«A
maior parte dos poetas que nos podem deliciar com o seu trabalho eram pessoas
que estavam constantemente muito cientes das suas vulnerabilidades e das suas
fraquezas e daquilo que lhes corria mal na vida, e que foram capazes de
transformar essas experiências, por exemplo de tristeza, em magníficas obras
que nos deleitam. E isso é muito belo: até mesmo um aspeto como a tristeza pode
ser gerador de respostas extremamente inteligentes e produtivas. A tristeza
pode ser a fonte de uma resposta tão magnífica que pode não só remover a
tristeza como levar à produção de qualquer coisa de extraordinariamente bom e
rico tanto para nós próprios como para os outros.» António Damásio.
No
seu mais recente livro, Sentir & Saber, explica passo a passo a
formação da consciência. E dá exemplos que vão desde as plantas às máquinas que
sentem.
António Damásio tem dedicado a sua vida a estudar a anatomia do
cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência. A publicação, há 25
anos, de O Erro de Descartes, em que
denunciava a sobrevalorização das capacidades cognitivas puras, em detrimento
das capacidades afetivas, revolucionou a forma como encaramos a consciência e o
conhecimento. Agora, em Sentir &_Saber (ed.
Temas e Debates/Círculo de Leitores), regressa a esse tema, explicando passo a
passo a história da vida, desde o aparecimento dos primeiros organismos há
quatro mil milhões de anos até aos processos cognitivos complexos que têm lugar
no nosso corpo. Conversámos com o neurocientista, galardoado com o Prémio
Pessoa (em conjunto com a mulher, Hanna) e com o Prémio Príncipe das Astúrias
de Investigação Científica e Técnica, à distância, através do skype.
Ainda é cedo em Los Angeles, são dez e meia da
manhã. O seu dia de trabalho começa com algum ritual particular?
Não. Começa quando tem de
começar. Às vezes, quando tenho ligações com a Europa, começa às seis ou sete
da manhã. E não me deito cedo… Mas depende.
Los Angeles é uma cidade que a maioria de nós
associa ao mundo do espetáculo e do prazer, e também à criação artística – mas
não tanto ao conhecimento. Isto corresponde à realidade ou é apenas uma ideia
feita?
É uma ideia feita, e digo-lhe
mais: é uma ideia mal feita. [risos] Los Angeles é uma cidade que tem tudo. É
um mundo onde existem talvez as mais notáveis universidades de qualquer parte.
Tem três grandes universidades internacionais. Uma é a CalTech, o California
Institute of Technology, que está ao nível do MIT. Tem também a University of
Southern California, USC, que é a minha universidade e é a mais antiga da
Califórnia [fundada em 1880]. E tem a UCLA, que faz parte do grande sistema das
universidades da Califórnia. Portanto, pelo contrário, aquilo que é mais
característico de Los Angeles são grandes instituições de ciência e de
humanidades. É claro que aquilo que domina as notícias são as coisas que têm a
ver com Hollywood, e Hollywood também está aqui.
E são mundos separados ou tocam-se?
Separados, mas tocam-se
nalguns aspetos. Há tanto a grande tecnologia, como o mundo das artes e o mundo
das humanidades. Tudo isso está aqui presente. Por exemplo, os grandes museus.
Tem o Getty mas também o LACMA, e variadíssimos outros, museus grandes e
pequenos, que têm coleções de arte maravilhosas. São Francisco é mais
conhecida, porque é particularmente bonita – não é que Los Angeles seja feio –
mas é uma cidade mais pequena que Lisboa, que é uma noção que as pessoas não
têm, enquanto Los Angeles é do tamanho de Portugal, tem dez milhões de
habitantes.
Gostava que me falasse muito sucintamente sobre
as suas aulas. Quem são os seus alunos? São jovens ou investigadores já com um
percurso sólido?
Neste momento são
praticamente todos investigadores. Eu sou diretor do Brain and Creativity
Institute, que é um instituto de investigação científica, e que tem ligado a
ele um centro de criação artística com um auditório para música, teatro e
cinema. As duas coisas fundem-se. Mas as pessoas que eu treino, que você
descreve como os meus alunos…
Se calhar não é a designação mais exata…
São graduate students [doutorandos] ou postdoc. São pessoas que estão já numa carreira
científica e que estão a especializar-se em diversos aspetos, seja das
neurociências, das ciências cognitivas ou da filosofia. Esse ensino não
acontece em salas de aula, no sentido corrente, mas sim em gabinetes de
laboratórios, onde geralmente não estão 200 pessoas nem sequer uma centena, mas
em grupos de meia dúzia de pessoas. Quando há aquilo a que chamamos laboratory meetings podem estar trinta ou
quarenta pessoas, que é a capacidade máxima do laboratório.
