Entrevistador: Diogo Vaz Pinto. Fotografia: Mafalda Gomes Nascer do Sol, edição n.º 789, 2021-10-09 |
Franco
Alexandre move-se como poucos no mais ardiloso alcance da língua, tendo-se
sempre recusado a ficar circunscrito ao pequeno recreio literário. Nascido em
Viseu, em 1944, reaparece depois de uma longa ausência, e mostra-se
surpreendido com o culto que hoje lhe é devotado.
Ler mais: “António Franco Alexandre, Poeta”,
entrevista de Diogo Vaz Pinto a António Franco Alexandre.
In: Nascer do Sol, edição n.º 789, 2021-10-09
Franco Alexandre, Jornal i, 2021.10.11
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António Franco Alexandre.
"Sinto-me
ok no meio das galáxias"
Diogo
Vaz Pinto, Jornal i, 2021-10-11
À vontade entre vivos e mortos, este poeta move-se
como poucos no mais ardiloso alcance desta língua, tendo-se sempre recusado a
ficar circunscrito ao pequeno recreio literário. Nascido em Viseu, em 1944,
Franco Alexandre reaparece depois de uma longa ausência, e mostra-se surpreendido
com o persistente culto que hoje lhe é devotado pelos leitores.
António Franco Alexandre é
uma figura verdadeiramente inquietante. Escreveu uma boa parte dos mais
memoráveis versos das últimas décadas, versos que nos transfixam, usando sempre
de uma contenção e vigilância insuperáveis. Recorta-os com estilete, apanha-os
eles mesmos surpresos, e entrança-os com aquela elegância capaz de impor
sobressaltos num estilo de curvas lentas.
É um poeta que se entrega
obsessivamente a certas impressões privilegiadas, essas em que, pelo retorno da
sensação passada, se consegue pôr em movimento a imaginação, fazendo cintilar
maravilhosamente não apenas as experiências que trazemos mais caladas no fundo
de nós, como aquelas que o desejo vai tecendo ao longo do seu cristalino fio de
baba.
Ao invés de um mero apego
formal às técnicas e fórmulas do passado, ao fio e aos nós impossíveis de
desatar dos clássicos, há nesta obra um desafio que não se contenta com meros
exercícios de retrospecção ou pastiche, que sabe equacionar o tempo passado
como um balanço interior ao tempo presente, ferindo de morte a própria nostalgia,
desenhando novas e subtis articulações, para formular imagens que se nos
reflectem na pele, arrancando às aparências um encadeamento sumptuoso, algo de
mais profundo, um fulgor que conhece demasiado bem a carne para se deixar
enredar no seu frívolo destino. “enquanto o coração se prende às cordas/
cruzadas do silêncio, esmago/ entre os dedos uma gota estreita de noite,/ fecho
os olhos ao gás das granadas em voo,/ escrevo, rumino, peso as estrelas/ ao
fundo da garganta moída,/ buscando entre polícias de dentes aos ombros/ uma
mancha de vento que nos sirva de céu/ e um corpo que permita/ o repouso
velocíssimo do esperma (...) uma ternura, entendes, uma ternura de ombros,/ de
cabelos completos, de nervos na água,/ de dedos constantes ao calor dos ossos,/
enquanto o coração se agarra à noite espessa/ ou me conhece um caule de
elegância nos pulsos.”
Assim, por meio de aberturas
inesperadas, inflexões que exprimem o ritmo infinitamente variado das trocas
mais íntimas, com os gestos que assinalam esse paraíso dos instantes
essenciais, vamos redescobrindo o mundo naquele fascínio do que se sente
arrebatado mas não perde, ao mesmo tempo, a sua diferença e autonomia. Mundo
que, assim, “não cessa de nascer, de aparecer desaparecer/ no meio das mais
inúteis palavras”.
Depois de um período largo de
silêncio e ausência, em que o poeta se desinteressou em absoluto da vida
política e cultural do país, regressa agora já sem qualquer inocência, mas com
aquela generosidade de quem volta a sentir-se atraído pelas afecções e dúvidas
comuns, bem como por essas noções mais ou menos inexprimíveis que bailam entre
nós.
A poesia, como ele vincou
certa vez, é entre as artes da linguagem “o lugar do rigor, da precisão, da
forma sensível organizada intelectualmente, da inteligência feita corpo, ‘mão
do espírito’. Nem não se sabe que malabarismo verbal indiferente, nem mítica
expansão de sensibilidades mal sofridas, mas afirmação do mundo e da linguagem,
num gesto só, viver, escrever, apreender, criar, indissolúveis. Leitor, ou
crítico, terão antes de mais que entrar no espaço de pensamento vivo, no
instrumento e lugar de conhecimento que o poema é, que discutir a lição de real
que o poema é, sob pena de se ficarem pela nulidade de impressão toscamente
‘subjectiva’”.
Agora que se decidiu a
retomar o fio comum que nos liga, acaba de chegar às livrarias uma reunião da
sua obra poética, revisitando aquela que foi levada a cabo em 1996, e incluindo
os livros e alguns dispersos publicados posteriormente, juntamente com um
conjunto de inéditos com o título Carrocel.
Esse foi o motivo para uma
longa conversa em que o poeta começou por falar na estranha impressão que lhe
causa hoje encontrar poemas seus dispersos pela internet, reproduzidos muitas
vezes de forma truncada, de tal modo que, em face deles, sente uma espécie de
contracção com os dentes, rejeitando-os: “eu não escrevi isto”.
O que se sente muito na
poesia que hoje se publica é que os poetas mais novos não sabem o que é o
verso.
Antigamente, era convencional,
algo que os poetas sabiam e que estava neles, não era preciso sequer pensar
nisso. Depois, parece que isso se perdeu. Quando se lê poesia tem de se estar a
ler versos. Não há como contornar isto.
Se calhar essa perda sinaliza
uma perda na relação com a memória. Para as gerações anteriores, que se
habituavam a trazer versos na memória, a andar com eles, como que a mastigá-los
e reconhecer as suas propriedades, era claro que o verso é uma proposta feita à
memória.
Com certeza. Quando era miúdo
sabia imensos versos de memória. E mesmo mais tarde, ainda adulto, orgulhava-me
de saber o Le Bateau Ivre de cor. E, como esse, muitos outros. Hoje, o que
guardo são fragmentos. Mas houve de facto uma fase em que nós não estávamos
interessados em fazer nem versos silábicos nem verso quantitativo (que não
existe)... Não queríamos insistir no verso tradicional, portanto entrámos na
crise do verso.
Estávamos todos a fazer o
verso rítmico, que na verdade ninguém sabe muito bem o que é... E estamos! Mas
esse verso rítmico permite rapidamente passar-se a uma coisa que já não é verso
nenhum. Frequentemente, e sobretudo nos jovens poetas, dou por mim a indagar
porque é que esta ou aquela pessoa não escreve prosa. Seria muito melhor.
Porque a força que ali vemos é a da prosa e não a do verso, que necessariamente
limita um certo fulgor. E é certo que nas últimas coisas que escrevi o verso,
por vezes, é muito feio. Tem a fealdade possível. Não é que goste muito de
insistir na fealdade, mas foi um caminho.
Quando fala nas últimas
coisas que escreveu, refere-se ao livro inédito (Carrocel) que surge já nesta nova
reunião da sua obra?
Sim.
E de que forma sente que este
vem introduzir alguma diferença na sua obra?
Bem, antes de mais, em
relação a isto das entrevistas que agora é suposto dar-se, o que tenho vontade de
dizer é que o que deveriam fazer era entrevistar leitores e não os escritores.
Porque, a partir do momento em que publicamos, o interessante é o que têm a
dizer os leitores. O escritor já disse o que tinha a dizer, e certamente não
terá nada de muito especial a acrescentar. Já o leitor, se for um leitor
inspirado, pode trazer algo de novo, de muito relevante. Eu tive que ler tudo.
Não estava nos meus projectos, mas, a certa altura, no processo de revisão,
dei-me conta de que o melhor seria reler tudo. Mas eu não sou um leitor
inspirado.
E sentiu a tentação de mexer?
Senti. E mexi nalgumas coisas
que era absolutamente essencial mexer, sobretudo em Uma Fábula. Senti a tentação de
eliminar uma série de coisas, mas acabei por me conter. Cheguei ao fim e achei
que seria uma cobardia estar a rasurar uma parte significativa do percurso. Mas
neste confronto passei a conhecer aquilo como leitor. A verdade é que não o
conhecia.
Chegou a sentir uma espécie
de distância que lhe desse a liberdade de ser duro com o que escreveu sem
sentir que estava a lidar com a sua obra, mas como se fosse já a obra de um
outro?
Não. Acho isso impossível. E
é por isso que desconfio muito daquilo que os escritores – incluindo eu – possam
ter a dizer sobre a sua obra.
Mas esse é um aspecto
interessante, porque nas poucas entrevistas que deu, existe uma espécie de
pudor na forma como responde às perguntas. Desde logo, não se sente que esteja
a acrescentar alguma coisa à sua obra, o que se sente é que parece estar a
corrigir certos problemas de interpretação que tenham surgido.
Até isso acho ambicioso.
São entrevistas bastante
concisas e sérias, ao contrário do que é usual. Parece que muitos escritores se
vingam de não terem conseguido dizer as coisas por escrito nas obras e põem-se
muito palavrosos a dar conferências quando lhes fazem entrevistas.
(Risos) Pois, isso acontece.
Mas nas entrevistas que dei, ou senti que alguma coisa falhou, como na
entrevista a Pedro Serra para a Inimigo
Rumor, ou quando correu bem, como a que dei a António Guerreiro
para o Expresso,
a verdade é que depois não a quis reler. Também me aconteceu isso com algumas
partes do livro. Há um ciclo de poemas chamado “Aniversário”, que o Luis Manuel
Gaspar foi buscar a um dos números da revista Relâmpago, e esse disse-lhes que preferia não
reler.
Não me lembrava sequer de os
ter escrito. Acabei por os reler, e não fiquei seguro se gostava se não
gostava... Se escrevesse um livro de filosofia, de história ou de matemática, e
me viessem perguntar alguma coisa sobre ele, aí sinto que talvez tivesse coisas
a dizer. Mas face a um poema já não. Só posso fazer o mesmo comentário que
faria um leitor, mas com a desvantagem de me levar a sério. Enquanto que o
leitor não tem obrigação nenhuma de me levar a sério. Inevitavelmente, vejo-me
condenado a levar-me a sério porque estou preso a isto: sou eu. Para grande
desilusão minha... (Risos)
Houve obras muito robustas na
forma como prepararam o espaço crítico à sua volta, a recepção daquilo que
vieram expor, como é o caso de Jorge de Sena ou Joaquim Manuel Magalhães. Este
último, através do sagaz e penetrante exercício da sua função crítica dominou
de certo modo esse espaço num período de décadas, ao passo que a sua poesia,
que não se deixou cercar por um grande aparato crítico, acabou por vingar junto
dos leitores sendo uma poesia lida numa chave bem mais pessoal.
