domingo, 31 de janeiro de 2021

Rui Caeiro (1943-2019)


 

[DEUS, SOBRE O MAGNO PROBLEMA DA EXISTÊNCIA DE DEUS]

 

Valerá a pena perder tempo onde os outros já perderam, falhar onde os outros já falharam?

Decidir desta questão é de alguma maneira decidir da sorte de Deus?

 

*

 

Não importa a existência de Deus (é um grave problema que não importa) mas sim o do muro. Entre Ele e nós, entre o aqui e o Além - um muro. De cuja natureza nada sabemos.

Já se falou o bastante sobre Deus e os seus pesados atributos. Também já dissemos as orações todas.

Mas sobre o muro – mais alto do que nós e do que Ele e de que Ele é tão vítima como nós?

 

*

 

Entre Deus e nós um muro, um abismo. Por que não nos temos entretido a adjetivar o muro, o abismo? Dá que pensar.

 

*

 

Quem é que se empoleira nos muros, a olhar para um lado e para outro? Os gatos, as crianças. Quem se empoleira no Muro?

 

*

 

Um bom tema de meditação: em que medida os atributos da Divindade são consequência, designadamente, dos pequenos-almoços, das sobremesas, das más digestões dos doutores da Igreja, do bom e do mau humor dos teólogos?

 

*

 

Do nosso medo, do nosso infinito desconhecimento, da nossa esperança, da nossa pálida alegria – Ele é um fruto serôdio.

 

*

 

Quando eu era pequenino e Tu existias não era entre nós muito grande a distância e mesmo a diferença, se excetuarmos a de não fazeres nunca chichi na cama. Depois as complicaram-se: foste ficando para trás, não cresceste; eu cresci, não tive outro remédio. A morte tomou posições. E quando a morte se instala...

 

*

 

Atravancaste, mais do que o razoável, muitas vidas. Não se trata de te criticar os excessos, cada um afirma-se ou apaga-se como pode. Mas pensando nas vidas (atravancadas...) de tanta gente – os doentes e os timoratos, mas também os ignorantes e os distraídos – fatalmente se acaba perguntando por quê. Aqui para nós, não seria por que atravancando inchavas e inchando ganhavas existência?

 

*

 

Os místicos? Os místicos é outra conversa. Ultrapassaram-Te pela esquerda e já ninguém os agarra. Não cabem aqui – nem em parte nenhuma.

 

*

 

A estranha leveza que dás aos que não acreditam em Ti só pode ser da ordem do sobrenatural. Quanto mais não acreditam, mais leves se sentem. Quanto mais Te ferem (pensam que Te ferem) mais voam.

 

*

 

Senhor Deus que não existes, porque não existes, contigo o jogo é sempre limpo e inocente.

 

Até quando?

 

Até quando a tua inexistência perdure, ou a nossa paciência se canse, ou alguém apareça a estragar a brincadeira.

 

Mas quem?

 

Rui Caeiro, DEUS, sobre o magno problema da existência de Deus, 1988

 



 

RETRATO

 

Uma demora lenta nas palavras

um calor bom na palma das mãos

uma maneira de gostar das pessoas e das coisas

sem tolher movimentos ou forçar as superfícies

beber aos golinhos o café a ferver

ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo

viver viver roçando as coisas ao de leve

sem poupar o veludo das mãos e do corpo

sem regatear o amor à flor da pele

olhar em torno de si perdida ou esperar o verão

e saber de um saber obscuro que o calor

todo o calor é de mais dentro que vem

 

Rui Caeiro, Livro de Afectos, Lisboa, edição do autor, 1992


Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor,
Lisboa, dezembro de 1993

 


BABA DE CARACOL

 

É no teu corpo que as palavras se perdem

vives num reino de pedras e quietude

animais mansos duros impenetráveis

 

os teus gestos perpetuam-se no tempo

- só a esboçar levam anos, não há morte para ti -

e é no espaço que se engastam para sempre

 

E no teu corpo como se nada fosse(s)

vão morrer os gestos e as palavras

 

Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor, Lisboa, dezembro de 1993

 

 

[TAMBÉM OS GRITOS SÃO FEITOS]

 

Também os gritos são feitos

de palavras, isto é

 

de uma grande ausência

de palavras, isto é

 

de silêncio carregado

de veneno

 

Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor, Lisboa, dezembro de 1993

 

 

[CHEGAR AO MAIS ÍNTIMO DOS ÍNTIMOS]

 

Chegar ao mais íntimo dos íntimos

os interstí-

culos das palavras

 

os sonhos

 

Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor, Lisboa, dezembro de 1993

 

 

[TODOS OS DIAS LOGO PELA MANHÃ]

 

Todos os dias logo pela manhã

as palavras

 

A cansada surpresa de estar vivo

as palavras

 

Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor, Lisboa, dezembro de 1993 (1ª ed.)

 

[FICA E SÓ O QUE FICA]

 

Fica e é só o que fica: o primeiro encontro

o primeiro beijo numa gare deserta

o mar por líquida ou aérea testemunha

 

depois a longa gestação do adeus

único e verdadeiro adeus

o subtil envenenamento da memória

 

Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor, Lisboa, dezembro de 1993 (1ª ed.)

2.ª edição: Língua Morta, Lisboa, 2010.

 

 


 

[AQUI NA PRAIA DA TORRE]

 

Aqui na Praia da Torre perto do lugar onde

mataram Gomes Freire de Andrade

aqui onde o Tejo por fim se rende e

se faz mar curvado sobre a areia

apanhando conchinhas e distraído

saboreando palavras lavadas e re

lavadas pela água das marés tais como

praia luz água nitidez búzio manhã

Deus ou Sophia de Mello Breyner Andresen

Rui Caeiro, Olhar o nada, ver a Deus. Lisboa, Averno, 2003

 



 

A DOIS PASSOS

 

Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais

soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti

e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu

nunca soube onde colocar e logo vinha o vento

e levava, quando penso em ti e mais em tudo

o que deixaste avariado na minha vida e eram

todos os pobres artefactos dela, da minha vida

quando penso em ti, isto é, quando penso em

nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós

éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno

é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu

penso – esse tempo esse calor esse frio essa espera

insuportável. É no inferno que penso, mas devo

reconhecer, em abono da verdade, que não era

no inferno que nós estávamos, era a dois passos

dele e se queres mesmo saber era agradável

pela boa e simples razão de que não havia mais

nada, era intensa e insuportavelmente agradável

Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que

se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor

que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos

aquecia. Era a dois passos do inferno – estava-se bem.

 

Rui Caeiro, “Do inferno – cinco aproximações” in Telhados de Vidro n.º 12, Lisboa, Averno, maio 2009

 

 



BAR DOS 4 GÉMEOS

 

Para o Manuel de Freitas

E se por acaso quiseres beber, tens

não direi toda a terra pois tudo

aquilo que nela há é escasso

mas uma estreita faixa em forma

de retângulo ou em forma de país

e lá dentro à beira mar uma cidade

grande bonita e feia que é até

a capital e lá um largo – Praça do Rossio,

assim chamada – e lá um bar

(ah, finalmente) mas um bar

a céu aberto, sem balcão de zinco

e sem barman, sem tamboretes

nem cadeiras e também sem copos

nem garrafas, mas bar à mesma

– dos 4 gémeos, assim chamado –

situado cerca do meio da praça

e se por acaso tiveres mesmo sede

abeira-te deles (isto é, dos 4 gémeos

em bronze), põe a cabeça a jeito

aproxima a boca e bebe, consoante

a sede que for a tua, e bebe – água,

que é o que há lá para se beber.