E tratam de questões mais técnicas, relacionadas
por exemplo com a anatomia do cérebro, ou de questões mais filosóficas?
Tudo. Claro que há o aspeto
fundamental que tem a ver com aspetos da neurobiologia, que vão desde
descrições neuroanatómicas de estruturas do sistema nervoso a estudos do
sistema biológico. E tem também um certo pendor filosófico, porque há pessoas
que não estão propriamente a trabalhar em aspetos técnicos da neurobiologia,
mas sim em aspetos da reflexão sobre os dados que vamos recolhendo.
Ouvimos falar muito do cérebro, mas o seu livro
chama-nos a atenção para o sistema nervoso. Como poderíamos definir o sistema
nervoso? É uma espécie de correia de transmissão entre a matéria e as
sensações, entre o corpo e a mente?
Para responder à sua pergunta
vamos primeiro fazer uma distinção entre sistema nervoso e cérebro. Quando se
fala de cérebro estamos a falar de qualquer coisa relativamente bem localizada,
aquilo que está dentro da sua caixa craniana e que decorre da caixa craniana em
relação ao tronco cerebral e à medula espinal. Isso é aquilo a que se chama
cérebro no falar corrente. E tem muito a ver com outra definição técnica, que é
o sistema nervoso central. Depois temos todo um outro sistema nervoso – que
está ligado a esse, evidentemente – que é o sistema nervoso periférico. E esse
é feito de todos os prolongamentos nervosos que saem do sistema nervoso
central, são as fibras nervosas que vêm do sistema nervoso central para todas
as partes do corpo e vão de toda a periferia de todas as partes do corpo a
caminho do sistema nervoso central. Existe portanto uma interligação completa
entre o corpo – em todas as suas dimensões, tanto no aspeto exterior como no
aspeto interior – e o sistema nervoso central. Essa interligação é feita de
duas maneiras: através daquilo a que se pode chamar nervos; e através de
moléculas químicas, umas que partem do sistema nervoso a caminho de diversas
partes do corpo e outras que estão a estimular o sistema nervoso propriamente
dito.
Neste livro descreve a evolução do detetar para
o sentir e do sentir para o saber. Até aqui, esta evolução tem sido sempre no
sentido de produzir seres cada vez mais ricos, mais completos e complexos. Mas
vamos continuar a evoluir indefinidamente ou poderá haver um momento em que
este processo se inverte e começa a tender à simplificação?
Essa é uma pergunta
interessante mas a que não temos maneira de responder. O que podemos verificar
é que, até hoje, se deu uma evolução. Os organismos vivos começaram de uma
forma relativamente simples – eu gosto sempre de dizer que é simples mas não é,
é simples quando compara com organismos muito complexos como você ou eu, mas já
tem uma complexidade extraordinária. Por outras palavras, não é possível ser
vivo sem ter uma grande complexidade, mas é aceitável que se fale de organismos
(como as bactérias) como organismos simples em comparação connosco. Até hoje
tem havido uma complexificação constante, que começa com organismos
relativamente simples e unicelulares, e vai até organismos como nós,
pluricelulares e extremamente complexos. Mas não temos maneira de saber se
continuará a ser sempre assim.
Um fotógrafo da National Geographic com quem
falei uma vez dizia-me que até as moscas têm de ser inteligentes para serem tão
bem-sucedidas como espécie ao longo de tantos milénios. As moscas são mesmo
inteligentes ou é abusivo falar de inteligência neste caso?