Isso foi uma enorme surpresa
para mim. E foi uma surpresa recente. Em dois mil e qualquer coisa decidi que
não queria ter mais nada a ver com isto. Não era só não querer escrever, mas
também não querer ler, fosse a poesia portuguesa, fosse sequer as questões mais
gerais da cultura. Deixei de ler jornais, desliguei-me e passei quase 20 anos
de costas voltadas a todo esse regime.
Quando voltei à superfície,
de repente fui meter-me no Facebook, que se revelou muito importante nesse
esforço de reimersão, e foi então que me dei conta de que havia várias pessoas
que tinham lido o que eu escrevera e que se mantinham interessadas. Foi uma
imensa surpresa para mim. Dei-me conta, inclusivamente, que havia leitores que
tinham até escrito sobre a minha obra. Tinha resolvido esquecer-me de tudo. E
apaguei essas coisas, mesmo as leituras que já tinham sido feitas antes. E, na
verdade, estava muito bem com isso.
Acha vantajoso para um poeta
colocar-se nessa posição?
É muito vantajoso.
Até porque quando lhe é
perguntado quais são as suas influências na poesia portuguesa, fala em Camões,
Cesário Verde e António Nobre... Se os outros dois são já referências
inescapáveis, Nobre é uma figura atirada para a berma da estrada e é quase
preciso coragem para se dizer que se gosta dele nos nossos dias.
Mas é um grande poeta, não é?
Talvez seja difícil gostar por causa do saudosismo, da ligação ao Estado Novo,
mas não há que ter grandes complexos a respeito daquilo que nos seduz. Sempre
gostei de António Nobre, e gosto.
Entende que a razão por que a
sua poesia é lida de forma tão pessoal pelos leitores pode ser por esta ser
também para si uma poesia que mexe com coisas pessoais e não tanto por a
encarar numa perspectiva crítica, acotovelando-se com as obras dos seus pares?
Aí há uma coisa qualquer que
me é difícil exprimir. A verdade é que não estou assim tão interessado em
literatura como isso. Não me mudou a vida. Houve algum dia em que decidi que ia
escrever. Mas, para além disso, não sei dizer bem de onde vem nem o que é ou
significa essa vontade de escrever poesia.
Quer dizer, pode dar-nos a
vontade de escrever cartas de amor, agora a vontade de escrever poesia é uma
vontade muito estranha. E, no meu caso, essa vontade tem de ser fortíssima
porque eu sou extremamente preguiçoso. Além do que tenho uma certa repugnância
pelo acto da escrita. Não sei de onde me vem a vontade, mas não é uma coisa que
eu identifique como literária. No que toca a necessidades literárias, chega-me
a leitura.
Há um autor francês, o Pascal
Quignard, que depois de um período de grande encanto pela música, de ter
chegado até a dirigir um festival de música, às tantas afastou-se e acabou por
dedicar-lhe mesmo um certo ódio, tendo escrito um livro com o título O ódio à música, no qual, a certa altura,
diz que onde acabou por redescobrir a música foi ao fugir das cidades, onde
esta impera sob a forma de ruído, conseguindo que enfim a música lhe chegasse
quando lhe foi possível interrompê-la. Não é a poesia um pouco isso, esse vigor
de um maestro que, em vez de mandar este ou aquele músico tocar, é o maestro
que antes manda calar?
É uma boa imagem. (Pausa
prolongada) Não sei. Não será diferente para cada um? Não será mesmo diferente
para casa um em cada momento? Ao reler a minha obra, aquilo de que me ia
lembrando foi de aspectos mais materiais como o modo de produção. Cada um dos
meus livros teve modos de escrita ou de produção completamente diferentes. No
tempo de A Pequena Face,
passava aquilo à máquina...
As máquinas foram sendo muito
importantes. A minha geração começou toda por escrever à mão, depois houve um
momento em que se passou a escrever à máquina, e, hoje, ao reler A Pequena Face, isso sente-se
logo. Não só foi escrito à máquina como, na altura, eu fazia fotocópias e
cortava os versos, as estrofes e depois voltava a montar. Nunca mais voltei a
fazer isso. Acho que a produção explica muitas coisas. Hoje, a vontade de
escrever é seguida depois por quinze dias em que escrevo 60 a 70 páginas
manuscritas, compactas. Depois largo.
Passados uns dias olho para
aquilo e dá-me a sensação de que é tudo uma porcaria imprestável... (Risos)
“Isto não tem ponta por onde se lhe pegue.” Depois, com um bocadinho mais de
calma, volto a olhar para aquilo, e, passados uns dias ou umas semanas, lá o
descubro: “isto tem aqui umas coisas muito interessantes no meio”. Então, aí
começa o trabalho de andar à procura dessas coisas e tirá-las daquela massa de
psicologia, de outras considerações sem jeito...
Então aí ainda não existem
versos?
Já existem versos, mas estão
ali metidos. Estão naquela massa e é preciso desentranhá-los. O Gide dizia que
funcionava como uma batedeira, como essas que se usam para fazer manteiga. Para
mim essa imagem não funciona porque vejo mais aquilo como uma forma de
extracção e recombinação. O que se extrai a certa altura já são versos, são já
coisas cristalizadas, mas também ideias. O resto vai para o lixo.
Agora, quando se põe essa
questão do pessoal ou impessoal, diria que a poesia é pessoal mas no mau
sentido do termo. É pessoal porque é psicológico, idiossincrático... Parece-me
que muitas vezes aquilo que fica é algo que nos chegou sem grande mérito. O
mérito está mais no trabalho de extrair essas coisas da massa imunda.
João Oliveira Duarte: Às
tantas há uma viragem na poesia do António, em Quatro Caprichos, que acompanha a chegada do
Manuel de Freitas e da turma dos Poetas Sem Qualidades. Quando toda a gente vai
picar o ponto no retorno ao real, numa exacerbação da experiência identificada
com o indivíduo, o António começa a fazer uma coisa em contra-movimento face a
essa tendência.
Fui amigo do Joaquim [Manuel
Magalhães], do João Miguel [Fernandes Jorge] e do Helder [Moura Pereira], mas
nunca me senti parte de nenhum grupo poético.
Mas quando a poesia se tornou
altamente literal foi quase como se esta estivesse a ser escrita em função dos
ditames da crítica, respeitando uma espécie de toque de marcha, sendo que JMM,
durante um longo período, parecia ditar para os mais novos quais os caminhos
que havia a explorar... Ao passo que ele mesmo se furtava depois a ficar preso
a essa receita, inventando sobre o telhado do seu exercício crítico ao passo
que os outros ficavam debaixo.
Exactamente.
Se os Poetas Sem Qualidades
se resguardavam debaixo desse telhado da crítica, a sua poesia dava então uma
volta exuberante, com margem para a fantasia, a assunção clara da grande
liberdade poética, e até houve um claro aceno aos autores clássicos, como a
remissão para as traduções que Ted Hughes fez de Metamorfoses de Ovídio, que às tantas
parece que partilhou casa consigo.
(Risos) Não tanto. Foi desse
livro que retirei uma epígrafe, que preferi agora retirar do livro. Já
expliquei que tenho tendência para retirar as epígrafes porque estas são muito
perigosas na medida em que lembram o leitor que ele podia estar a ler coisas
muito mais interessantes.
Quando veio de novo à
superfície há uns anos, qual foi a sensação? Que tipo de oxigénio respirou no
que respeita à poesia que se tem publicado por cá?
Fiquei surpreendido com a
vitalidade da poesia portuguesa mais nova. A certa altura, nos anos 80 e 90
fiquei convencido de que a poesia em Portugal ia definitivamente desaparecer,
de que ia ficar uma coisa completamente residual, aqueles poemas que se
publicam nos jornais de província e pouco mais. Isto além de umas figuras que
são sempre necessárias para o show político...
Mas surpreendeu-me constatar
que não, que há jovens poetas, e poetas que são, no mínimo, interessantes.
Muitos ainda não se sabe o que é que vão ser, mas há muitos. Não quer dizer com
isto que tenha um conhecimento mais profundo do panorama que agora se desenha,
não tenho. A verdade é que estou interessado em imensas coisas. Ainda... Por
isso, não me sinto culpado de não conhecer tão bem a literatura portuguesa como
em tempos conheci.
Então não há em si aquela
nostalgia que tantas vezes se torna venenosa, pois rejeita sempre o que há de
novo face a uma ideia romântica do que houve em tempos?
Não, de todo. E a verdade é
que o antigamente, o meu pelo menos, ainda é o do antigo regime. E disso não
tenho saudade nenhuma. De resto, como toda a gente, tenho saudades de pessoas
ou coisas, mas não é porque o antigamente fosse melhor, mas porque estas
morreram ou se perderam. Há aquela frase do humorista búlgaro Karl Valentin que
diz que “o futuro antigamente era melhor”...
Essa é uma boa frase e que
hoje claramente se aplica. Quando estou com pessoas muito jovens nestes dias
percebo que o futuro, tal como elas o encaram, se degradou em relação àquela que
era a nossa perspectiva. Mas isso não se prende tanto com a literatura.
Já se falou muitas vezes que
cada um dos seus livros é uma criação autónoma, que seguem caminhos muito
diferentes, deixando à vista contrastes muito fortes. Este Carrocel parece ser um livre algo
problemático, porque também não surge de nenhum modo como um balanço ou uma
sutura qualquer, mas lança-se em mais outra e nova direcção.
Este é um livro novo como
outro qualquer. Não é um testamento, embora eu até possa morrer amanhã, e não pretende
ser nenhuma grande lição, um desfecho ou conclusão. É simplesmente um livro que
se me pôs diante como outro qualquer. O facto de que o livro possa apresentar
dificuldades ou até decepcionar os leitores não me perturba. De resto, já estou
habituado.
Os leitores foram sempre decepcionados
por aquilo que eu publiquei. Aqueles que gostaram de As Moradas detestaram os Quatro Caprichos. Os que
gostaram deste detestaram o Uma
Fábula, e os que gostaram desse não apreciaram o Duende. Foi sempre assim.
Os poemas deste Carrocel parecem mais espinhosos,
menos cantantes.
Não tive essa sensação de que
o Carrocel fosse
um livro tão espinhoso como isso. Para mim é uma coisa pequenina, circular, e
que tem um tema, contrariamente ao habitual. É curioso porque, entretanto, saiu
um livro póstumo do Daniel Faria, o Sétimo
Dia, e o Carrocel também
é o sétimo dia. É exactamente o mesmo tema. É sobre o Sábado... mas também se
pode dizer que é sobre a semana.
A semana é um pouco agreste,
mas está rodeada desses dois momentos de descanso. Isso estava lá desde o
primeiro momento como uma estrutura, e que me interessava porque é extensível.
Posso até, eventualmente, vir a fazer uma nova edição com poemas que deixei de
fora.
Este ficou uma coisa pequena,
com vinte e tal páginas. Normalmente, tenho feito livros maiores. Aliás, no
Índice dos Poemas, Carrocel vem correctamente
identificado como poema, nao como livro. E é um poema só, não é uma colecção de
inéditos. Tinha outros fragmentos, mas não estavam a funcionar bem e, por isso,
deixei-os de fora. Mas acho que o livro tem uma certa doçura, porque tem esse
enquadramento do Sábado.
