matéria para o poema. Portanto, o soneto é a casa poética
escolhida à posteriori pelo eu lírico, uma arquitetura propositadamente
rígida para conter aquilo que "queima os olhos" (v. 10).
Então, o que versa o soneto? Sobre a
ardência do sujeito lírico que ainda perdura após um encontro amoroso (o
"fogo, onde eu próprio me queimei") e, concomitantemente, sobre a
pulsão para o "canto", única "forma de ser" e de se
encontrar, insistentemente repetida nas três estrofes finais (vv. 7, 9 e 12).
Por isso, o título do poema poderia conter a explicitação que consta no verso
8: "Soneto" - "forma de ser e de encontrar-me", sendo que
"Soneto" é matéria prima (na forma e no conteúdo) trabalhada para o
produto final.
José Carreiro, “Soneto: forma de ser e de encontrar-me (Eugénio de
Andrade)”, Folha de Poesia, 2021-01-30. <https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/soneto-forma-de-ser-e-de-encontrar-me.html>
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
“A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
- “O soneto é uma casa poética”, José Carreiro, Folha de Poesia, 2009-05-04. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2009/05/o-soneto-e-uma-casa-poetica.html
CARREIRO, José. “Soneto:
forma de ser e de encontrar-me (Eugénio de Andrade)”. Portugal, Folha de
Poesia, 30-01-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/soneto-forma-de-ser-e-de-encontrar-me.html
Sem comentários:
Enviar um comentário