Não é abusivo de todo. Neste
livro eu falo de competências implícitas e de inteligência implícita. Uma das
ideias fundamentais é que quanto mais estudamos a biologia, mais verificamos que
há uma capacidade que não se pode descrever de outra maneira que não
inteligência. É essa capacidade que permite resolver problemas e ajustar o
comportamento de um ser vivo a esses problemas de forma a permitir a
continuação da vida. E essa é a definição fundamental de inteligência: você faz
um ato inteligente quando esse ato o ajuda a continuar a sua vida, o ajuda a
sobreviver e a sobreviver com qualidade de vida. Isso é uma coisa que os seres
vivos, desde os simples aos complexos, têm vindo a fazer ao longo da história
da vida. Aquilo que acontece é que há seres vivos em que a inteligência é
conhecida pelo próprio ser vivo – como nós, que temos a consciência do problema
e de o tentar resolver mais ou menos inteligentemente – e há seres vivos à
nossa volta que não têm essa capacidade. A maior parte dos seres vivos, tanto
na história da vida como os que existem hoje na Terra, não tem essa capacidade
de conhecer a sua própria inteligência.
Mas também há situações em que nós próprios
podemos perder essa capacidade. Enquanto estava a preparar esta entrevista
lembrei-me de um artigo publicado na altura da morte do escritor Gabriel García
Marquez. O autor do artigo relatava um último encontro entre o escritor e um
outro amigo, à mesa de um café. Na altura, García Márquez, que já estava
diminuído e demenciado, disse-lhe assim: ‘Não sei quem tu és, mas sei que gosto
muito de ti’. Ele já não conseguia reconhecer aquela pessoa mas ainda tinha
ficado lá qualquer coisa.
Tinha ficado lá qualquer
coisa que é extremamente importante. Aquilo que você está a descrever é a
dissociação entre capacidades puramente cognitivas e capacidades afetivas. A
mensagem principal do meu trabalho – e do livro que você aí tem – é a de que as
capacidades afetivas têm sido sistematicamente menosprezadas pela nossa
cultura, pelo melhor da nossa cultura, não apenas hoje, mas na cultura
filosófica tradicional. Mas essas capacidades afetivas são fundamentais em
muitos aspetos. São fundamentais porque são as primeiras. Em relação a
criaturas como nós são a foundation, os
alicerces da nossa mente, daquilo que é o nosso ser. E é sobre essas
capacidades que se vão colocar as capacidades cognitivas. Gostava muito do
García Márquez mas nunca tinha ouvido essa frase – e acho que é ótima. Aquilo
que se estava a passar era que ele estava a olhar para uma pessoa e não
conseguia recordar-se em pormenor de quem era essa pessoa. No entanto, a
recordação que ele tinha do afeto ligado a essa pessoa mantinha-se. Ou, em
alternativa, mesmo que ele não tivesse uma resposta relembrada do afeto que
tinha por aquela pessoa, tinha uma reação emotiva a essa pessoa que era
positiva. É uma situação extremamente complexa, muito bela. Essa distinção
entre o que é cognitivo e o que é afetivo é absolutamente central para compreender
a humanidade e é central para o meu trabalho.
Há pouco, quando disse que menosprezamos as
capacidades afetivas, pensei no seu livro O Erro de Descartes, e na famosa
frase ‘Penso, logo existo’.
Foi o meu primeiro livro não
puramente científico mas também com um pendor filosófico. Tem 25 anos. Esse
Penso, logo existo é profundamente erróneo, porque vem de uma ideia de que
aquilo que é o ser humano e aquilo que é mais valorizável no ser humano é o
pensamento, mas um pensamento concebido no nível cognitivo puro, aquilo que tem
que ver com os dados objetivos à nossa volta. Neste momento estou a vê-lo no
ecrã, estou a olhar para a minha secretária, posso olhar para o exterior
através das janelas e ver as colinas de Santa Monica, as montanhas, o Museu
Getty, que está aqui ao meu lado. Tudo isso são aspetos que podem ser descritos
através da nossa exterocepção, aspetos que podem ser descritos através daquilo
que vejo, que ouço, que toco. Mas o fundamental, o alicerce de tudo isto, é
aquilo que tem a ver com o nosso próprio corpo, com a vida que está a
manifestar-se no nosso próprio corpo, e cujo estado – bom ou mau – é
transmitido através do sentimento. Aquilo que é o seu alicerce, e o meu, é o
facto de termos vida, e essa vida pode estar a correr bem fisiologicamente ou
não. Se você tiver uma gripe, ou covid, tem uma alteração dessa fisiologia e guess what? Vai sentir-se mal. E sentir-se
mal é não ter o sentimento de que o corpo está a funcionar dentro dos
parâmetros da homeostasia. E esse aspeto fundamental dos seres vivos em geral,
desde que tenham sistema nervoso, é constantemente ignorado – a palavra mais
justa talvez seja menosprezado. Infelizmente é essa a maneira como grande parte
do mundo funciona. O exemplo mais tocante, e chocante, é a maneira como a inteligência
artificial tem funcionado. A inteligência artificial é um exemplo claro do que
é uma inteligência sem ligação com a vida, sem ligação com o ser humano. O
último dos mini-capítulos do livro está baseado num artigo que escrevi há pouco
mais de um ano para a Nature, e que é exatamente
sobre feeling machines, máquinas que
sentem, sobre a ideia de que a inteligência artificial, até hoje, tem pecado
por não prestar atenção à realidade da vida. É um aspeto muito curioso, porque
até certo ponto é uma forma inteligente, uma forma esperta, de lidar com o
problema.