Poemas não tem a dimensão habitual
dos livros que reúnem a obra poética dos autores na Assírio. Isso foi por
indicação expressa sua, certo?
Sim. No início deixei claro
que não queria capa dura. Eles foram propondo formatos e, quando chegámos a
este, pareceu-me bem.
Essa recusa da capa dura, do
livro de grande formato, prende-se com o quê? É para evitar que o objecto se
torne um calhamaço?
Sim, é uma coisa terrível.
Não me agradava nada aquele formato. Dá-me sempre a vontade de arrancar-lhes a
capa, parti-los em pedaços para poder andar com eles e lê-los.
Entende que hoje os livros
são feitos mais a pensar na estante do que nas mãos ou na conveniência do leitor?
Não sei. No caso da Assírio
isso não é completamente exacto porque eles estão também a publicar os títulos
dos autores consagrados em separado. O Cesariny está a sair separadamente, o
Jorge Sena também, a Sophia, o Eugénio... Portanto, há esses dois lados.
Acho que é bom que existam
colecções que reúnem a obra, talvez seja é muito cedo para fazer esses
calhamaços para autores que ainda estão vivos. Sabe-se lá onde é que esses irão
estar daqui por uns 20 ou 30 anos. Nem sei se daqui por uns 20 anos isto ainda
interessa a alguém.
O facto é que já hoje
interessa a pouquíssima gente. O Hermínio [Manuel Hermínio Monteiro, antigo
editor da Assírio & Alvim] dizia que isto são apenas 200 leitores, mas que
são muito bons leitores. Lêem tudo. Talvez sejam mais, mas mesmo que sejam mil
ou dois mil...
Hoje, mesmo na Assírio, os
inéditos estão longe de uma tiragem de 2000. Deve andar mais perto dos 750.
Sim, mas então e se forem
livros do Cesariny ou do Sena?
Aí sim, talvez uns 1500.
Sim, trata-se de um fenómeno
misterioso a forma como ficamos reduzidos a tão poucos leitores.
Acompanhou nos últimos anos a
forma como o Herberto se tornou um autor muitíssimo vendável, com os livros,
mesmo os últimos, já com grandes tiragens, a serem traficados nos alfarrabistas
por valores exorbitantes?
Não, passou-me ao lado. Acho
que eu, como a maioria dos leitores, fico preso a certas fases dos meus autores
favoritos. O Herberto foi um autor que me deu uma pancada absolutamente
extraordinária quando eu tinha uns 15 anos. Vivia em Viseu, e havia lá uma
livraria que às vezes fugia um pouco à sombra da Livraria Católica que ficava
ao lado.
Um dia encontrei lá uma
revista que se chamava Graal. Li nela várias coisas incompreensíveis, como o
editorial do meu futuro colega, o Padre Manuel Antunes, mas depois havia um poema
que começava com o verso “rosa a rosa murcharão meus ombros”. Era aquele clamor
que há nos poemas do Herberto, com aquele ímpeto neo-romântico. Isso caiu-me
diante dos sentidos como uma bomba.
Aos 15 anos é muito bom ter
essa capacidade de deslumbramento com um poema, ainda por cima esse.
Tive vários. Pouco depois
disso, vim um dia a Lisboa – ficava então no Lumiar, com os meus avós –, e ia à
Baixa para comprar revistas internacionais, sendo a mais importante a Mecânica
Popular. Mas depois entrei numa daquelas livrarias esquisitas da Rua do Carmo e
encontrei uns livrinhos do Cesariny, A Antologia em 1958, incluindo o Alguns
mitos maiores, alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor.
Depois também havia uma
revista minúscula, de capa verde, chamada Pirâmide. Não fazia ideia do que era
aquilo, mas folheei, e li essa frase fantástica “A sol dado não se olha o
dente”. Comprei aquilo e foi essa a minha entrada no surrealismo. Essas grandes
descobertas feitas na adolescência e na juventude são as que nos marcam a fogo.
Depois descobri o Jorge de Sena, que foi também fortíssimo, e era um desses de
quem eu sabia imensos versos de cor. Mais tarde vi-o, cheguei a conhecê-lo de
raspão, tendo assistido a uma conferência que ele deu em Paris. Isto naquele francês
do Sena... (Risos)
Como é que era...
macarrónico?
Bastante. Mas não deixava que
isso o atrapalhasse minimamente. Ele tinha aquela coisa genial de um
poeta-crítico que tinha lido toda a poesia portuguesa desde os cancioneiros e
que, a culminar essa evolução extraordinária, colocava... o Jorge de Sena. (Risos)
Era extraordinário, mas era muito bonito.
E chegou a ter convivência
com ele?
Não. O único poeta dessa
geração com quem mantive algum convívio é o Eugénio de Andrade. Sempre que ele
ia a Paris, passávamos um dia por lá a passear.
E com o Cesariny ou o Herberto,
não teve convivência?
Muito pouco. Conheci-os
porque eles estavam na Assírio, portanto eram pessoas que eu encontrava nos
jantares da editora, ou até no átrio da Passos Manuel [a livraria]...
Seria muito interessante ter
uma ideia do que pensava Herberto da sua poesia, pois há um estranho vínculo
entre os vossos universos. Aliás, são dois poetas que assumiram relevo como
figuras de um certo culto, mas aquele que se gerou à volta do Herberto
tornou-se uma espécie de adulação infame... É como se Herberto tivesse
desenhado um sinal solar capaz de queimar os corpos, os leitores. Já a sua
poesia oferece uma outra margem, com a sua influência a terminar antes de
entrar no espaço do outro, não se tornando impositiva. Assim, é mais lunar,
mais contida.
Entramos aí numa questão de
interpretação em que não me parece que eu tenha alguma autoridade especial para
dizer como as coisas se passam. Agora, como leitor há uma coisa que me parece
que nos é comum, que é o facto de tanto o Herberto Helder como eu, e mais
alguns, termos vindo do surrealismo. Há ali uma passagem marcante para nós. Mas
para mim – e queria dizer isto com mais elegância –, o Herberto, de certa
maneira, ficou no surrealismo. É um poeta surrealista ou, se preferirem, um
grande poeta romântico.
Eu não pretendi ser um poeta
dessa estirpe. Cortei com isso, do mesmo modo que o Joaquim Manuel Magalhães,
nos textos iniciais dele, e na famosa carta que escreveu ao Herberto (...uma
coisa muito bonita, muito bem-feita), se demarca apesar da homenagem imensa que
lhe faz. Reconhece que a obra dele é uma coisa excelente, e que por ter essa
luz petrificadora... “nós vamos fazer uma coisa completamente diferente”.
Na realidade, quem eles
admiravam como sua fonte era o Ruy Belo. Há uma coisa simbólica nesses dois
livros que saem ao mesmo tempo, em 1961, A Colher na Boca e Aquele Grande Rio
Eufrates. Conta-se que o Ruy Belo viu o livro do Herberto ainda na gráfica e
ficou estarrecido a achar que aquilo é que era... Se essa separação que o
Joaquim desenhou é algo que não me diz respeito, nem interessou particularmente
à minha própria escrita, há um outro aspecto, e nesse sinto que me desligo
dessa geração anterior, que é um certo lado sacral, sacerdotal da poesia, mesmo
a do Herberto Helder, que a mim não me interessa muito.
Giorgio Agamben defende a
certa altura que a tarefa que se coloca hoje à poesia é profanar o
improfanável... Pergunto-lhe se a sua poesia tem alguma intenção de profanar o
improfanável?
Não. Não estando interessado
nesse tipo de sacralização, isso implica não estar interessado no sagrado nem
no profano. Se coloca em perspectiva uma dessas categorias, então a outra
também está a funcionar. Acho que isso foi mau para alguns poetas, quando houve
uma intenção de, através da poesia, firmar essa figura do pastor do ser... A
parte do pastor, tudo bem, mas do ser... (Risos) Por outro lado, existe algo a
que tradicionalmente se chamaria religioso que existe na minha poesia e de que
muitas pessoas não se dão conta.
O seu fascínio com a tradição
judaica...
Exacto.
É uma coisa que mais
religiosa ou literária?
É uma conjunção de factores
que, na realidade, vêm desde a infância. Foi retroactivamente que eu depois me
fui dando conta deles, mas esse interesse vem desde a infância. Depois houve um
encontro de várias coisas diferentes, de situações da minha vida pessoal que me
empurraram para os textos, desde aqueles que toda a gente conhece, do Emmanuel
Levinas, Martin Buber, essa face exterior, isto depois de ter entrado por
coisas mais interiores. E houve ainda um impacto fortíssimo da psicanálise,
Freud e Lacan, e essas coisas juntas criaram uma espécie de inevitabilidade no
meu interesse por esse universo.
JOD: E acha que isso está
cada vez mais presente na sua obra, sendo evidente como é neste novo livro, Carrocel?
Acho que sempre esteve
presente, mas aqui torna-se óbvia para quem a souber ler. Nos outros livros
também lá está, mas de forma mais obscura. Aqui não passa apenas por alusões,
uma vez que se refere expressamente ao iídiche, ao Sábado, e se o Carrocel é escrito
com “c” em vez de dos dois “esses”, e isso se deve, por um lado, a um lugar que
conheço, um café simpático, que se escreve dessa forma, mas é também porque
Carrocel dá com Caracol... E o que é que é esse caracol?
Na iconografia da pintura
ocidental, o caracol aparece frequentemente à frente e até, muitas vezes, na
moldura, e ninguém sabe exactamente o que significa esse caracol. Mas li um
ensaio muito esclarecedor sobre o caracol de um autor francês chamado Daniel
Arasse, que tem vários livrinhos sobre pintura, e tem um sobre o caracol, que é
uma imagem messiânica.
A pergunta é: porque é que
Ele não vem... porque é que não chega? O que é que falta fazermos...? A essa
impaciência nossa corresponde a imagem do caracol. Porque é que tudo há-de ser
como o caracol? Essa imagem é central, no sentido em que é a última, e dá
sentido ao resto do livro. A nossa semana é extremamente difícil, mas depois
temos o sábado.
Ora, as pessoas que não têm
contacto com essa tradição não fazem de todo ideia do que representa o sábado.
Há muito quem, na alta cultura, não faça a menor ideia do que representa o
sábado. O sábado é o pequeno paraíso. Uma pequena lembrança do paraíso. Se a
pessoa estiver preocupada pela forma como essa pequena lembrança nos pode
impedir de fazer certas coisas, então isso significa que realmente não está a
perceber nada do que ali importa. Portanto, o livro não é sobre o sábado, mas é
essa a ideia que ali está.
E de que forma é que se
relaciona com essa dimensão do paraíso, ou seja, como é que respeita o seu
Sábado?
Isso é muito complicado. Eu
não frequento propriamente a sinagoga. É complicado porque o judaísmo é uma
coisa muito complexa. Talvez a maioria dos judeus no mundo não tenha religião,
no sentido usual do termo. Seria preciso distinguir em português o que em
francês se chama de “judaisme” e “judéite”, uma palavra inventada para traduzir
o inglês jewishness”.