 

Rui Caeiro, Revista Criatura n.º 5, outubro 2010. Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, Direção de Ana M. P. Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto. ISBN 9789899592131

 

 



[O NOSSO AMOR NÃO É COISA QUE SE APRESENTE]

 

O nosso amor não é coisa que se apresente

a uma sociedade como esta cujas exigências

stop que é do nosso amor que se trata

o nosso amor cheira às folhas podres de Outono

e quanto a reverdecer vou ali e já venho

o nosso amor está de rastos e como há de ir

o nosso amor coelho esfolado o nosso amor

disco partido o nosso amor rato morto o nosso

amor ovo cozido ovo estrelado porque isso tanto faz

o nosso amor osso esburgado o nosso amor

brinquedo que um menino esventrou e não sabe

agora como é que vai poder consertar

o nosso amor chá de tília choque

anafilático paragem cardíaca

mas nosso amor apesar de ou nosso amor

tudo e mais alguma coisa o nosso amor

cinco sentidos viste-o ouviste-o tocaste-o

cheiraste-o degustaste-o o nosso amor

seja ou não seja e esteja ou não esteja

ele é para já e largamente quanto basta

 

Rui Caeiro, O Quarto Azul e Outros Poemas, Lisboa, Letra Livre, 2011

 

[QUEM VIVE PARA O AMOR ESTÁ LIXADO]

 

Quem vive para o amor está lixado

não tarda, que o amor é um amplo espaço

vazio sem cor nem forma e um silêncio

tumular por perto. Mau, muito mau

para se levar alguém. Mas tu vieste

e de imediato tudo fôra já decidido

como quando alguém nasce e olha em torno

— pouco importa se estranha ou não a paisagem.

Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos

a nós, um ao outro por natural companhia

era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer

disso. E tínhamos o tempo todo para ver.

 

Rui Caeiro, O Quarto Azul e Outros Poemas, Lisboa, Letra Livre, 2011

 




A DOR DE UM GATO

 

Quando cegaste foi de vez. Sem aviso prévio e dos dois olhos em simultâneo.

Não foi de um dia para o outro, foi mais o que se chama de um momento para o outro.

De um momento para a noite, melhor dizendo.

Quando cegaste foi como se na casa uma espécie de morte tivesse dado sinal de vida, essa sua espécie de vida.

Pois quantas vezes é assim, absurda e traiçoeira, que ela vem. E se instala.

Tu, indeciso e desorientado, andavas sem rumo pela casa às topadas a móveis, sacos de plástico, pilhas de livros.

Não foi um espetáculo bonito de se ver, acompanhado com miador que eram verdadeiros gritos de dor, de aflição, ou de cólera.

Ou, mais provável, tudo isso junto.

Grande ironia do destino, pensei na altura, logo os teus olhos.

Que eram amplos, redondos, curiosos, sempre alerta e cheios de luz.

Uns olhos de fazer inveja a muita gente que eu cá sei.

E gritaste, durante uns bons minutos gritaste.

Um som não ouvido até então, um novo som arrancado à natureza, ou ao mais fundo da tua animal sinceridade.

Um som que percutia os tímpanos com a sua nota de urgência e pânico.

Sabia-se de onde ele vinha, o som, não para onde ia.

Sim, para onde, se é que ia para algum lado? A quem se dirigia, se é que era dirigido a alguma coisa ou alguém?

A mim não seria: sabias, com a tua antiga e animal sabedoria, que eu nada te podia valer.

A Deus também não seria: os gatos, é coisa bem conhecida, não vão em trapaças.

Resta o puro NADA como hipótese, resta a

GRANDE PUTA QUE A TODOS NOS PARIU!

 

Rui Caeiro, Revista Piolho n.º 6, Edições Mortas, setembro 2011

 



 

AS QUATRO ESTAÇÕES

 

Vem o Inverno com o seu carrinho do frio

a apertar nas curvas; a Primavera e os seus

paroxismos que não duram muito; o Verão

e os seus langores de ainda menos; e por fim,

mas também pode ser no meio ou no princípio,

lá vens tu, que não falhas nunca, melancólico

e misericordioso Outono, a estenderes-me a taça

de vinho puro que eu bebo lenta e gravemente

com aquela lentidão, aquela gravidade característica

dos que não têm religião nenhuma, ou têm apenas essa.

 

Rui Caeiro

AAVV, Este é o meu sangue (livro coletivo), Lisboa, Tea For One, 2012, p. 20.

AAVV, Resumo – a poesia em 2012, Lisboa, Fnac/Documenta, março 2013, p. 160.

 

 


 

[AINDA ATACAS]

 

Ainda atacas

como pode atacar um amor já ido

lá de vez em quando ainda atacas

irrompes num súbito alarme

sacodes-me de alto a baixo

impiedosa

mente

sacodes

me

e devagar te afastas

como um sol a pôr

se

 

Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado, Edição Alambique, 2014

 

[DIANTE DA MORTE]

 

Diante da morte, diante de um suicida perante a morte, é de muito mau gosto lançar mão de qualquer tipo de literatura. Em tal situação, e perante um tal conviva, não tem qualquer préstimo o arsenal dos subterfúgios. Só talvez o silêncio. O silêncio que a morte faz à sua volta, quando acontece. Quando, por acaso maior ou menor e com mais ou menos solenidade, acontece.

Diante da morte, como em quase tudo, também é preciso distinguir. Há o que é importante e o que não não é.

O que não é, pôr de lado. Não deitar fora mas, resoluto, pôr de lado. Diante da morte não há tempo a perder. Frieza e paixão devem ser habitualmente doseadas.

Diante da morte o importante é sentir. Sabe-se lá como. E o quê.

A morte, provavelmente. O tempo que falta até lá. O que ainda resta.

Sentir, degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem. de exaltação, de sabedoria.

Diante da morte o importante é estar.

 

Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado, Edição Alambique, 2014

 

 

[POIS MORRE-SE DE MUITA COISA]

 

Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa

se morre, morre-se por tudo e por nada

morre-se sempre muito

Por exemplo, de frio e desalento

um pouco todos os dias

mas de calor também se morre

e de esperança outro tanto

e é assim: como a esperança nunca morre

morre a gente de ter que esperar

Morre-se enfim de tudo um pouco

De olhar as nuvens no céu a passar

ou os pássaros a voar, não há mais remédio

ó amigos, tem que se morrer

Até de respirar se morre e tanto

tão mais ainda que de cancro

De amar bem e amar mal

de amar e não amar, morre-se

De abrir e fechar, a janela ou os olhos

tão simples afinal, morre-se

Também de concluir o poema

este ou qualquer outro, tanto faz

ou de o deixar em meio, o resultado

é o mesmo: morre-se

Data-se e assina-se – ou nem isso

Sobrevive-se – ou nem tanto

Morre-se – sempre

Muito

 

Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado, Edição Alambique, 2014

 


 


MEMÓRIA

 

Um corpo não esquece nunca

nem

nunca vai embora

 

Um corpo fica

devagar

em outro como ele

 

Devagar lhe percorre os caminhos

mais secretos

de um ainda mais secreto mapa

 

Rui Caeiro, O sangue a ranger nas curvas apertadas do coração - obra reunida, Edição Maldoror, 2019

 

 

 

Com os corpos que temos à mão – e é só

o que temos, os nossos corpos – tiramos

as medidas à cama: largura

comprimento e altura

Devagar a tua língua vivi

fica o que resta de mim

 

Devagar a tua língua

vivifica o que

resta de

mim

 

Rui Caeiro, O sangue a ranger nas curvas apertadas do coração - obra reunida, Edição Maldoror, 2019

 

 



 

Entrevista a Rui Caeiro

Oeiras, 17 de Abril de 2018

Jogos Forais

Telefonámos a Rui Caeiro para lhe fazer a proposta da entrevista. Não tivemos um sim declarado, mas uma advertência: “atenção que não tenho nada de interessante a dizer, acreditem que vai ser um flop”. Apesar deste aviso, marcou encontro connosco no Palácio do Egipto, e a entrevista teve de tudo um pouco, menos do tal flop anunciado. 

 

Jogos Florais: Gosta de poesia?

Não se trata de gostar ou de não gostar, trata-se de que se tem de a aceitar quando ela se impõe.

 

JF: E isso é o mesmo enquanto escritor e leitor? Gosta tanto de escrever  poesia quanto de a ler?