Porquê?
A nossa afetividade é um
aspeto fundamental do que nós somos, extremamente valioso, mas ao mesmo tempo
torna-nos vulneráveis. Se as coisas nos correrem mal ficamos tristes. E se
correrem muito mal podemos ficar não só tristes mas também zangados. Ou
deprimidos. Portanto há uma vulnerabilidade que é introduzida pelos
sentimentos. Como a vida é vulnerável, o facto de termos sentimentos
permite-nos aceder à realidade dessa vulnerabilidade, o que é evidentemente um handicap. Falamos de qualquer coisa que ao mesmo
tempo que é extraordinariamente bela e muito inteligente, do ponto de vista de
resolução do problema da vida, precisa também de ser manejada muito bem para
não nos criar prejuízo.
Mas será mesmo uma fraqueza? A tristeza tem
estimulado grandes inteligências e tem estado na origem de grandes criações na
arte, na música, na literatura.
Aquilo que é muito bonito
aqui é que, dependendo das circunstâncias, essa vulnerabilidade tanto pode ser
boa como pode ser má. Pense no grande domínio da literatura, e em particular da
poesia. A maior parte dos poetas que nos podem deliciar com o seu trabalho eram
pessoas que estavam constantemente muito cientes das suas vulnerabilidades e
das suas fraquezas e daquilo que lhes corria mal na vida, e que foram capazes
de transformar essas experiências, por exemplo de tristeza, em magníficas obras
que nos deleitam. E isso é muito belo: até mesmo um aspeto como a tristeza pode
ser gerador de respostas extremamente inteligentes e produtivas. A tristeza
pode ser a fonte de uma resposta tão magnífica que pode não só remover a
tristeza como levar à produção de qualquer coisa de extraordinariamente bom e
rico tanto para nós próprios como para os outros. Portanto devemos agradecer à
História que o Shakespeare não fosse durante todo o tempo uma pessoa muito
feliz. Ou que o Fernando Pessoa fosse como era. Ou que Emily Dickinson fosse
como era. O fundamental é que se perceba que aquilo que é ser humano não é
redutível aos aspetos cognitivos da mente. Pelo contrário. É preciso alicerçar
essa mente no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo.
Não é dizer que somos só corpo, isso seria um disparate. O que não se pode é
tentar perceber o que é o ser humano sem perceber o corpo, a fisiologia, e a
expressão dessa fisiologia nos sentimentos.
Quando pensamos em nós próprios, a primeira
coisa que nos ocorre são as memórias. Memórias do que vivemos, do que
aprendemos, das pessoas que conhecemos – são elas que fazem de nós quem somos.
Até que ponto a memória, esse grande reservatório de imagens e de palavras, se
confunde com a identidade, com a consciência e com o ser?
Eu diria que não se
confundem.
Mas quando alguém perde a memória é quase como
se perdesse a identidade…
Claro. Aquilo que diz
respeito aos factos da nossa vida é extremamente importante para a construção
da nossa pessoa. Mas mesmo aí essa construção que são as memórias cognitivas
está constantemente ligada à maneira como sentimos e ressentimos esses factos.
Mas vamos imaginar que temos uma pessoa com uma síndrome demencial grave, em
que há uma enorme perda, geralmente no aspeto cognitivo, tal como no caso da
pequena história do García Márquez. Aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a
nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo
misturado com o afeto. A vários níveis. Aquilo que lhe aconteceu até hoje, a
si, em matéria de factos, foi em grande parte filtrado através daquilo que é o
seu afeto. Há certos vários factos que não teriam ocorrido se o seu afeto não
fosse como é. Há uma constante mistura desses dois aspetos e pode vincar isto à
vontade: aquilo que é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver
com esta mistura do que é afetivo com o que é cognitivo. É por isso que o livro
se chama Sentir & Saber.