Por vezes as pessoas usam o
termo conversão, que é um termo de que eu não gosto, e de que acho que ninguém
gosta, mas, se tivermos de usar esse termo, eu não sou convertido. Não fiz as
cerimónias da conversão nem me juntei à comunidade da sinagoga, coisa que é
possível embora difícil.
Há, de resto, algumas pessoas
do nosso meio literário que o fizeram. Eventualmente, em vez de o fazerem aqui,
fizeram-no no Brasil, porque é mais fácil. Isso depende dos vários movimentos,
porque há sinagogas muito diferentes umas das outras. Das ultra-ortodoxas até
às sinagogas gay... Há de tudo.
JOD: Até se costuma dizer que
numa cidade onde há um judeu há duas sinagogas...
Sim, e se houver dois judeus
tem que haver três sinagogas. Uma onde vai um deles, outra onde vai o outro, e
uma terceira onde nenhum dos dois vai porque não gostam do que lá se passa.
Portanto, é uma coisa muito complexa, mais próxima de uma naturalização ou
autorização de residência do que de uma conversão.
Depois há as coisas que se
lêem. Trata-se de uma civilização e cultura enormes, uma coisa imensa, da
filosofia ao Talmude, a poesia... Adoro os poetas peninsulares hebraicos,
autores que aqui ninguém conhece, não sei porquê. Nem sequer estão traduzidos.
Mas depois temos grandes autores desta tradição, em variadas línguas e variados
contextos.
Não se explica o fascínio que
há hoje com estas tradições por não colocarem o homem primeiro, esse desejo de
satisfação imediata das suas necessidades ou do seu hedonismo, obrigando antes
a uma relação mais vasta com a existência?
Absolutamente. E também por
nos obrigar a sairmos das nossas pequenas circunscrições culturais. Muitos
jovens têm hoje a experiência de viajar e ir a outros países, muito mais do que
era costume no meu tempo, mas há uma grande diferença entre viajar e passar um
período prolongado no destino, viver noutro país, ou ingressar nesse fluxo
turístico. Viver noutro país é uma experiência muito interessante porque nos dá
essa perspectiva do nosso próprio país que é completamente diferente.
No caso da literatura isso é
particularmente importante por causa da protecção que a língua nos oferece.
Isso é outra das minhas obsessões e da qual venho falando há uns 30 anos... O
escritor português está muito protegido pelo facto de escrever numa língua que
muito pouca gente escreve. Somos uns nove milhões, porque nem sequer os
brasileiros percebem o que a gente escreve nem querem perceber. Mas é um
público cativo. Não temos, por isso, a competição que enfrenta o escritor
espanhol, ou francês ou alemão, já para não falar de quem escreve em inglês.
Normalmente, muitos autores
portugueses ou brasileiros falam disso como um facto amesquinhante, uma causa
de inexpressividade de quem escreve nesta língua no que toca à recepção mundo
fora.
Claro, porque estão
convencidos de que se não fora isso seriam gigantes. (Risos)
Estão a ser glutões,
portanto.
Sim... Porque, na realidade,
depois, quando são traduzidos, isso não acontece. Vejo também isso na
televisão. Mesmo hoje, quando temos ao nosso dispor uns 200 canais, continuamos
bastante fiéis àqueles que transmitem em português, e a única razão é a língua.
Não é certamente pela
qualidade e rigor das notícias, porque essas, se tiverem alguma importância,
também são dadas nos outros canais. Nem é pela qualidade superior do nosso
entretenimento ou ficção. Essa protecção da língua permite que as coisas possam
ser medíocres e continuem a funcionar sem grandes percalços.
E não é isso o que
caracteriza, porventura mesmo excessivamente, a vida cultural portuguesa?
Afinal, parece um meio enfatuado, cheio de si, mas que, se calhar, se não
estivesse protegido pelos muros da língua, nem sequer tinha condição de existência.
É muito provável que não
tivesse condição de existência.
Mas, curiosamente,
normalmente fala-se da língua portuguesa como se fosse não uma defesa do
exterior, mas um factor de grandeza, por ser falada por 200 milhões.
Sim, números completamente
falsos. Pelo menos não será lida por 200 milhões, pois nesse número há que
contar com uma boa parte de analfabetos. Agora, é verdade que se olharmos para
o passado, e não apenas para os tempos mais recentes, realmente a língua
portuguesa tem uma literatura absolutamente extraordinária. E é a única coisa
em que nós somos bons, pondo de parte os futebóis.
É a única coisa em que, com
alguma continuidade, tirando um século ou outro, fomos sempre bons. E isto de
uma maneira surpreendente. E depois uma das nossas contradições que parecem
insanáveis é o facto de, se formos a uma livraria, desses grandes feitos não
encontrarmos nada. Lá está, a esse nível os calhamaços seriam bastante úteis,
porque eu gostava de ler alguns dos contemporâneos do Camões que, coitados
desses desgraçados, foram engolidos na onda daquele génio.
O António fala nisso com
grande naturalidade, mas o argumento dos editores é que, como o António, talvez
houvesse outros dez leitores que justificassem a edição desses autores.
Mas havendo os livros eles
também criam os seus leitores, não havendo os livros é que não nos podemos
queixar de que os autores acabem esquecidos.
Se a língua é um factor de
protecção, mais ainda o é a poesia. Há uns versos de um poeta argentino que diz
que a poesia não se vende porque a poesia não se vende...
Sim, isso é verdade... Bem, é
e não é. Desconfio que em Portugal a poesia não tem hoje qualquer função
social. Tem esses tais 200 leitores, e depois tem uma presença de prestígio que
leva a que os políticos de vez em quando citem os poetas, mas normalmente são
sempre os mesmos. Na verdade, sobre essa questão o que tenho mais são dúvidas.
Não sei se vale a pena ter muitos leitores, não sei.
É muito difícil estar
convencido de que daqui a 50 anos haverá alguém que esteja interessado no que
se escreve hoje. Estes próximos 50 anos podem trazer alterações tão decisivas à
vida da espécie que podem tornar absolutamente irrelevante aquilo que nós hoje
dizemos, escrevemos ou filmamos. Pode tornar-se uma coisa completamente
insensata. E já não estou no extremo de imaginar que a espécie acabe. O que não
deixa de ser possível.
Mas mesmo que a espécie
persista, não temos a menor consciência do que será a transformação tecnológica
nos próximos 50 anos. Quem viveu como eu já muitas décadas, lembra-se como há
nem tanto tempo assim não havia telemóveis. E basta pensar como essa invenção
torna implausíveis tantos dos enredos e narrativas de épocas anteriores. Mas,
na altura, poucos se deram conta de que os telemóveis seriam uma alteração
radical da vida das pessoas.
E não sente que aquilo que se
encontra na poesia é algo de inerentemente humano, e que haverá sempre em nós o
desejo de nos recolhermos e nos relacionarmos com um objecto tão mudo e
inexpressivo como consegue ser um livro, obrigando-nos a arrancar-lhe os seus
segredos?
Sim, isso é verdade. Mas o
que não sabemos é se daqui a 50 anos ainda há humanos nesse sentido do termo.
Isto é uma novidade na História, e é de uma brutalidade que torna um tanto
patética aquela ideia de que vou deixar qualquer coisa que será lida e admirada
daqui por vários anos.
Que indícios encontra à sua
volta que o assustam na medida em que lhe dão essa sensação de que algo está a mudar
na nossa natureza?
Não dá para me assustar,
porque essa expressão não me diz muito. É algo mais simples... É que eu gosto
da espécie humana. Por vezes esquecemo-nos de tudo aquilo de grandioso que esta
fez. E sim, há muitíssimos problemas, coisas terríveis que foram feitas. Tudo
certo. Mas aquilo que foi realizado pela nossa espécie nos últimos cinco mil
anos são coisas fantásticas. É absolutamente fabuloso tudo aquilo que esta
espécie produziu.
Mas aí podemos especular se,
com a sobrevivência da espécie, pode não ser exactamente aquilo a que chamamos
humanidade o que persistirá. Pode sobreviver biologicamente um ser que já não
tem propriamente ligação com tudo isso que foi realizado nestes últimos cinco
mil anos, mas que passou a estar trancado num presentismo sufocante.
Será uma mutação na espécie,
em que os que vierem poderão continuar a achar-se continuadores da humanidade,
mas a quem já não fará sentido ler um romance porque não faz sentido ler coisas
passadas num tempo em que as pessoas morriam ao fim de 50 anos, enquanto eles
duram 900 ou até, se quiserem, mais anos. Ou podem ler os romances como meros
documentos históricos, testemunhos de uma realidade que já desapareceu, e que
apenas lhes provoca uma certa estranheza.
Nesse caso, pensando no prolongamento
da vida, há um encostar da espécie à imortalidade dos deuses, o que leva à
desaparição dessa urgência e do factor de mortalidade que nos dá a nossa
densidade...?
Esse é um grande enigma. E
não acho que isso irá acontecer necessariamente, o que acontece é que essa
perspectiva já existe, já está na cabeça das pessoas, e, por si, isso já produz
uma transformação das expectativas. Como é que vou convencer alguém de que vale
a pena ler o Camões se a pessoa começa a estar colonizada pela ideia de obsolescência
e já tem dúvidas sobre se vale a pena ler algo que tem já cinco anos ou até
cinco meses. Há pessoas para quem obras com cinco anos são já coisas do
passado.
Aquela frase que se costumava
dizer de que isso foi antes de eu ter nascido, hoje é uma barreira sistemática.
Quer dizer, para muitas pessoas tudo o que se passou antes de terem nascido já
não merece especial interesse. O problema é que esse tipo de atitude pode
tornar-se a atitude racional e a mais ajustada a uma nova ordem das coisas.
A transformação não tem de
ser tão dramática como imaginar que deixaremos de morrer ou termos vidas muito
mais prolongadas. Pode passar por termos experiências físicas em corpos
virtuais. Só isso já seria uma reformulação tão significativa das relações
humanas que deixaríamos de saber se o que estamos a viver é autêntico, se
estamos a sós, se é uma imagem...
Ou até uma alteração a nível
das drogas, que em vez de serem substâncias psicotrópicas podem ser efeitos
alcançados através de indução tecnológica.
Precisamente. Alguma coisa em
que, em vez de um pequeno estímulo, fazendo clique, ou vagando pelas redes
sociais, se tem uma espécie de pedrada tecnológica. Algumas dessas coisas até
já devem acontecer, nós temos é pouca imaginação e muitas vezes exageramos,
passando-nos ao lado transformações mais subtis e que acabam por ser muito mais
determinantes nas nossas vidas.
Isso seria uma espécie de
curto circuito da experiência humana.
Essa ideia vertiginosa de que
uma inovação tecnológica é boa apenas por ser uma inovação é um erro de todo o
tamanho. Mas é o que passa. Das pessoas da minha relação ainda nenhuma me soube
explicar o que é o 5G. Mas todos parecem ansiosos por essa nova geração de
telemóveis. Toda a gente a quer!