Quando dei a resposta estava a pensar em escrever. Em relação à leitura de outros, há poetas que leio sempre com elevado prazer e elevada surpresa: um poeta contemporâneo chamado Luís de Camões, por exemplo. 

 

JF: O que é ser um poeta contemporâneo?

Alguém em quem nós somos capazes de nos rever mais do que nos revemos nas figuras que nos apresentam para esse efeito, os chamados poetas do JL, por exemplo. 

 

JF: Acha que há poetas sobrevalorizados?

 Sobrevalorizados... é um não acabar.

 

JF: E subvalorizados?

O Diogo Vaz Pinto fez um artigo recente para o isobre alguns tipos de que não se fala muito mas que são figuras muito fortes, Carlos Poças Falcão e Rui Nunes, por exemplo. O Rui Nunes é daqueles casos em que eu costumo dizer: “há aí uns tipos a escrever umas coisas e que pretendem ser escritores, agora o Rui Nunes é outra coisa, esse é um escritor a sério, não faz coisinhas, esse lida com a literatura, luta com a literatura, tem raiva à literatura”. É preciso ter raiva à literatura para se fazer alguma coisa interessante neste campo, porque de outra maneira estão apenas a repetir-se as banalidades que andam no ar. O Rui Nunes é um caso. E tem outra característica que eu aprecio muito, a pessoa e o poeta são parecidos, que é uma coisa que nem sempre acontece. O Herberto é capaz de ser o nosso maior poeta da 2ª metade do século XX, lidei um bocadinho com ele, não muito, mas a pessoa não me encantava, também não me desencantava nem dava para embirrar, mas não encantava. Já um Rui Nunes, ou aquele tipo do Porto que morreu há uns anos, o Manuel António Pina... Fui entrevistá-lo ao Porto, e passados vinte e cinco minutos, era como se já nos conhecêssemos há anos. E o melhor da entrevista ficou fora do gravador, é uma coisa que acontece muito. E marcámos coisas para o futuro, mas a morte dele veio estragar isso tudo. Outro tipo que é igual à poesia dele – isto eu já escrevi várias vezes – é o António José Forte. Ele não tinha nada ar de literato, o que é óptimo. Havia nele uma suavidade no falar – e na maneira de ser – que não eram nada incompatíveis com a revolta que também havia dentro dele: ele que era um anarquista e que era um puro. 

 

JF: Já percebi que isso é um critério para o seu cânone pessoal, não é? 

 Sim, sim. Literato é de fugir. 

 

JF: Já li o adjectivo “discreto” aplicado a si. O que é ser um poeta discreto?

Quer dizer que, entre os muitíssimos defeitos que tenho, não figura realmente o ser pretensioso, cagão, isso é coisa que eu não sou. Nessa medida, serei discreto?

 

JF: Então tem qualquer coisa de modesto, coisa que escapa aos literatos de que falou há pouco. 

Sim, creio que sim. 

 

JF: Quando fala da raiva da literatura parece também que é uma raiva contra um certo tipo de literato. Faz sentido?

É cada vez mais consensual a ideia de que, se queremos fazer alguma coisa em literatura, temos de a fazer contra a literatura, porque se não estamos a repetir ou a papaguear o que já foi feito. Não vale a pena ser um daqueles, como é que se chamam... os prémios saramagos, talvez com uma excepção única, são tipos que sabem escrever, escrevem correctamente, mas o que eles escrevem não adianta a ponta de um corno, porque aquilo já está feito, já está feito de outra maneira e já está feito de melhor maneira, não vale a pena ir por aí. Noutro dia estava aqui uma moça neste café a quem eu perguntei quem é que ela gostava de ler e ela respondeu Pedro Chagas Freitas. Ela gostava sinceramente dele, não deu para dizer “isso não interessa nada”. Não fiz isso. Só o faço com pessoas que têm mais conhecimentos. Ela precisava de ler muito até perceber que aquilo não interessa nada. 

 

JF: Acha que as pessoas podem aprender a ler uma literatura de melhor qualidade?

Eu trabalhei durante dez anos na editora &etc, e é uma parte da minha vida a que confiro uma certa importância. Na &etc entravam aves muito esquisitas e que, de alguma maneira, gostavam de poesia, queriam escrever um livro: “tenho aqui umas folhinhas que trouxe, se não se importasse...”. Na maior parte dos casos aquilo era de fugir, mas havia uma coisa que estava sempre certa, e que se lhes podia dizer, que era: “nós temos grandes poetas, um desses foi o tal Camões”, mas há ainda o Pessoa, o Pessanha, o Sena... E a “Cantiga, partindo-se” de João Roiz de Castelo Branco, e o soneto “O sol é grande” de Sá de Miranda. 

Quando veio cá o escritor brasileiro Rubem Fonseca, ele estava a falar com os seus colegas escritores portugueses e disse-lhes qualquer coisa como: “vocês têm uma grande responsabilidade, vocês falam uma língua de onde no século XVI saiu isto”. E pega num livrinho e lê um soneto do Camões: “e portanto vocês têm a mesma língua, e isso dá-vos uma grande responsabilidade”. Esse respeito, esse respeito pela língua, é uma coisa que talvez se consiga ensinar. E então os tais meninos que apareciam na &etc, quase todos tímidos (mas também apareciam uns, embora poucos, com o rei na barriga)… E uma coisa que era sempre possível dizer-lhes: “há tantos poetas fundamentais que tu ainda não deves ter lido, porque naquilo que tu escreves não há marca nenhuma da escolha de um caminho que não seja a banalidade poética”. 

Aconteceu uma coisa gira: esses a quem dei tampas não me ficaram a detestar por causa disso, alguns ficaram até agradecidos pelas tampas que levaram, isso é bonito. Devo dizer que não é o que acontecia na maior parte dos casos, quem leva a tampa não gosta depois e deve sair a resmungar “puta que os pariu!”. Houve uma feira no Regueirão dos Anjos num dos últimos sábados, e foi ter comigo um tipo a quem em tempos eu tinha dado uma tampa, um desses: é médico, um jovem médico, ele é muito bonitinho, a namorada também é muito bonitinha, fazem um casal muito giro, e ele continua a escrever, e a ler, e a comprar livros de poesia lá na feira, mas nunca publicou nada, por enquanto ainda não, felizmente ou infelizmente, ver-se-á. Há casos assim. 

O primeiro original que o poeta Manuel de Freitas apresentou foi à &etc, e a resposta que ele levou foi: “isto tem coisas boas, mas necessita de ser mais trabalhado”. E ele tem uma personalidade forte e fez o seguinte: de certa maneira não ligou ao que dissemos, mas não se zangou, levou aquilo a outra editora e a outra editora publicou, e quando escreveu o seu segundo livro de poesia levou à &etc e foi publicado aí.

 

JF: Gostou de fazer esse trabalho de edição, contribuir para editar poetas? Isso também é lidar com o mundo dos literatos e com as ambições literárias das pessoas.

Sim. Quer dizer, ainda não tinham chegado ao ponto de ser literatos, esses eram na maioria miúdos imberbes, tipos bastante novinhos e que aguentam conselhos, bons ou maus, e tampas justas ou injustas. Foi giro, além dos originais que recebíamos pelo correio, às vezes apareciam assim casos e eu dizia ao Vítor Silva Tavares: “este aqui é melhor ver com cuidado”.

 

JF: E desses muitos autores há algum que destaque? Há um publicado na &etc de que gosto muito, o Nunes da Rocha, também muito pouco valorizado.

O Nunes da Rocha foi muito ajudado pelo Vítor Silva Tavares, os livros não se vendiam muito e apesar disso o Vítor continuava a publicar. Isso é a favor do Vítor, sabia que era bom, não pensava no valor comercial, as tiragens eram sempre pequenas e sempre as mesmas, e procurava-se que, mesmo os autores que se vendiam sempre mais ou menos, o dinheiro que se fazia nesses desse para perder noutros, era este o espírito.