Falou-me de inteligência artificial. Há dias
dei-me conta de que os homens estão cada vez mais a transferir as suas
capacidades para dispositivos que lhe são exteriores. Por exemplo, um livro ou
um disco rígido fazem o papel de uma memória externa, em que a informação passa
a estar ali depositada em vez de a termos dentro de nós. Até que ponto esta
tendência para transferir ou delegar certas tarefas em máquinas ou aparelhos
pode, a prazo, atrofiar as nossas capacidades? Hoje vemos cada vez mais pessoas
que não são capazes de trocar uma lâmpada fundida pois só sabem carregar em
teclas e fazer deslizar a ponta dos dedos no ecrã do telemóvel.
Sem dúvida. Há uma enorme
redução das nossas capacidades de manejar o mundo que nos circunda. É
extremamente complicado e não vejo que nos traga benefícios de qualquer
espécie. Vamos assistir, por exemplo, a uma redução do acesso a memórias. As
pessoas estão tão habituadas a ter memórias nos seus portáteis que deixam de
exercitar a sua. É muito possível que, se você remontasse cem anos, encontrasse
pessoas que inconscientemente fizessem exercícios de repetição que poderiam ter
lugar durante a noite, em sonhos, o que hoje em dia ninguém vai fazer. Para que
é que você precisa de decorar um número de telefone se lhe basta carregar num
botão para o encontrar? De certo modo estamos a ficar cada vez mais
ineficientes, para não dizer que estamos a ficar mais tontos e parvos. [risos]
Li há dias que já teria nascido a primeira
geração com um q.i. médio inferior ao dos pais – e julgo que por culpa da
tecnologia. Esta delegação excessiva de competências na tecnologia pode ser um
pouco incapacitante?
Sem dúvida.
No epílogo fala-nos, e vou citá-lo, da “poderosa
mente humana”, das “extraordinárias capacidades de raciocínio, decisão e
criação”. Isto parece-me uma visão muito optimista, uma vez que essas
qualidades e capacidades não impedem os homens de agirem de forma
irresponsável, estúpida ou mesmo irracional. Por que o fazemos?
Porque é que somos
irracionais?
Exato.
Excelente pergunta. Se eu
soubesse a resposta resolvia imensos problemas. [risos]
É a nossa herança primitiva a falar mais alto?
Não só. Se nós estivéssemos a
conversar num sítio normal, frente-a-frente, ao fim de uma hora eu teria uma
certa ideia daquilo que você é e você teria uma ideia de mim, à parte daquilo
que você sabe de mim através de livros, artigos de jornal, entrevistas, God knows what. E aquilo que verificaríamos nesse
nosso encontro é que até um certo grau somos extremamente parecidos e a partir
de um certo grau somos muito diferentes. Como seres humanos somos comparáveis –
a mesma idade, o mesmo sexo, o mesmo cultural background,
são esses aspetos que nos permitem ter um espaço cultural relativamente
semelhante. Mas ao mesmo tempo temos uma individualidade. E é essa mistura que
faz com que as pessoas tenham, no geral, uma enorme capacidade criadora, desde
a criação artística à criação tecnológica. Temos constantemente demonstrações
dessa capacidade, o que não quer dizer que ela esteja distribuída igualmente
por todos os seres vivos. É evidente que não está. Há pessoas que são
excecionais em capacidades boas e outras que são excecionais em capacidades
más. Infelizmente temos exemplos abundantes de pessoas, bem conhecidas do mundo
das notícias, que são horrorosas como seres humanos.
Pode dar um exemplo?