E como é para quem escreve?
Para quem escreve parece-me
que uma postura completamente céptica não é má. Porque a coisa mais importante
é ser-se livre, escrever-se sem constrangimentos, sem medo de si mesmo, medo do
outro... E, para isso, um tipo não ter grandes expectativas sobre a
significação social e política da sua obra é sempre melhor.
Quer dizer: as coisas humanas
já são em si mesmas um tanto cómicas, e não lhes devemos dar demasiada
importância, e, por isso, vamos reduzindo do humano em geral para o humano em
particular, para o português, depois para o literário e depois para o poético,
e depressa damos pelo peso desse grão de areia no universo.
Fosse como fosse, terá havido
um momento na sua vida em que terá desejado que a sua poesia fosse lida. E
hoje, mesmo depois de um silêncio prolongado, a sua obra persistiu de uma forma
bastante invulgar.
Sim, isso é fantástico.
Não há um só romancista em
Portugal que tenha escrito um livro há mais de 15 anos e que hoje ainda tenha
leitores que andem de volta da sua obra, reproduzindo partes do seu romance e
aguardando a reedição de livros esgotados ou o aparecimento de inéditos. Quando
escreve tem a noção de que há um leitor que está desejoso de ler o que escreve?
Quando escrevo não, mas
quando publico sim. Essa distinção é fundamental para mim. Eu escrevi milhões
de páginas, mas, em 60 anos, publiquei 600. Houve alturas em que não fazia
outra coisa senão escrever obsessivamente, páginas e páginas... Também era
grafómono... Mas surpreendeu-me imenso ter leitores, e a certa altura deu-me
imenso prazer ir ao Porto [para a Jornada de Leitura Crítica organizada pelo
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, em 2019] e ouvir uma série de
pessoas discutirem a minha obra. Mesmo quando me parecia que as leituras eram
completamente diferentes daquelas que eu teria feito, foi bom ir ao encontro
desses leitores sensíveis e inteligentes. Mas, nesse momento em que passo 15
dias a escrever furiosamente, o leitor desaparece.
E o que é isso, essa fase do
seu processo de criação?
É um processo de expressão e
de concentração de uma espécie de massa que anda dentro da cabeça e faz pressão
até ganhar forma.
Há um conjunto de pensadores
que acreditam que o homem é uma metade apenas, e que a sua expressão é a outra
metade.
Sim, pode ser essa metáfora.
Há um vazio que vai ser de algum modo preenchido por essa sujidão que nós
metemos nas folhas. Nesse momento o leitor desapareceu, ou é um leitor
completamente abstracto, ou, então, somos nós mesmos o leitor. Mas depois desse
trabalho, e às vezes mesmo no seu decorrer, já vai entrando esse pensamento
convencional quanto ao que nós pensamos que seja o poema, o verso, o que nos
parece que é bonito ou feio, o que deve ou não deve ser... Mas o leitor ainda
não está muito presente.
Quando o leitor entra e toma
conta da coisa é quando decidimos publicar. E se decidimos publicar é porque
queremos ser lidos; não há como contornar essa evidência. Quer ser lido e quer
ser mexido, quer ser absorvido pelo outro. Por isso é que quando me aparece um
leitor a dizer que quer usar versos meus soltos numa coisa qualquer que ele
faz, eu digo logo que sim. Quero lá saber. Eu fiz aquilo para ele. E se ele
resolve fazer aquilo de outra maneira, é ele que sabe, e deve ter essa
possibilidade. O leitor passou aí a ser a figura essencial. Mais até do que o
poema. Houve uma altura na minha vida em que quis escrever uma poesia que fosse
tão ténue que obrigasse o leitor a fazer quase tudo.
Mas, lá está, isso sente-se
em muitos momentos na sua obra. Se o leitor do Herberto Helder tem de ser
exigente consigo porque aquilo é de génio...
Tem de se proteger.
Sim, exactamente. Mas na sua
obra sente-se que há um pacto muito forte de leitura.
É. O leitor é chamado para
orientar o sentido dos poemas. Isto parece contraditório com o que disse antes,
mas à medida que se passa do leitor abstracto para o concreto as coisas
realmente mudam de figura. Agora que reli a obra, sinto que o momento mais
nítido disto é em A Pequena Face, um livro em que eu desejava estar tão próximo
do silêncio que obrigasse o leitor a falar por mim.
E está lá dito isso: “Protege
o espaço em que as tuas palavras começam...” – uma coisa qualquer desse género.
Posso escrever livros muito diferentes entre si, mas as minhas obsessões,
infelizmente, são sempre as mesmas. E uma delas é a ideia de que quem falta é o
leitor.
“Faltas tu, falta que te
completem ou destruam...”
Sim, o tu é o que está sempre
a faltar. E também assim é no resto, não só na escrita. Em tudo.
Talvez o António não tenha
bem noção disso, porque a sua obra mesmo de partida conquistou logo um grande
leitor, que estava então de saída... Óscar Lopes... Mas o facto é que é
altamente improvável a forma como a sua obra encontrou sempre um leitor, e um
leitor bastante comprometido. Porque o António praticamente não tem maus
leitores. Ao contrário do Herberto, que tem a sua obra levada para noitadas
esquisitíssimas, com gente que só o puxa para umas salsas macabras... Já em relação
a si, parece haver um pudor muito maior, e muito menos tendência para o
disparate nas leituras que a sua obra vai merecendo.
Sim, os meus leitores são
extremamente simpáticos. (Risos) Isso é milagroso, na verdade, pensar o que é
preciso para que um texto encontre o leitor adequado. Houve alguém que me
mostrou recentemente um texto do Vergílio Ferreira em que ele dizia que nestas
coisas em primeiro lugar é preciso voltar a falar-se na inspiração.
E não apenas a inspiração dos
escritores, mas também a dos leitores. Realmente, o que faz toda a diferença é
ter leitores inspirados. Não gosto muito da palavra exigência, a exigência de
certos autores... Eu não exijo nada, o leitor faz o que bem lhe apetecer. Mas,
realmente, em certas alturas, dou-me conta de que escrevi coisas que pedem que
o leitor faça imenso.
Sente-se que o António não
fez a sua obra fácil, mas é o leitor que tem de fazer que ela seja difícil para
ele. Tendo sido influenciado pelo surrealismo, que é de algum modo a apoteose
da imagem, nesse regime o António seria um filho...
Eu nem diria filho, ou seria
um completo bastardo. Quando falei do surrealismo foi para dizer que é aquilo
que na minha filiação existe de comum com a do Cesariny e do Herberto. Eram
pessoas por quem eu tinha grande estima. Com o Cesariny ainda me dei um pouco.
Jantei com ele algumas vezes, e era sempre muito engraçado pela capacidade que
ele tinha de nos contar essas histórias do arco da velha, como se diz.
Mas nunca me senti muito
próximo, como poeta, do surrealismo. E nesse aspecto é que digo que não estou
assim tão interessado na literatura, porque se estivesse estaria talvez muito
mais interessado nos movimentos, nesses grupos...
O que se pressente é que há
na sua obra sobretudo uma crença nos valores clássicos...
Sim, sim.
Hoje em dia, talvez
empurrados pelas teorias críticas, muitos escritores sentem necessidade de
corresponder a certos rumos aí definidos para serem tidos em conta, para terem
lugar no comboio. Ao passo que o António parece ir a pé. E, curiosamente, indo
a pé, no fim, parece fazer mais caminho do que aqueles que iam de comboio.
Convém ir a pé. Esse é o
conselho que dou a toda a gente: não ir em comboio nenhum. Quer dizer, não tem
interesse. Se o interesse literário for entendido nesse sentido, então é melhor
esquecer a literatura e pensar que, se calhar, seria melhor se os textos
tivessem sempre uma finalidade extraliterária.
Não pode ser aquela velha
ideia do “vou servir determinada causa política”... Mas que apontem para alguma
coisa que está para além da literatura... Pode ser a filosofia; acho que faz
sentido alguém fazer uma poesia filosófica, uma poesia como prática
filosófica.
Um dos momentos da sua obra
que conseguiu provocar maior assombro entre os leitores parece ligar-se a essa
força da lembrança que nos mostra que somos carne de todo o tempo e não apenas
a carne do momento, são livros de uma extrema força sedutora como Duende ou Aracne. E aí também se pode traçar
uma proximidade com a obra de Herberto. Embora a deste, quando entra pelo
erotismo, avança e chega a passar a linha do estupro. Por outro lado, na sua
poesia, e nestes livros em particular, a sedução é retomada num vigor mais
clássico, em que parece que o António dá a conhecer ao outro o próprio corpo
dele.
Aliás, existe uma passagem do
Livro do Desassossego em que Bernardo Soares diz que foi uma tragédia quando o
homem pôde começar a confrontar-se directamente com o seu próprio reflexo,
porque até ali a natureza havia-o privado disso. Antigamente dependíamos dos
outros para nos darem a nós mesmos. E parece que o António nos volta a lembrar
desse tempo em que éramos o factor de conhecimento do outro sobre si mesmo.
Acho que, deste modo, os leitores foram lembrados pela sua poesia da verdadeira
virtude da sedução. Não será esse um dos factores da persistência do leitor da
sua obra? Isto num tempo em que estamos cada vez mais desinteressados do outro
e o que surge cada vez mais é o “eu”, e um “eu” impositivo.
Essa questão do impositivo
acho interessante. Sinto isso em relação ao Herberto, pois dou por mim a lê-lo
e tenho essa necessidade de afastamento. Na mesma ordem de grandeza, mas noutro
género de poesia, também sinto isso com o Walt Whitman. Há aí algo como esse
efeito de sentir que aquele velho corpulento está a atirar-se para cima de mim.
E o que tenho vontade é de dizer: “alto aí”.
(Risos) Ainda se fosse um
jovem bonito, ou uma bela rapariga... (Risos) Mas essa sensação de o autor se
lançar sobre nós é algo que não me agrada, e não quero atirar-me para cima de
ninguém. Mas depois, e em particular no caso de Duende, comparece uma figura
clássica que é Sócrates, que também está presente no Carrocel. A figura do
Sócrates e dos seus discípulos e seguidores, com quem tinha uma relação de
amor... mas dentro de limites cautelosos. Uma relação respeitosa da identidade
dos discípulos.
É a ideia de um cuidar que
ganha em se querer, um querer que, em vez de se manifestar violentamente,
obriga a um cuidado...
Sim, um querer que cuida. E
isso é uma noção que me parece permanente em tudo o que fiz. Até na minha
maneira de ser. E daí vem o não gostar que se atirem para cima de mim, como não
gostar de me atirar para cima de ninguém, preferindo essas relações que mantêm
uma distância, sendo esta cautelosa e respeitosa.
JOD: Nesse sentido isso é
similar à imagem, que é ao mesmo tempo uma forma de proximidade mas também uma
distância.
A imagem traz o risco de nos
identificarmos com ela.
JOD: Lembro-me do início de Duende, se fosse deus...