 

JF: Falámos há pouco de poetas discretos, e a certa altura no seu último livro diz que os poetas são uma categoria particular de malucos. Porquê?

No livro falo da loucura como algo de contra a corrente, algo de libertador. Esta ideia também é contestável, na medida em que é uma posição um bocado egoísta, ou romântica, mas é uma maneira de exaltar uma certa atitude contra a corrente. Foi agora publicado no Homem do Saco um texto pequenino meu, extraído de um livro algo extenso, e de que algumas pessoas até gostam, mas em que eu já não me revejo e que nem tinha paciência para reler, mas não sei porquê estava à procura de uma coisa qualquer e passei os olhos e pensei: “este texto aqui safa-se, acho que o podia escrever agora”. O elogio que aí faço aos bêbados é semelhante ao elogio que agora faço aos malucos, tem muito a ver com a necessidade de fugir do quotidiano que temos, ou que tenho. 

 

JF: Usa a poesia no seu quotidiano?

Acho que sim. Mesmo que não o quisesse fazer, isso acontecia. Eu e a poesia passamos tempos juntos, sim. 

 

JF: E de que maneira? Lendo, escrevendo ou citando de cor poemas?

É mais deixando-me impregnar por ela, sendo o caso. É mais estando atento à realidade e interpretando-a numa certa feição diferente. No meu último livro, que são dois num, eu faço isso, aproveito cenas do quotidiano que permitem uma ressonância diferente. 

 

JF: Temos nos Jogos Florais uma secção, a Marginalia, onde partilhamos curiosidades literárias. Nos seus Diálogos Marados, também partilha histórias curiosas com algumas pessoas da cena literária portuguesa com quem conviveu. Porque é que teve vontade de partilhar essas histórias?

Foram histórias giras que me aconteceram e que eu gostava de contar às pessoas, e que as pessoas achavam interessantes. E, se essas achavam, podia ser que outras também achassem, e nessa medida algumas foram para lá porque eram história desse tipo, e outras foram para lá porque foi a maneira de eu confessar alguma coisa que precisava. E aquilo também seria uma boa ocasião para o fazer, converter isso que eu precisava de dizer num diálogo marado.

 

JF: Alguns não parecem assim tão marados?

Marado no sentido de serem algo esquisitos… têm todos qualquer coisa de pouco habitual, têm todos qualquer coisa de especial. Por exemplo, passo por dois tipos que vão a conversar sobre mulheres, e dizem duas ou três bacoradas sobre mulheres, e estavam muito satisfeitos com o que tinham acabado a dizer, e continuaram a dizer, só que entretanto já tinham passado por mim e não apanhei mais, tal como lá digo, não devo ter perdido grande coisa. Mas porque é que essas bacoradas em especial me interessaram, porquê aquelas e não outras? Talvez tivessem algo de típico, algo em que muita gente embarca, talvez houvesse muito mais gente que pudesse dizer aquilo, e dizer aquilo com boa consciência, e talvez daí entraram na categoria solene de diálogos marados.

 

JF: O gato é uma figura literária na sua obra. Há algum motivo especial para isso?

Sim, a minha mulher trabalhava na escola inglesa de Carcavelos, o St. Julian’s. A escola tem um parque muito grande, e nesse parque apareciam animais, nomeadamente gatos, e ela estava uma vez sentada lá no parque, e houve um que lhe saltou para o colo. Saltar para o colo poderia ter o significado de “vá lá, adopta-me”, e ela assim fez: meteu-o numa caixinha de cartão e chegou com ele lá a casa. A partir daí o gato ficou uma pessoa importante, talvez a pessoa mais importante da casa. Quando o gato morreu, coisa de que eu falo noutro texto, adoptou-se logo outro.

Mas respondendo à pergunta. Há um motivo especial, sim, é tudo aquilo que o gato tem de admirável, de criatura perfeita.

 

JF: Já no livro 49 espinhas para um gato faz um elogio à figura do gato e revela a superioridade deste animal na relação que tem com o ser humano. Mostra-nos, por exemplo, que o gato está longe de ser um animal dócil e submisso e interessado em fazer companhia ao seu dono...  

Se estamos à espera dos carinhos que o gato nos faça, podemos desistir logo, mas também é verdade que às vezes, inesperadamente, ele é capaz de nos surpreender com um gesto completamente inesperado e que nos fazer pensar: “não estava a ver-te a fazeres isso, não estava a ver-te a procederes assim, não estava a ver-te a olhares dessa maneira”. Eu descrevo, quando morreu o cão que nós tínhamos, que ele e o gato não gostavam um do outro, é natural. Quando o cão morreu, aproveitei uma altura em que a minha mulher foi aqui ao mercado – a nossa casa é a seguir, a casa é aqui –, ela foi ao mercado e eu pus o cão dentro do saco de plástico preto. Quando saí com o saco, a maneira como o gato olhava para o saco era qualquer coisa de especialmente difícil de definir. O que significava esse olhar? É muito difícil de dizer, uma curiosidade muito, muito intensa, e porventura uma compreensão grande do que estava a acontecer, sim, certamente. O Luís Gomes, da livraria Artes e Letras, fez uma edição de um livrinho meu, que se chama Um gato no inferno, grande parte à base da vivência com esse gato e da morte dele. Ele está no inferno como as amantes do Dante, as grandes amantes foram parar ao inferno, porque amar muito é da ordem do infernal, do maldito. Foi um gato muito amado e está no inferno, pronto, foi um livrinho que se chama Um gato no inferno e que saiu com erros chatos, teve de ser emendado à mão... 

 

JF: Tem sempre muito cuidado nas suas edições, tem edições de autor ou de editoras mais pequenas. Prefere publicações mais discretas e mais afastadas das grandes editoras e da publicidade que elas promovem?

Não me interessa muito publicar em grandes editoras, isso propriamente não me interessa e acho mais piada às pequenas edições de autor, aos editores de vão de escada, realmente acho mais piada a isso. O Snob, a Língua Morte, a Averno... 

 

JF: Compreendo essa ideia de estar longe das grande editoras, mas não tem pena de se tornar menos acessível ao público em geral, e só acessível a um nicho já ligado às pequenas editoras?

Eu tenho consciência de que as pessoas que gostam mesmo de ler poesia não são em grande número. Digamos que são poucos, mas bons. Você veja que dantes era capaz de se fazer uma tiragem de um livro de poesia de mais de 1000 exemplares, hoje em dia só em casos muito especiais. 

Eu escrevi um livro erótico, livro de poesia erótica (O quarto azul e outros poemas), e o jovem editor da Letra Livre disse-me: “isto até ao fim do ano está vendido”. Não foi nada assim, ficou anos na prateleira.

O Rui Pires Cabral, que é um poeta que eu aprecio (filho do António Manuel Pires Cabral, o pai até gostou de um livro meu...), dedicou um livro “aos meus (seus) trezentos leitores”, e essa dedicatória significava que trezentos era pouquíssimo. E hoje ter trezentos leitores já é muito bom. Os hábitos de leitura vão-se alterando. 

 

JF: Nos Jogos Florais escrevemos sobre poemas de que gostamos. Tem algum poema favorito?

É difícil... Se me perguntassem por um poema de que goste muito, a resposta poderia variar conforme o meu estado de espírito. Se estivesse num dia de abatimento, poderia indicar um poema do Pavese, que é um dos meus escritores preferidos; se estivesse num dia mais eufórico, poderia pensar num tipo com mais saúde. As duas coisas são muito necessárias. Jorge de Sena tinha muita saúde e muita genica. Esse dava para a resposta a dar nos dias em que me sinto de espírito mais positivo. 

 

JF: Acha que o Jorge de Sena tinha muita saúde? Em que sentido? É que eu gosto muito dele, mas acho que era um bocadinho bilioso... 

Isso é outra coisa, isso é o espírito polemista. 

 

JF: Nesse capítulo não há muitos como ele, pois não?