Não, não posso. Você tem o
exemplo na sua cabeça, não precisa que eu lho dê. [O exemplo que vem à cabeça
do entrevistador é Donald Trump.] E portanto há pessoas que são
extraordinariamente horríveis em matéria de mentira, em matéria de falsificação
da verdade, em matéria de desprezo pelos outros. Mas estas pessoas são, do ponto
de vista exterior, iguais a outras que podem estar a criar, por exemplo, uma
vacina contra a covid. Temos de fazer justiça a essa complexidade dos seres
humanos. E de reconhecer que há grandes capacidades de criação mas ao mesmo
tempo há a lamentar – e há que precavermo-nos contra, também – as enormes
capacidades de destruição que certos indivíduos têm. Mas nada disto é diferente
daquilo que poderia ter sido descrito na Grécia Antiga ou naquilo que está
contido magnificamente nas peças de Shakespeare. Ou na Bíblia. Todos estes
aspetos humanos estão demonstrados nas peças de Shakespeare. Desde os mais
agradáveis aos mais detestáveis. E é possível ser Hamlet [o trágico e indeciso
príncipe da Dinamarca, cujo trono é usurpado pelo tio], e é possível ser Macbeth
[que ambiciona ser Rei], e é possível ser Lady Macbeth [que intriga e manipula
o marido para o levar a cometer o regicídio e tornar-se Rei], e é possível ser one of the marvelous female characters of A Midsummer’s Night Dream [uma das
maravilhosas personagens femininas de Sonho de uma Noite de Verão].
Referi a palavra optimismo a propósito das
considerações que faz no livro sobre as capacidades da mente humana. Diria que
hoje o mundo está muito dividido entre aqueles que veem o apocalipse ao virar
da esquina, nomeadamente sob a forma das alterações climáticas, e aqueles que
veem a humanidade como uma caminhada em direção a um cada vez maior
aperfeiçoamento, como Steven Pinker. Entre estas duas posições – uma mais
sombria, a outra mais ‘iluminista’ – onde é que se posiciona?
Mais no lado otimista. De um
modo geral sou otimista. E até consigo ser otimista em dias em que tudo corre
mal. Consigo ser optimista apesar de este ter sido até agora um ano horribilis. Temos tido desastres climáticos, sem
dúvida [o estado da Califórnia, onde António Damásio reside, foi atingido por
fogos violentos que mataram 33 pessoas, queimaram mais de 1,7 milhões de
hectares e provocaram um prejuízo estimado de dois mil milhões de dólares],
desastres de saúde e desastres políticos. Mas ao mesmo tempo também temos
coisas boas. Há covid, mas também há um desenvolvimento mais rápido, do ponto
de vista histórico, de vacinas – múltiplas vacinas. E neste momento, tanto nos
Estados Unidos como em Inglaterra, e espero que em breve também na União
Europeia, começam a ser vacinadas as pessoas que estão em maior risco. É uma
tristeza que tenha havido a doença, é uma tristeza que tenha havido um mau
manejar da doença a princípio. As pessoas, no fundo, nunca acreditaram que isto
seria uma coisa grave, e quiseram, conscientemente ou não, ignorar o problema.
Mas ao mesmo tempo temos o desenvolvimento das vacinas que é extraordinário. É
esta dualidade que está sempre presente.
E encontra mais aspetos positivos?
A primeira versão deste livro
foi escrita mais rapidamente do que o habitual porque houve mais tempo. O mais
tempo para mim é não viajar. Normalmente viajo imenso. Para este ano tinha
agendadas pelo menos nove viagens à Europa – não fiz nenhuma. Isso foi uma
tristeza por não poder estar com as pessoas e nos sítios onde gosto de estar,
mas foi também uma enorme bênção de tempo que tive e que foi inesperada.
Então tratou-se de um annus horribilis mas não
para si…
Yes
and no. É
um in between [meio-termo].
Consegui escrever o livro mais concentradamente. Quando acabei a primeira
versão, e a dei a vários dos meus amigos a quem normalmente peço conselhos
sobre aquilo que escrevo, uma coisa que várias pessoas disseram foi: ‘O livro é
extremamente pessimista’. E eu reli-o e modifiquei várias coisas exatamente
para não ser tão pessimista. Porque no fundo não sou pessimista. Tenho uma
enorme dificuldade em ser pessimista durante muito tempo. E tenho uma enorme
dificuldade, que julgo estar relacionada com a anterior, em ficar furioso
durante muito tempo. Posso ficar irritado… mas depois passa.
José Cabrita
Saraiva, 18/12/2020
CARREIRO, José. “António
Damásio: As capacidades afetivas são os alicerces da nossa mente”. Portugal,
Folha de Poesia, 02-01-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/antonio-damasio-as-capacidades-afetivas.html
Sem comentários:
Enviar um comentário