Eu seria santo... não seria
deus. Se fosses tu deus, eu seria um santo. Alimentado, a comer areia e
gafanhotos... Mas sou eu que estou ali, e tu estás além, e vice-versa. As
figuras são sempre reversíveis. No caso desse livro, quem é o Duende? É um, é o
outro, são os dois, não é ninguém...? Para os espanhóis, duende é a alguém que
passa. É uma espécie de chama que passa de uns para os outros.
Mas isto é para eu voltar ao
lado quase socrático, e, ao reler a obra, dei-me conta de que muitas vezes
parece haver um diálogo entre duas pessoas havendo entre elas uma diferença
significativa de idades. Num dos Quatro Caprichos, o último, fala-se numa diferença
de 30 anos, no Aracne também há essa sugestão. Isso tem a ver com o Platão, que
é de longe o meu filósofo favorito.
E há algum texto de Platão de
que goste em particular?
Não especialmente. Gosto
daquela ideia de A República de
deitar fora quem quer que tenha mais de 12 anos ou 10. Acho uma ideia genial.
(Risos) E acho que os discípulos de Sócrates devem ter achado muita graça
quando ele lhes disse isso. O Deleuze repetia isso nas aulas.
É frequente os
anti-platónicos repetirem Platão. E o Deleuze costumava apresentar essa
objecção, dizendo aos alunos que eles já eram demasiado velhos para perceber
certas coisas, coisas que só quem tinha menos de 15 anos é que estava em
condições de entender. Para Deleuze o limite era até aos quinze, mas Sócrates
era mais exigente: só até aos 10 ou 12.
E não lhe parece que essa
ideia é um factor de demarcação decisivo... Contou-nos como foi em Viseu, aos
15 anos, protegido por aquela pequena cidade, onde ninguém lhe ia entregar nada
à mão, que a poesia teve um impacto decisivo sobre si. Hoje, um dos problemas
da fraude do ambiente cultural é que se tem tornado cada vez mais uma ocupação
dos velhos, o tricot de que se ocupam alguns, aqueles que fazem do ego o seu
dominó. Não será esse um dos factores decisivos da degenerescência da poesia, o
ter-se tornado um hábito dos velhos?
Entre os 15 e os 25 é que se
lê tudo aquilo que nos marca de forma fundamental. Por isso é que depois é tão
difícil gostar da obra posterior dos poetas que tanto amámos nessa altura. Mas
desconfio que essas coisas continuam a acontecer. A determinada altura num dos
poemas de Carrocel tenho uma homenagem a César Aira... Ele tem uma história
absolutamente maravilhosa... Ele era de uma terriola na Argentina chamada
Coronel Pringles, que já de si é uma coisa fantástica.
E, certa vez, contou que um dia
foi convidado a ir a Cuba para um qualquer encontro de escritores, e, nessa
ocasião, foi recebido com alguma pompa, dizendo-se dele que era o maior
prosador actual da Argentina. Nisto, ele ficou curioso por saber quem seria o
outro, pois estava implícito que, a par dele, haveria um outro grande escritor,
um poeta. “Então, quem é o poeta que é comparável a mim?” O poeta era o Arturo
Carrera, que acontece ter sido amigo de infância do Aira, em Coronel Pringles.
Eles eram as duas únicas
pessoas que se interessavam por literatura, e, quando tinham uns 15 anos,
tinham feito um pacto segundo o qual um escreveria prosa e o outro poesia.
Tornaram-se os dois grandes nomes da literatura argentina, e isto vindos lá de uma
terriola qualquer. Tinham descoberto a existência da literatura e da poesia e
fizeram-se esses autores que hoje são.
É claro que, depois, ninguém
aqui os conhece. Mas se essas coisas eram improváveis em Viseu em 1950 e tal,
também são improváveis hoje, e nem por isso vejo motivo para deixarmos de acreditar
que aconteçam. Há de haver alguém lá no Sátão (eu digo sempre no Sátão, porque
em Viseu há lá uma estrada que vai dar lá a essa vila), ou numa outra terra
pequenina, que encontra um poema da Sophia e diz: “Ah, vou viver junto ao mar.”
(Risos)
E agora que recomeçou?
Há coisas que ainda gostava
de escrever. A certa altura pensei que já seria impossível voltar a escrever,
porque a partir de um certo momento até o simples gesto de escrever se torna
esquisito... Mas já voltou a assumir uma certa naturalidade, e, entretanto, já
aconteceram mais coisas que me deram de novo vontade de escrever... Há essa
coisa tão estranha de uma pessoa ter idade e chegar àquele ponto em que o
médico nos diz “Bom, vamos lá ver: se isto estiver bom, tudo bem, se não
estiver, acabou.” (Risos) A mortalidade só se sente muito tarde. As pessoas
mais jovens não fazem ideia nenhuma do que é ser mortal. Sabem que se morre...
Mas depois de se chegar a uma
certa idade há esses momentos extraordinários em que nos é dito que se calhar
temos uma semana. “Vamos ver se vai viver mais uma semana ou se terá ainda uns
anos.” E aí passa-se qualquer coisa. Há umas horas que são especiais, e vale a
pena tentar fazer alguma coisa com elas.
O José Cardoso Pires, depois
de ter estado doente, de ter sofrido um acidente vascular cerebral, numa
conversa falou de uma imagem que tinha apanhado num poema que por acaso era
meu... “Os planetas no ovo oco do céu”... Era uma imagem assim, que vem nos
Jogos de Inverno, e que por qualquer razão ele tinha sentido profundamente.
Nesses momentos, por vezes, sentimos umas imagens muito abstractas e que ganham
corpo ali: era isto, afinal, o que aquilo queria dizer, era esta situação. Há,
ao mesmo tempo, uma espécie de indiferença...
É curioso porque também o
Lobo Antunes tem às tantas uma crónica em que fala do fascínio com que
descobriu os seus poemas.
Sim, eu lembro-me. Mas acho
que ele deve ter eliminado a crónica, porque depois não a vi reunida nos
livros. Saiu nalgum jornal, mas depois não voltei a dar com ela.
Achei curioso que o Lobo
Antunes, que, segundo ele mesmo disse, durante muito tempo o que queria era ser
poeta, lhe tenha feito um elogio tão rasgado, sendo ele um escritor tão
obcecado com a persistência da sua própria obra. Alguém que está absolutamente
convencido de que daqui a 50 anos continuará a ser lido...
Até só escreve para daqui a
50 anos. Uma vez li uma entrevista em que ele dizia que estava a escrever para
o lerem daqui a 50 anos, e então pensei: pronto, então eu vou esperar esses 50
anos. (Risos) Não tenho pressa nenhuma. Mas acho que essa leitura do Lobo
Antunes terá vindo da recomendação do Cardoso Pires.
De qualquer modo, também me
penitencio e considero que foi um erro na minha existência nunca ter reagido ao
que as pessoas diziam sobre mim – nada. Umas vezes porque realmente não soube
que o tinham feito, outras vezes porque achava que não me cabia dizer nada,
sentia que não devia meter-me nisso.
Quer dizer, se gostavam dos
meus poemas, era dos poemas que gostavam, não era de mim. Se alguém diz que
gosta muito de mim, aí... (Risos) Agora, se gosta dos poemas, o que é que eu
hei-de fazer? Mas hoje tenho pena. Tenho pena, por exemplo, porque houve
pessoas, não tão famosas, como o Raul de Carvalho, um poeta que li também
quando era miúdo, e que um dia, estava eu em casa, o telefone toca e era ele
que estava do outro lado.
Tivemos uma conversa, que foi
até bastante simpática, mas não prolonguei nada. Podia e devia tê-la
prolongado. A mesma coisa quando o Lobo Antunes escreveu sobre os meus
poemas... Parece que faz parte da convenção nestas coisas que eu devesse ter
escrito alguma coisa, ter mostrado gratidão. Não disse nada, e hoje acho que
fiz mal. Devia ter cultivado essas coisas. Dava, pelo menos, para contar
histórias hoje.
E hoje persiste ainda em si
essa desconfiança no que toca à associação entre a sua vida e a sua poesia?
Certamente. A junção das duas
coisas é um enigma para mim. Esse enigma tem de ser respeitado. Não sei porque
é que escrevi o que escrevi. Ao reler-me, por vezes, fiquei bastante espantado.
Por exemplo, um livro de que gosto muito, Os Objectos Principais, fico a olhar para aquilo e
penso “não sei como é que escrevi isto”.
Há pouco falou do Vergílio
Ferreira e da inspiração, de que valia a pena voltar a trazer a inspiração ou o
que quer que seja que se possa chamar a esse fenómeno para se falar na escrita.
É uma coisa que respeita como algo de estranho...?
Absolutamente. Respeito como
qualquer coisa de essencial a este processo. É o que nos é dado. Depois depende
do que fazemos com isso. O que pode ser aplaudido é o trabalho que depois
fazemos, mas aquilo que se recebe sem se saber exactamente como, é como um dote
ou uma característica natural, não tem tanto mérito assim. É preciso ter alguma
sorte, mas cabe-nos depois fazer alguma coisa com isso.
A dor e o sofrimento que há
na escrita prende-se mais com as coisas que nos vemos obrigados a deitar fora.
É terrível, porque está ali na folha algo que diz qualquer coisa, que é
importante e tudo, só que diz mal. Por isso, tem que se deitar fora. Como há o
esforço de procurar a palavra certa, saber que aquela não serve, e passar às
vezes uma tarde, um dia, dois dias à procura, o que me aconteceu no caso do
Duende. Depois lembrava-me a meio da noite, depois perdia, depois ficava danado
comigo mesmo por não ter anotado. Tudo isso é o trabalho, e tem mérito, mas
quanto ao que é essencial acho que o melhor é chamar-lhe inspiração.
Voltando ao início da nossa
conversa, existe no seu trabalho uma grande convicção do verso, daquilo que o
diferencia da prosa, e que tem de se respeitar o verso porque de outro modo se
está a insistir num erro que vai produzir um poema manco, que na verdade queria
ser prosa, e nem é uma coisa nem outra.
Sim, ainda que eu aceite
perfeitamente o manco voluntário.
Que, aliás, diz que também
praticou.
Também pratico. E o exemplo
mais nítido dessas coisas continua a ser o Duende... (Muitas vezes penso que um dia serei o
autor do Duende e pronto, acabou-se. Serei esse e não serei mais nada. Há quem
me garanta que não, mas pode bem acontecer.) Nesse livro, que começa por ser
uma brincadeira com a forma do soneto, há separações, versos que exigem que a
sua integridade seja respeitada.
Houve um leitor que me disse
que gostava muito do primeiro poema do livro e que o podia ler de trás para a
frente, mudar a ordem dos versos, que este se mantinha vivo. Por mim, tudo bem.
Pode fazê-lo, desde que respeite a integridade dos versos. Agora, se tira
sílabas ou acentos ou seja o que for, aí já vai mexer com os ossos. A não ser
quando o autor resolve voluntariamente pôr um verso quebrado.