Ele não foi substituído, não. Em termos de crítica, estamos bastante desasados neste momento.

 

JF: Costuma ler crítica literária. 

Leio, leio. 

 

JF: Lê o JL?

Passo os olhos pelo JL sempre, até para poder dizer mal. Geralmente o JL, a sensação que me dá é que é sempre mais do mesmo, tem uma determinada fórmula e vai repetindo. Uma vez por outra, há uma coisa de antologia, como os artigos do Helder Macedo, que é um homem muito inteligente e talentoso. Já é velhote. Mas isso são excepções. Agora o resto…

 

JF: Costuma ler o que os críticos escrevem sobre si? E parece-lhe que acertam?

 Não há propriamente críticos a escreverem sobre mim, há amigos meus... 

 

JF: O Diogo Vaz Pinto também escreveu agora.

Sim, o Diogo, mas são amigos, são suspeitos. O que encontro assim de mais significativo é o poeta espanhol que costuma escrever para as revistas do Manuel de Freitas, Telhados de Vidros Cão Celeste. É de Barcelona e chama-se José Angel Cilleruelo. Eu gosto muito do que ele escreve e a ele deu-lhe para simpatizar com as minhas coisas. E acho que, daquilo que se escreveu sobre mim, descontando os exageros da amizade, ele disse coisas relevantes. Escreveu um livro agora, mandou-me o livro e disse: “tu és personagem deste livro”. Conta o nosso encontro no Paralelo W, aqui há uns anos, e foi a única vez que o vi, que estive com ele. Mas ele já viveu dez anos em Portugal, há uns anos atrás, de maneira que fala muito bem a nossa língua e conhece muito bem a respectiva poesia, a Adília, a Golgona, ele conhece esta gente toda.  

 

JF: Associou esses dois nomes por algum motivo?

Ele já falou sobre as duas quando cá veio, mas nessa altura eu não estive com ele. Acho que falou sobre uma e outra, mas não exclusivamente. 

 

JF: Já imaginou o seu nome contemplado numa nova edição da História da Literatura Portuguesa? 

Não, acho que tenho um bocado de horror a isso. Sendo eu uma pessoa de muitas leituras, tenho muita consciência de que há muitas centenas mais, e como tenho muita consciência disso não me sentiria bem se me pusessem lá num pódio qualquer.  

 

JF: Isso é modéstia? Outros não poderiam dizer o mesmo e estão lá?

Eu acho que não é uma questão de modéstia, porque a modéstia vira facilmente falsa modéstia. E no meu caso acho que tem a ver com... Sou uma pessoa informada, sobretudo em matéria de poesia, e tenho consciência realmente de que há bons e muito bons. Somos bons no romance, na crónica não temos grandes, no conto também não, mas na poesia temos nomes grandes. 

 

JF: Acha que, numa História da Poesia, por exemplo, só estão os melhores? É por essa razão que se exclui?

Seja qual for o critério para a selecção, há sempre pessoas que eu vejo mais interessantes do que eu, antes de se poder falar de mim. E não tem a ver com falsa modéstia, é mesmo o que eu penso. 

 

JF: Também tem vários trabalhos como tradutor. Gostou dessa experiência?

Quando estava ainda a trabalhar na EDP, onde estive vinte e tal anos, nos últimos anos eu já tinha traduzido coisinhas várias, mas mais sobretudo a partir da década de 90. Traduzi um suíço maluco, Henri Roorda, que escreveu um livro a explicar porque é que se ia suicidar quando o acabasse de escrever. E assim fez: acabou de escrever, bebeu um copo de vinho do Porto e disparou. Isso era coisa de que o Vítor Silva Tavares gostava. Ele gostava de coisas esquisitas, mordia logo. E assim foi, aquilo foi logo traduzido. 

Traduzi o Pavese porque sempre gostei muito dele, de tudo, da poesia, romance, novela, ensaio literário, diário. Ele tem dois livros de poesia muito diferentes, um é poesia narrativa e o outro é poesia de amor. Ao que consta, apaixonou-se por uma actriz americana que foi a Itália filmar. Entrava num filme qualquer, tiveram o seu enrolo e depois ela foi-se embora. Ele não terá aguentado essa ausência e suicidou-se, dizem que está relacionado com isso. 

Traduzi ainda um poeta espanhol chamado León Felipe, que fugiu da Guerra Civil de Espanha para o México. Alguns poemas dele são cantados, e muito bem cantados, pelo cantor espanhol Paco Ibañez. Traduzi uma escolha de poesia do León Felipe, acho que muito por causa do último texto, que me impressionou tanto... O último texto é uma carta que ele escreveu à irmã dele, que era mais nova. Essa carta é tão bonita, tão bonita que ele próprio a inclui num livro de poesia dele, e é apenas uma carta. 

Traduzi o surrealista Robert Desnos, que escreveu um encontro inventado com a figura do Jack, o estripador. Esse livrinho também me encantou, e traduzi. 

Traduzi uma novela que a Marguerite Yourcenar considera uma obra-prima, e eu também acho que é, do escritor francês Roger Martin du Gard, que hoje está muito esquecido, que é uma história com o seu lado delicado. Trata de um encontro sexual entre dois irmãos, irmão e irmã, mas pela forma discreta e natural como aquilo está contado é realmente um prazer de leitura. Chama-se A Confidência Africana, e a cena crucial passa-se no Norte de África. Também traduzi para a &etc Miguel de Unamuno e o suíço Charles-Ferdinand Ramuz. E pronto, foram estas as traduções para a &etc. 

Como o Vítor tinha muito jeito e prática para fazer capas e preparar as edições, eu “utilizei-o” muito para me ajudar nas minhas edições de autor. Eram edições de autor, mas tinham capas muito giras, porque eram do Vítor, não eram minhas, não tenho jeito nenhum para desenhar ou pintar. E portanto fiz várias edições de autor. Enquanto lá estive, na &etc, publiquei um único livro meu com a chancela da casa (Sobre a nossa morte bem muito obrigado), e ainda hoje não sei se o devia ter feito, porque trabalhando lá acho que talvez não o devesse ter feito. Os editores franceses às vezes querem escrever uma coisinha sua. Sabe o que é que eles fazem? Não publicam na sua editora. Dão a outro editor e ele edita se quiser.

 

JF: E será que tinha uma editora mais certa para si que não a &etc? 

Se calhar não, até porque o tema era delicado, era o suicídio. Era uma coisa delicada e podia até ser comparada, de uma forma burra, a uma incitação ao suicídio, mas não era isso. Mas podia ser interpretado assim, de maneira que... isso é crime. 

 

JF: Tem alguma embirração linguística ou poética?

Tenho várias, sim. 

 

JF: Coisas que evita escrever ou que também não gosta de ler nos outros, figuras de estilo, formas poéticas, palavras, etc.? 

Ah, eu não estava a perceber a pergunta nesse sentido. 

 

JF: [risos] Estava a pensar em embirrações pessoais, então? Isso já percebi que tem [risos]. 

Eu já estava a carburar em relação à outra resposta, mas voltamos a esta. Não vejo assim algo muito concreto. De uma maneira geral, mas isso faz parte da minha maneira de ser, não gosto de expressões grandiloquentes. Acho que os versos mais tocantes e que continuam depois connosco não foram feitos nessa linha da grandiloquência. 

 

JF: E tem apreço por determinadas formas poéticas, palavras, figuras de estilo?

Eu escrevi muito pouca poesia propriamente dita. NoLivro de Afectos,há poesia, há versinhos, há linhas que não chegam ao fim, são versos, aí há. E há também nessequarto azulde que já falei. Mas não há assim muito mais.

 

JF: E no último livro que publicou não há poesia propriamente dita?
Não é poesia propriamente dita. Histórias são histórias ou historietas. E no texto sobre os malucos, às vezes, aqui e ali, há um tom poético. 

 

JF: Então o que é para si poesia propriamente dita? Implica sempre uma noção de forma, de técnica, de rima, de métrica?