No Aracne há um que diz “os
teus versos vão dar sempre uma sílaba a mais”, e esse é um verso que tem uma
sílaba a mais. A liberdade é total. Não estamos obrigados a voltar a nenhum
classicismo, a respeitar a métrica e as formas... Acho que isso acabou e está
bem acabado.
Agora, o que é preciso é
cortar com isso mantendo a consciência do verso. Assim já se pode jogar com
essa consciência, brincar com ela, feri-la ou destruí-la... Do mesmo modo como
estamos sempre a brincar com a ausência de sentido. Estamos sempre à beira de
não dizer nada. Ou roçando aquele limite em que, às tantas, era preferível
estar calado. Por isso, arriscamos cair na insensatez.
E se há um livro que me
parece verdadeiramente importante entre os que foram publicados recentemente é
o Canoagem, do
Joaquim Manuel Magalhães. Aquilo faz uma combinação entre o sentido e o
sem-sentido que é muito poderosa e que, quando funciona, torna-se
extraordinária. Alguns poemas são de uma intensidade absolutamente
invulgar.
E em relação ao João Miguel,
ao Helder Moura Pereira... Tem acompanhado o trabalho de outros dos poetas seus
contemporâneos?
Sim, mas isso é uma coisa
permanente. Sigo-os como... são meus amigos. Chega a ser-me difícil ajuizar
sobre o valor desses livros, até porque, lá está, não me parece que a
literatura seja sempre o mais importante. No caso do Joaquim é um pouco
diferente, porque sempre foi uma pessoa mais distante. Costumava almoçar uma
vez por semana com o João Miguel, mas com o Joaquim nunca. Fomos colegas na
faculdade, mas, ao longo de 30 anos, nunca nos encontrávamos.
É como se não nos falássemos.
Sempre fomos cordialmente distantes. Mas foram os únicos de quem eu segui a
obra, e simplesmente por serem meus amigos. Não sei que mais fui lendo... O
Armando Silva Carvalho, que é um poeta interessante e com quem convivi
ocasionalmente. Lia os seus poemas pessimamente. Era uma coisa absolutamente
desastrosa. (Risos) Quando dizem que os poetas devem ler os seus poemas, eu
digo: calma. Mas os poemas dele eram realmente muito interessantes e eu gostava
muito deles. Mais? O que é que há mais na minha geração?
Um pouco mais velho, o Gastão
Cruz, o Manuel Gusmão, que foi também seu colega na faculdade...
O Gastão teve outra
importância para mim porque foi a primeira pessoa que me editou. Publicou os
meus primeiros poemas naquela revista estranha, a Novembro. Foi o único sobre
quem escrevi.
Quanto ao Gusmão, já começou
a publicar poesia tardiamente, nos anos 90.
Pois, isso foi numa altura em
que eu estava já na fase descendente e praticamente não ligava nenhuma ao que
se publicava. Os poetas portugueses que li a sério foi sobretudo nessa fase em
que vivi em França. A relação com Portugal passava muito pela poesia. Isto nos
anos 60 e 70.
Nos primeiros anos, as coisas
que eu lia era o Nemésio, o Sena, o Ruy Belo, mas menos, e o Cesariny. E o
Herberto também, mas quanto a ele havia essa coisa de eu não querer ser
captado. Depois havia a poesia do resto do mundo. A poesia norte-americana foi
muito importante para mim...
Dois poetas que o
influenciaram bastante foram o Charles Olson e o William Carlos Williams...
O Olson não foi tanto pela
poesia dele, foi mais a figura, e essa abertura ao grupo da Black Mountain. E o
livro sobre Melville. E ainda a teoria dele, do verso projectivo... Nunca
aceitei a teoria, mas avivou o interesse pela prosódia, pela relação do verso
com os ritmos da respiração e da fala. O Williams, sim, foi uma influência. Mas
naqueles anos que depois passei nos EUA, a beat generation estava no auge, e eu
vi o Allen Ginsberg a ler os poemas dele num ambiente que seria inimaginável
hoje. Era uma sala que estava apinhada de gente, tudo numa gritaria...
Em que ano é que isso foi?
Isso terá sido no princípio
dos anos 70. O Ginsberg andava então a fazer as suas tournées e aquele país,
nessa altura, era realmente extraordinário no que toca a esses climas. Acho que
o ouvi numa sala de cinema, a mesma onde vira um filme impressionante que julgo
que se chamava Os Mortos
Podem Voltar.
A sala toda entrou num estado
de histeria, com as pessoas a saltarem das cadeiras e a gritarem: “Párem!/ Stop
it, stop it!” Os fantasmas a devorarem-se uns aos outros e as pessoas na sala a
explodirem num frenesi de terror. Não sei se na minha memória não estou já a confundir
as coisas, mas parece-me que se passou na mesma sala essa projecção e a leitura
do Ginsberg, além de uma série de actividades ligadas a grupos de esquerda.
Houve também uma sessão muito tensa com o Jean Genet, que apareceu escoltado
por uns cinco membros dos Black Panthers. Isto porque supostamente ele estava
ilegal no país... E nós éramos os brancos! E eles, os negros, estavam ali de
metralhadoras... (Risos)
Maluquices daqueles tempos. O
Genet também desceu bastante na minha consideração desde esse momento. Mas os
EUA, nessa altura, com o fim da guerra no Vietname, vivia um momento muito
especial, e que, apesar dos assassinatos, era uma época de esplendor. O futuro
era melhor então. Hoje, não vejo nada de comparável a esse nível. E a poesia em
Portugal nunca teve nada de parecido. A não ser aquele momento dos cantautores.
Quando as pessoas falam do
Manuel Alegre em tom desdenhoso é preciso não esquecer que o seu primeiro
livro, Praça da Canção,
foi um livro absolutamente notável. É inegável isto. Os poemas foram cantados
por toda a gente, tornaram-se palavras emblemáticas da resistência. Pronto,
liricamente podem não ser os poemas mais conseguidos, mas capturaram ali o
sentimento geral, foram poemas que tiveram uma existência real. Mas também era
impossível suster aquele fôlego...
Sim, porque teve muito a ver
com o momento político...
O momento e a canção ou o
espírito de protesto, com o fim do regime que já se antecipava. Mas houve ali
manifestações muito curiosas e interessantes.
Mas quando fala de uma
finalidade para além da literatura, sente que se andasse hoje pelos vinte anos,
e estivesse ainda em busca da sua voz, tendo em conta como o futuro parece
emperrado ou embolorecido, julga que seria mais difícil como poeta embarcar na
sua ilusão, ter um vislumbre de algo de animador? Isto porque também a poesia
se tornou muito cínica nos últimos anos. Muitas vezes, hoje, damos pelo poema a
dizer insistentemente que não serve para nada. Ou seja, que não tem nenhuma
finalidade. Quase como se os poetas se tivessem tornado funcionários de um
organismo qualquer burocrático e lhes fosse exigido que cumprissem o dever de
escrever o poema, mesmo para dizer que o poema não tem qualquer função.
É, isso é um fenómeno
misterioso e inexplicável. Quer dizer, seria muito fácil uma pessoa calar-se. E
não se percebe porque é que se agarra a isso. Acho que o calarmo-nos é uma
função fundamental. Nesse aspecto ainda bem que ao menos o fazem na poesia,
porque se lhes desse para o mesmo na música era mais barulhento. E estava a
pensar num fenómeno paralelo que é o das pessoas que ouvem música muito alto.
Fico sempre a pensar que, na verdade, detestam a música. Deve ser uma coisa do
género: vamos ouvir só som.
Deixamos de ouvir as
articulações para ouvir só um som muito forte. E aqui, na poesia, talvez
estejamos a passar por algo de parecido. Não sei... Se colocarmos entre
parêntesis um acontecimento terrível como foi, nos anos 70 e 80, a epidemia da
SIDA, podemos dizer que as pessoas que são hoje jovens têm uma vida incomparavelmente
mais difícil do que a da geração que os precedeu, e assim podemos concluir que
essas manifestações se tornam, por isso, fáceis de entender e, até, perdoáveis.
Esse cinismo, essa ironia
constante e sarcasmo, é compreensível e desculpável dadas as circunstâncias.
Agora, o que é facto é que, olhando retrospectivamente, nós também não tivemos
uma vida tão fácil como isso. Esse fenómeno da SIDA destruiu a vida das
pessoas, mesmo das que sobreviveram. Mas, apesar dos efeitos devastadores, foi
algo em relação ao qual se viu emergirem qualidades humanas fabulosas. A
qualidade na forma como foram tratadas as pessoas é realmente fantástica.
Mas é uma história muito
pouco cantada. Essa devia ser mais cantada. Há algumas obras norte-americanas,
mas é quase só o que há. Alguma coisa nas artes plásticas, no teatro... Mas
nunca nenhuma época é fácil. Quando se lê a História, a constatação que se
retira é a de que, em geral, as coisas no passado foram muito piores.
Eliminando essa questão da expectativa, a ideia de o futuro hoje ser pior, a
verdade é que o presente ainda é relativamente confortável. Então num país como
Portugal, ou na Europa em geral, a vida tem um nível de conforto como nunca
teve.
Os meus professores, como o
Michel Serres, estavam sempre a dizer que estávamos a viver no melhor momento
que a humanidade já tinha vivido. A minha geração, e parece-me que a dos mais
novos também, é extraordinariamente privilegiada ao nível do momento presente,
o que está é com um abaixamento das expectativas que é dramático. E isto não é
uma coisa portuguesa, porque em França essa sensação é muitíssimo pior.
Os níveis de desespero em
relação ao quotidiano e ao nível das camadas mais jovens é algo que não tem
explicação. O que acho é que se está a tornar muito difícil manter uma espécie
de inocência... à partida. Quando estive a reler-me, uma coisa que me veio logo
à cabeça é que o meu primeiro livro, destes reunidos, o Sem Palavras Nem Coisas, tinha
uma inocência fantástica. Uma inocência até semântica, uma confiança na linguagem...
Contrariamente à história de que eu sou um autor pós-moderno, eu parti da confiança,
e comecei por dizer coisas muito simples: que o amor é bom e o ódio é mau...
(Risos) Coisas desse género.
Depois, em Os Objectos
Principais, já passou a ser uma coisa diferente, pois já se introduziu esse
elemento da falta de sentido das coisas. Mas à partida havia essa ideia, essa
sensação de que, no fundo, há uma confiança na existência. Quando há pouco
falava no carácter religioso da minha obra, isto com muitas aspas, a ideia é
haver uma confiança fundamental na espécie, no mundo, no universo.
Sinto-me ok no meio das
galáxias. Além de gostar da espécie, acho também o universo uma coisa
fantástica, e continuarei a achar isso até ao fim. Mas, hoje, dá a sensação que
as pessoas já começam a sentir que primeiro estão elas, e que à volta está tudo
numa condição terrível. Comigo, nunca foi assim. Os seres humanos fazem,
fizeram e vão continuar a fazer coisas absolutamente horrorosas, mas o
contraponto é imenso. Nas circunstâncias piores que se possa imaginar há sempre
coisas extraordinárias feitas pelos seres humanos.