Normalmente implicará, mas tenho de reconhecer que, por exemplo, no livro Um maluco vem pousar-me na mão, quando eu digo que gostava de contar a um maluco, desses mais credenciados, a história completa dos meus fracassos, gostava de ver como é que ele reagia, e sobretudo gostava de ouvir a sua gargalhada final, como conclusão resposta. Ora bem, esse texto é prosa, mas eu acho que é um texto poético, e haverá mais, sobretudo nos malucos.

 

JF: Senti ao longo da nossa conversa que o Rui Caeiro não se sente confortável com o mundo dos ditos literatos, com o meio literário. Faz sentido?

No que eu tive de convívio com o Herberto Helder, por exemplo, ele nunca falava de literatura. Era a uma mesa de um bar, estivesse quem estivesse, e falava normalmente com toda a gente, contava histórias, mas não era a conversa de um literato. E ele apresentava-se como uma pessoa comum. Não era o poeta, não era o buda, não. Era um homem que dizia palavrões, frequentemente, como os amigos dizem quando estão num bar: “esse gajo é um filho da puta e não sei quê...” 

 

JF: De alguma maneira não gosta dos poetas que fazem dissociação entre o poeta e a pessoa?

Bem, uma vez entrou no bar uma menina que estava a fazer um trabalho de faculdade para apresentar e tinha escolhido como tema a obra do HH, e ela disse: “gostava que me desse uns esclarecimentos sobre isto assim e assim”. Aí ele não era o gajo porreirão que estava ali à mesa a beber com os outros... Ela pediu que lhe desse umas ideias e ele disse-lhe: “minha menina, eu sou muito pouco dador”. E ali matou a questão assim. 

Respondendo agora à pergunta, eu sei que há outras maneiras, há outras posturas em relação à literatura que não são necessariamente piores ou mais imorais do que a minha. Isso é possível, desde que seja feito com alguma autenticidade. Agora nós vemos cada vez mais poetastros a surgirem e que já metem isso no currículo das gracinhas que têm feito. Isso é que não pode ser. A poesia não é uma gracinha, a poesia vinga-se das gracinhas. E há aí muita gente a escrever que está muito satisfeita porque tem tido bom acolhimento e não sei quê. E a poesia? Onde é que fica?

 

JF: E o que é o bom acolhimento? É ter os tais 300 leitores?

É o ser publicado em editoras fortes, em livrinhos de capa dura, letras em relevo, essas esquisitices que hoje estão muito na moda. Como já disse, um poeta por quem tive sempre uma afeição particular, quer como pessoa quer como poeta, de que falo nos Diálogos Marados, e com quem convivi, foi o António José Forte, e ele praticamente não falava de literatura. O que é que ele fazia em relação à literatura? Fazia-a. Quando ele escreve o poema de amor à Aldina, com quem viveu os últimos anos da vida, quando ele faz um poema sobre o deslumbramento do Maio de 68, aí está a lidar com a poesia. Na conversa, na sua conversa do dia-a-dia, isso praticamente não vinha à baila. É um tipo de quem tenho muita saudade e falo dele num dos textos de que eu gosto mais no meu livro, nos Diálogos Marados, talvez porque é sobre ele. É um texto em que eu pergunto ao Vítor – “Tu já és um fóssil do nosso meio literário, já viste partir muita gente e alguns deles eram teus amigos. De qual é que tens mais saudades?” E ele diz só esta palavra: “Forte”. E eu compreendo. 

 

Nos dez anos em que trabalhei com o Vítor Silva Tavares algumas vezes me divertia a fazer-lhe perguntas de chofre, a que ele devia dar respostas imediatas e concisas. Era um jogo nosso, a que também ele se prestava de bom grado. 

Uma vez disse-lhe: tu tiveste a oportunidade de conhecer muita gente, muitos coirões do mundo das letras. Muitos deles, decerto a maior parte, já morreram. Destes últimos, qual é aquele de que sentes mais falta?

A resposta veio pronta, seca e sem qualquer explicação adicional: 

-       Forte.

Leia-se: António José Forte. 

 

Rui Caeiro, Diálogos Marados. Livraria Snob, 2018. 

https://www.jogosflorais.com/entrevista/2018/9/entrevista-a-rui-caeiro

 


 

Rui Caeiro. Ínfimos ruídos que só os surdos ouvem


Faz 30 anos que Rui Caeiro começou a publicar uma obra tão singular quanto discreta. O seu livro mais recente é uma espécie de retábulo, uma mesa onde foi esculpindo aqueles contornos e diálogos que mais o marcaram

 

Há uma descrição terrível de uma passagem de “All the Pretty Horses”, de Cormac McCarthy, a que cheguei em segunda mão e que, confrontada mais tarde com o original, me pareceu aí bem menos flagrante. Gostara bastante mais do bolo que fora mastigando e adensando a memória do leitor que a lera e ma contou, e como lhe aguçara os sentidos. A imagem era a de um homem a andar por uma região desértica e que, ao fim de dias, avista algo que lhe renova a esperança: uma figura parecia mexer-se à distância. Recobrando um pouco as forças, estuga o passo para descobrir que a mancha que lhe acenava com sinais de vida era, afinal, um cato no qual uma tempestade havia empalado uma série de pequenos pássaros. Agarrados pelos espinhos, alguns mortos, outros ainda vivos, contorciam-se gritando numa pintura de terror contra a qual aquele homem via estilhaçar-se a última réstia de esperança que o acompanhava.

A imagem ficou, e nem interessa aqui cotejar o seu desvio face à de McCarthy, mas, por agora, notar o tanto que ganha a literatura quando é despojada do seu disfarce, quando dá a ver o seu rosto verdadeiro. Cioran diz-nos que o maior perigo que corre a escrita literária é deixar os adornos, que seria o mesmo que ver a filosofia desapossar-se da sua algaraviada. “Limitar-se-ão as criações do espírito à transfiguração de bagatelas? E apenas existirá alguma essência fora do articulado, no rito ou na catalepsia?” (“Silogismos da Amargura”, edição Letra Livre, 2009.)

Rui Caeiro é um desses autores cujos textos, quase sempre breves, têm algo de bolo alimentar. Um naco fibroso de carne que custa a engolir, a pérola odiosa que nos ficava na garganta nos tempos de infância em que tantas refeições acabavam por nos ensinar muito sobre negociações de paz. A escrita deste autor é dessas que acabamos por apreciar tanto mais quanto já fugimos de idílios, quando levamos areia de alguns desertos nos sapatos e não temos paciência para as grandes esperanças ou para os embustes do estilo. Provoca até uma certa urticária dar com um texto muito inchado com os seus tiques nervosos, as peles e joias de que se enchem para passar a ideia de que são finos, têm classe. No Verbo, já se sabe, os aristocratas são os não agenciados, os batedores que já não voltaram para denunciar os movimentos do inimigo, os que foram arrastados por alguma verdade, às vezes para muito longe de si mesmos.

Voltando ao Cioran dos Silogismos, diz--nos ele que “quando nos recusamos ao lirismo, preencher uma página torna-se uma prova: de que serve escrever para dizer exatamente o que tínhamos a dizer?” Sendo o autor de muitas plaquettes - e um dos mais dignos nisso -, a característica distintiva da escrita de Caeiro é prescindir rapidamente desse estado de graça e inimputabilidade que usa a generalidade dos poetas. Uma espécie de farda como a dos malucos no hospício, mas que serve antes para assinalar o grau superior de tolerância que se deve observar ao lidar com este ou aquele proferidor de insanidades delicadas, doces impropérios, flores de ouvido ou, muito raramente, o género de observações tão ferozes que fazem das mais gerais ideias do mundo pequenas jaulas. 

Muita edição de autor depois, e após muitas cumplicidades com a pequenada do meio da edição que vai traficando golpes de ar para dentro do reino bafiento, 30 anos depois de ter começado a publicar, Rui Caeiro não tem prémios, não se tornou um dos notáveis que figuram em todas as listas, não reúne grandes atenções ou auditórios para o ouvir dizer imbecilidades, até porque da convivência com os tantos gatos que deram aulas na sua sala ganhou aquele tipo de autovigilância que não deixa margem a um rato para escavar os túneis da vaidade (coisa que não deixará de ter, como todos nós). E três décadas depois de, aos 45 anos, ter publicado a sua primeira edição de autor, surge-nos uma das raras edições bojudas que deu à estampa. Um livro duplo, costas com costas: “Diálogos Marados” / “Um Maluco Vem Pousar-me na Mão”. A edição da Livraria Snob é um desses mimos de bolso, um pequeno cantil para goles de despertar caminhos.

“Diálogos Marados” é um repositório de coisas ouvidas, baralhos partidos, episódios, anedotas, aquele gesto de confidência que já conhecíamos de outros livrinhos, naquele tom de um “eu” descrito por Vitor Silva Tavares “que recorda e medita, a fala que sussurra e evita o grito, a delicadeza de focagem e tratamento de pessoas e anedotas, a subtileza do humor que de sobremaneira incide sobre o próprio para mais se autorizar”. Um livro de testemunhos, um balanço apurado entre os anos, entre diversos humores e estados de espírito, mil conversas tidas e recontadas, até ao grão que no seu diâmetro ínfimo aplica o seu peso de forma tão aplicada que, afundando-se na pele, vira um sinal. E surgem naturalmente cúmplices e amigos, alguns dos personagens da baixa mitologia marginal, que normalmente só aparecem na literatura na chave das libações e homenagens hoje tão vulgares quanto redondas e exageradas, nos cadernos de ajustes de contas, no rosário das mesquinhices em feicebuques e coisas que tais... (E disto, em alguma medida, a culpa no cartório está muito bem distribuída.) Agustina, Sophia, Natália, César Monteiro, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Manuel de Freitas, Eduardo White, Chaguito e até Le Corbusier surgem nestas páginas na exigente companhia de malucos e putas, de pequenos danados mais ou menos anónimos, vivos e mortos trocando lembranças, mas vamos desconfiando que o protagonista não são eles, mas os acasos maravilhosos, a própria ementa da vida. Neste livro, o elogio é tirado do caminho, e passando a mão pelo pano também não se sentem engulhos ou a cabeça de alfinetes. É, de resto, um bom antídoto para o habitual registo sobre o meio literário, ficando margem para a sanação das aborrecidas quezílias que vigoram num tão minúsculo quanto espartilhado reduto.

Caeiro não deixa de ser uma mordaz testemunha, e ao longo dos anos foi fazendo pela paz - essa que não resolve grandes conflitos mas que, pelo menos, sabe rir-se deles, e alhear-se quando são insignificantes - o que Sun Tzu fez pela guerra. Não tanto para seguir uma linha de atuação, mas para trocar antagonismos por equações, estratégias, trazer perspetiva de fundo, a começar pela morte. Este livro tem essa presença, a de ter “respirado a Morte”, e o salutar desinteresse por tudo aquilo que faz da literatura uma zona de sofisticadas intrigas para não pensar nisso, não se ser avassalado por essa dolorosa certeza.

Num admirável texto a propósito de uma antologia que surgiu há três anos, o excelente crítico e poeta José Ángel Cilleruelo encontrou a mais justa definição desta singular voz na poesia portuguesa contemporânea ao notar que “Rui Caeiro age como um fabulista clássico com um toque minimalista”. E este livro é uma recolha dessas pérolas que a memória foi trabalhando, vestindo de cuidados e sentidos, com a força surpreendente da imagem do cato em que a tempestade pregou os pássaros, apanhados a meio do voo, ou pendurados por umas quantas penas, nesse balanço de vida e morte. E o que Caeiro consegue é não apenas recusar o lirismo, mas a própria literatura, para escrever o silêncio que é, no fim de contas, a verdadeira estrutura que liga o nosso espanto, essa força que ainda nos dá corda. No fundo, trata-se de operar nos sentidos uma inversão, escapando às grandes toadas para ficar atento - como disse Caeiro nuns versos publicados há 20 anos - a esses “ínfimos ruídos de importância extrema/ Que só os surdos/ ouvem”... Ruídos como o do próprio “tempo a passar, o interior da terra/ a tremer, [e] o bichinho do ouvido/ a escutar”.

É um best-of do que a vida deixou aos pés de Caeiro, um livro tocante e uma lição sobre o que o convívio da poesia lhe ensinou, não sobre a enxertia de variações, mas sobre calibre e precisão, mesmo em condições adversas. Nas costas deste livro temos um dos ciclos a que o poeta nos foi habituando, neste caso sobre a “Voz da razão dos loucos. Da razão perdida ou desperdiçada dos loucos./ Voz da sem-razão. Da razão silenciada, vilipendiada, razão inaudível, intrigante razão dos loucos./ Voz desrazoável, que eternamente busca o seu espaço, a sua lógica./ Lógica que todavia residirá algures, num nada evidente algures, que não se sabe onde seja (um farrapo de tempo que se desfez?). Desde sempre aguardando, cansada voz, a sua vez: um Colombo que a descubra.”

Este é um livro que nos reconcilia com a noção de que a arte, a poesia, qualquer que seja o desvario com que o coração se sobressalta e se embebeda ouvindo o seu próprio bater, podem ser também uma forma de fazer as pazes com a vida. Caeiro sacode o vazio e o terror trocando com a vida um daqueles abraços que, quando começam a ficar demasiado apertados e sentimentais, acabam com um apalpão.

Diogo Vaz Pinto, Jornal i, 28/03/2018

 

 



Rui Caeiro (1943-2019). Do que é que se morre enfim senão de uma extrema e tão generosa lucidez?


Desapareceu uma das mais queridas presenças do meio literário português. Poeta, tradutor, editor, e, para muitos, o verdadeiro mestre Caeiro.

 

Talvez a morte fosse só o que lhe faltava para que da vida soubesse a história inteira, e o mais fácil é imaginá-lo sorrindo, já do outro lado – lado nenhum, ou só fantasma nosso – deitando-nos uma mão, tão levezinha que quase não se sente; que estará cá sempre. Rui Caeiro morreu esta manhã. Tinha 75 anos, mas ultimamente já levava como ofensa uns maus tratos desnecessários a quem só queria estar cá mais um bocado. E nem era só as forças que lhe faltavam, ou a voz, que se lhe entaramelou há dias, quando, após um enfarte, lhe substituíram o coração por uma triste coisa artificial, mas começava a faltar-lhe também a paciência. Se era para morrer, então a decisão dele estava tomada. Afinal, como escreveu certa vez: “Adiar o acto é passar a viver a vida de um outro. Adiar é, por isso, uma outra forma de morte – por suicídio também.”

Debatia-se (mas pouco) desde há uns anos com um cancro, e não estava louco desse heroísmo de o levar vencido. Só tinha ganas que lhe trouxessem as novidades, afinal, da vida, e mesmo dos dias, ele gostava. E, se se autoretratava como “um homem de áridas certezas”, isso também lhe servia para que a coisa não descambasse, e trazia sempre “uma esperança”, adiantando que “a essa arrasto-a pela mão pelos cabelos pelas orelhas/ páro escuto e olho antes de atravessar// com ela. E não sei o nome. E não me preocupo”.

Poeta e tradutor, antes de tudo foi um leitor desses que qualquer reino que lhe dessem o trocaria por uma sentença justa, seca, final, como as que fazem os deuses desejarem ser moscas para escutar os lampejos de alguns homens. De todas as riquezas terrenas, talvez só as sumptuosas descrições de haréns o fizessem tecer um fio de baba luzindo de ambição. Isto para dizer que não seria nunca a imortalidade a tentá-lo, e que, juntamente com os livros, reconhecia o privilégio da carne, de se estar num corpo e ir com ele para a refrega do encanto. Morrer não foi, por isso, mais do que a perda desse vínculo com o desejo, com a paixão e o amor. E se este elenco, para os que não têm o gosto da minúcia, são termos reversíveis, a sua sabedoria era o despenhadeiro que se cava e que nos enobrece, sabendo a diferença que faz preferir uma palavra a outra. Afinal, uma boa descrição de poeta pode ser essa que se recupera de uns versos que se lêem no seu “Baba de Caracol”, sendo o poeta aquele que tem as “palavras como rostos, como histórias/ por contar”.

Antes de um retrato mais abalizado entre essas tombadas trivilidades que representam a vida civil de um homem, é bom notar que, em tudo quanto foi fazendo, e no amor que dedicava aos livros, Rui Caeiro nunca o fez para efeitos de selecção anormal da espécie. Não o atraíam nem comungava com os preceitos e maneirismos dos que, em virtude de alguma cultura que possam ter adquirido, se julgam eleitos. Não só não tinha como desprezava os enlevos por “beldades mortas e pianos tuberculosos”. Mas apreciava as “eternas dúvidas”, essas inquietações que lançam um pano sobre o espírito, lhe denunciam as formas, e nos tornam sujeitos em comum, implorando do caos a clemência de um sentido qualquer, por mais mísero que seja. Os mesmos sujeitos que, por horror ao vazio, o povoam, arrancando os deuses e os mitos às trevas. Assim, e onde quer que fosse, antes e depois da bengala em que vinha apoiando os últimos anos, trazia a bater na perna o saco de plástico com dois ou três livros e algum jornal do dia... Como o mais discreto e parcimonioso elemento de um prodigioso conselho de sábios, tinha a generosidade de ouvir com a inabalável confiança de que qualquer um pode dar-nos a frase que salva o dia, e essa confiança tornava-o uma presença afável, e que deixará, não só a mulher, Manuela, e o filho, Pedro, ou as netas e o neto, mas muitos amigos a sentir a solidão como uma coisa física, uma doença dessas que deixa manchas na pele.

Nascido em Vila Viçosa, a 27 de junho de 1943, Rui Caeiro vivia em Oeiras, estava reformado depois de ter sido advogado nos quadros da EDP. Desse período, as lembranças mais gratas que guardava relacionavam-se com uma revista cultural de que foi responsável, ligada àquela empresa, e como isso lhe deu a oportunidade de entrevistar alguns dos escritores e artistas que mais admirava, figuras como Agustina Bessa-Luís, José Saramago e Cruzeiro Seixas, entre outros. Só tardiamente começou a publicar, e, com todo o seu cuidado, vigilância, nas últimas três décadas foi uma das presenças mais singularmente convincentes do meio literário português, mas sempre num percurso que se desenhou subterraneamente, fosse em primorosas edições de autor, através de cumplicidades bem medidas, ou em pequenas editoras; à glória sempre preferiu o “precipício concreto de um abraço”, e gabava-se de tratar por tu ou conhecer relativamente bem qualquer dos seus leitores. 

A par da paixão pelos livros, havia ainda a afinidade que tinha com bêbados e malucos, essas tribos dispersas, cujos membros nele reconheciam o mesmo sangue destilado pela doideira e o lirismo, alguém com quem partilhavam a aristocracia desesperada de se ter a vida por um fio. (“Vida, e vida presa, e apenas por um fio, é coisa que toda a gente tem. Embora nem toda a gente saiba que tem, ou dê por isso. Nem toda a gente está cá para o efeito. Dar por isso não deixa de ser, não obstante, a melhor das razões para cá se estar. E não há assim tantas.”)

Além do importante papel que teve ao longo de uma década, na ajuda e companhia que fez a Vitor Silva Tavares, na editora &etc, traduziu uma data de gente, mas sempre e só os autores e as obras que admirava, e, assim, foi compondo ao acaso um destrambelhado e vivificador cânone, que contava tanto com os mais distintos como com os mais indelicados. Ninguém como ele demonstrava uma tão grande compreensão face a esses que amarram os seus demónios aos postes que demarcam as zonas hostis do espaço literário. Se Michaux era o seu poeta, e Kafka o seu prosador, aplicou tanto o instinto como o estudo ao procurar nesta língua uma mão que fizesse justiça às de autores como Rilke, Desnos, Pavese, Yourcenar ou Michaux. E mesmo no que toca à poesia, numa das raras entrevistas que lhe fizeram (para o site “Jogos Florais”), logo a abrir, só teve de dizer a sua verdade para responder de uma forma que o distingue de quase toda a gente que escreve neste país e se envaidece com isso. Perguntam-lhe se gosta de poesia, e ele diz que “não se trata de gostar ou de não gostar, trata-se de que se tem de a aceitar quando ela se impõe.”

Antes que nos entreguemos a “diálogos marados” com o fantasma imenso que nos lega – e a sua obra reunida deverá chegar às livrarias já no próximo mês com selo da editora Maldoror, e sob o título “O sangue a ranger nas curvas apertadas do coração” –, resta ainda o velório, amanhã, a partir das 17h30, na capela da Igreja Nova de Oeiras, ficando o funeral marcado para as 11h de quinta-feira, hora em que o corpo sai da capela em direcção ao cemitério de Oeiras.

“Vem um dia em que o corpo não responde/ não acorda não condiz/ não se habitua// É uma primeira e definitiva recusa: alheio/ não se dá ao trabalho de/ avisar ou despedir-se//– o corpo”, escreveu ele há muito tempo... Chegou esse dia, e tem graça, Rui, pois ia ligar-lhe para lhe ler uma coisa. Estou de roda de um livro que me falou de si. Há uma passagem, muito especialmente, que lhe diz respeito como a muito poucos. É na recolha de textos de Francisco Umbral sobre outros digníssimos literatos, e tem como título uma pergunta que, justamente, poderia ser sua: “E como eram as ligas de Madame Bovary?” Num desses textos, Umbral lembra-nos uma frase de Voltaire sobre o “Quixote”, adiantando que lhe parece ser “a mais inteligente glosa ao livro cervantino e à verdadeira personalidade do fidalgo da Mancha”.  Diz-nos que isto foi o que ocorreu a Voltaire, já maduro: “Eu, como D. Quixote, invento para mim próprio paixões só para me exercitar.”

E o espanhol continua: “A expressão é bela e melancólica referindo-se ao próprio Voltaire, mas é absolutamente reveladora referindo-se a D. Quixote. Nunca acreditámos que D. Quixote estivesse louco, mas ninguém melhor que Voltaire alguma vez lhe denunciou a lucidez. Chegado ao meio século de vida (o que era muito para um homem daquela época), Alonso Quijano decide que tem de dar o salto, que começou para ele a velhice, que começa a ser um homem desapaixonado (excepto quanto às paixões vicárias pelos romances) e que precisa de ‘inventar’ (hoje diríamos incentivar) as paixões que já não sente, ou sente apenas de forma muito ténue (…) Alonso inventa a vida que nunca teve e que lhe falta. E creio que será este o mais profundo ensinamento do livro, com a permissão dos cervantistas, e que só Voltaire o viu.”

E, se digo que isto me lembrou do Rui, isso deve-se à sensação que sempre me deu de que nunca precisou de fantasiar, mas que, por detrás das suas lentes garrafais, foi aprendendo a ler mais fundo, e a delirar quando lhe apetecia, com quem lhe apetecia, fosse um bêbado, um maluco ou um moinho, e não porque estivesse velho ou porque a vida o tenha decepcionado, mas porque a sua lucidez era essa capacidade de enlouquecer com as coisas do mundo como quem lê, quem, se lhe fizéssemos o cumprimento, perguntando como vai, responderia sorrindo: bem muito obrigado. Afinal, era esse o título de um dos primeiros livros: “Sobre a nossa morte bem muito obrigado”.

Diogo Vaz Pinto, Jornal i, 29/01/2019




CARREIRO, José. “Rui Caeiro (1943-2019)”. Portugal, Folha de Poesia, 31-01-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/rui-caeiro-1943-2019.html



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