Uma coisa que o Ernesto
Sampaio refere sobre o Marquês de Sade é que, às tantas, este se convenceu de
que Deus existia, que tinha de existir porque, olhando à sua volta, era
demasiado improvável que não houvesse uma razão qualquer a presidir a tudo
isto. Mas, tendo concluído isto, logo se convenceu de que esse Deus só podia
ser um pulha, e seria um Deus manhoso criado por um outro Deus ainda pior, e
isto numa sucessão infinita.
Tenho essa grave suspeita de
vez em quando.
O António partilha essa
suspeita!?
Acho que todos temos essa
suspeita. Não é uma coisa pacífica a relação entre o ser humano e o seu
destino, ou seja lá o que for que lhe queiramos chamar. Chamar-lhe Deus é usar
uma das piores palavras para falar disso. Mas, eventualmente, e tratando-se de
Sade, o combate pode acabar por se tornar muito agressivo de parte a parte. E
essa coisa da omnipotência tem muito que se lhe diga. Não pode ser essa noção
de que acreditamos que está lá uma figura de barbas... Essa concepção da
divindade que se faz nos países de educação católica é de uma miséria...
É quase como uma historinha
para embalar crianças.
É. E ficaram nisso. É feita
para crianças, que depois crescem e casam e morrem nessa religião, um rudimento
de catolicismo. O judaísmo é uma religião de crianças, no sentido em que todos
somos filhos de Deus, mas é a uma religião que pretende que sejamos adultos e
iguais. Não há privilegiados, não há superiores, não há sacerdotes. Essa coisa
dos intermediários, do sagrado, do não-sei-quê, da burocracia... são
empecilhos.
A sua atracção pelo judaísmo
é sobretudo uma vocação interior.
É sentido por mim como uma
inevitabilidade. Parece uma coisa bizarríssima essa das pessoas que andam a
escolher uma religião que se lhes adeque. Como se fossem ao supermercado das
religiões... “Deixa-me lá ver se sou evangélico ou budista.”
E depois há também o buffet
das religiões, em que se servem de um pouco disto e daquilo, misturando a
gosto.
Pois, isso hoje toda a gente
faz. Também os judeus o fazem. Agora também não falta por aí judeus budistas...
Acho graça a essas pessoas que dizem “Agora vou ver o que é que diz esta, o que
é que diz aquela, e depois logo decido se vou ser muçulmano ou cristão...” Não.
Ou é uma coisa em relação à qual não tens decisão ou julgo que estarias melhor
não sendo nada. Para quê meter-se numa coisa dessas que só complica a vida? Se
é assim, mais vale manter-se distante, ser ateu... É muito mais simples.
Agora, se a pessoa não pode,
se sente que não tem escolha, então está bem. Essa coisa do inevitável é um
critério que eu uso muito também na poesia. Ou é inevitável que eu escreva ou o
melhor é não escrever. Se é uma coisa que eu posso evitar, então prefiro. Não
vale a pena uma pessoa meter-se nessas coisas se não precisa. Se posso estar
tranquilamente em casa, a ouvir música, espapaçado, se posso fazer isso, é o
que faço e não estou a chatear ninguém.
Uma coisa que tem vindo a
acontecer é que, entre as gerações que já cresceram ambientadas a este regime
das redes sociais, em que todos são emissores e o que parece ser cada vez mais
difícil encontrar são receptores, e esta diferença marca um fosso entre as
nossas gerações, é que a sua talvez tenha menos dúvidas de que existe, ao passo
que me parece que a minha está povoada de gente que se desunha para provar que
tem uma existência e um papel qualquer neste mundo. Muitas vezes parece que
fazem as coisas não apenas para provar aos outros mas até a si mesmos que
existem.
Ok. Compreendo isso. A única
reserva que tenho em relação a isso é a sensação de que se eu, e a minha
geração talvez também, comecei por estar nessa sensação de existir
não-problemática, depois disso houve uma perda da inocência, e esse problema
foi-se pondo cada vez mais. Talvez a sua geração comece pela constatação da sua
difícil existência ou da sua pouca existência. Nós acabamos nessa constatação.
Mas, inicialmente, de facto, era verdade. E, no caso da literatura, acho que
isso até tem a ver com uma circunstância puramente social. Quer dizer, somos
todos burgueses, e, à partida, isso dá-nos essa espécie de existência social
imediata.
Portanto, também aquilo que
escrevíamos, aparentemente, tinha assegurada essa existência social pouco
problemática. Mas, aos poucos, pelo menos para mim, e imagino que para muitos,
isso foi-se perdendo. Hoje já estou cada vez mais desse lado, nessa situação em
que me interrogo o que é que isto significa. Já tenho o livro comigo, olho para
o livro e este parece-me muito bonito: letras de oiro sobre um belíssimo azul,
mas... Isto é alguma coisa?
Para um tipo que tem quase 80
anos..., que tem 60 anos de escrita, e depois publica uma coisinha assim...
Isto é alguma coisa? Depois abro o livro e, muitas vezes, pergunto-me: do que é
que isto está a falar? No meio de tanta coisa, o que é isto? Porque esta pergunta
deve ser feita com a televisão acesa, com não sei quantos aparelhos a
funcionar, do outro lado alguém a falar sobre esta ou aquela crise. E isto às
tantas parece-me uma insignificância.
António Franco Alexandre. Fotografia: Mafalda Gomes, 2021.10.09 |
Mas há uma coisa que não
depende já de si. O nome António Franco Alexandre, apesar de o designar, na
verdade tem uma existência que vai para além de si. Se o António hoje disser um
absoluto disparate, nós vamos demorar um bom tempo a perceber que é um
disparate.
(Risos) É, já me dei conta
disso. Já houve uma ou outra circunstância em que eu estava a falar, e, na
minha cabeça, à medida que falava tinha vontade de desistir, pois pensava que o
que estava a dizer era disparatado, mas logo me dava conta de que isso não
tinha importância nenhuma porque quem me estava a ouvir haveria de arranjar
maneira de interpretar o que eu estava a dizer de uma maneira suficientemente
generosa, como se eu estivesse, de facto, a dizer alguma coisa de jeito.
Quando falamos o interessante
é que não sabemos o que vamos dizer. O mesmo acontece ao escrever poesia: vamos
descobrindo o que dizemos; ou pelo menos é isso o que me ficou da lição
surrealista. Mas a questão é se isso muda o sentido do que eu estava a dizer?
Será que isso afecta o problema da falta de existência? Porque também era
preciso que esse nome significasse alguma coisa à qual eu desse importância.
Não, mas isso obriga-nos a
nós a trabalhar.
Nós voltamos sempre a essa
questão dos leitores, e é isso o que nos traz algum prazer, certamente
narcísico, mas que não se fica por aí. É essa coisa de ir encontrar leitores
que não nos passava em absoluto pela cabeça que pudessem interessar-se pelo que
escrevemos. Dou um exemplo.
Antes levava o meu carro anualmente
à inspecção a um sítio nos arredores de Lisboa, e uma das vezes estava ali a
seguir instruções, e o homem às tantas pede-me os papéis, lê, olha para mim, e
diz-me: “Você é o António Franco Alexandre?” E eu digo-lhe que sou. E ele: “O
poeta das Moradas!?” E logo me começa com uma conversa sobre a minha poesia...
O garagista! E eu penso: pronto, a glória é isto. (Risos)
Mas se em tempos isso era
improvável, as pessoas realmente viviam numa pasmaceira, ao ponto de ficarem
ansiosas pela chegada do fim-de-semana para irem comprar o jornal ou a revista,
sendo um tempo marcado por uma certa escassez, ao passo que, hoje, o que não
faltam são coisas que nos entram por todas as janelas, uma avalanche de
programas, filmes, séries, publicações de todo o género, de todo o mundo, e não
vale a pena dizer que é só ruído, porque o facto é que aparecem todos os dias
coisas muito meritórias, excelentes até, mas, no meio disso, que um poema ainda
possa ter leitores, e que uma nova reunião da sua obra seja motivo de júbilo
para alguns não deixa de ser espantoso.
É, é extraordinário. Mas não
tem a ver comigo. Ultrapassa-me completamente. Nem o planeei, nem pensei que
fosse acontecer. Sempre que publiquei, o máximo que senti foi: pode ser que
alguém goste. Com certeza haverá também quem não goste. Em Portugal não se pode
fazer uma carreira como escritor. Ao longo destes 60 anos, segundo os meus
cálculos, não terei ganho mais do que eram antigamente vinte mil escudos.
Seriam hoje 100 euros.
Com tudo o que publicou?
Sim, contando com os prémios.
Bom, mas também foi
roubado... Contudo, não pode ter sido só 100 euros.
Talvez eu esteja a fazer as
contas mal. Terão sido 20 contos, não muito mais. É certo que temos de contar
com a inflação. O momento em que mais ganhei foi com um prémio de 10 ou 12 mil
escudos. Lembro-me que, na altura, comprei um fato, e não sobrou nada. Era um
bom fato. Fui ao alfaiate, isto nos anos 70.
Usei-o duas vezes, porque era
um fato com riscas, assim à gangster. Fui receber o prémio com esse fato... de
resto, não ganhei mais nada. O Hermínio tinha esta política curiosa que era
dizer: Tu és rico, portanto não precisas de dinheiro. Essa coisa do “tu és
rico” era uma coisa que ele tinha metido lá na cabeça dele, porque eu nunca
tive muito. Mas creio que ele ainda pagava alguma coisa. Pagava mar eram
aquelas percentagens que, tudo espremido, não dava nada.
Agora com a Porto Editora
talvez as contas já sejam um pouco mais sérias.
Sim, serão com certeza. Mas
por mais sérias que sejam as contas, e ainda que o livro seja caro, custando 30
e tal euros, nem que eu receba três euros por cada um vou chegar a uma soma que
desse para me aguentar por uns tempos. Haverá dois ou três escritores em
Portugal que conseguem viver do que escrevem.
Portanto, essa ideia de
carreira nunca me passou pela cabeça. Já a ideia de ter de agradar é uma ideia
horrorosa, mas que persegue os pintores, por exemplo, que têm de vender as suas
obras. Fui casado com uma pintora e sei o drama que era. Eles têm de expor e
ainda têm de vender.
Eu nunca tive de expor fosse
o que fosse e nem tinha de vender. De resto, sempre disse ao meu filho que é
preferível não estar dependente de nenhum público. Esse é um dos grandes
privilégios da poesia em particular, já que a prosa vive com outros horizontes:
é não ter essas obrigações. Saber que não se vai fazer carreira... No máximo
pode-se chegar a comendador. (Risos)
Também se pode chegar a
assessor de um Presidente da República, se jogar as fichas nas casas certas.
Sim, mas acho que ganhar o
título de comendador é melhor. Além disso os poetas é o que são, comendadores.
Não sei porque tão poucos merecem o título, já que é a nossa natureza. E dos
que eu conheço vários estão na mira para serem comendadores.
Mas isso, se quiser... também
se arranja.
Não, eu não quero. Não se
incomodem. Se fosse a Grã-Cruz da Ordem de não sei o quê... O que eu queria
mesmo era aquela coisa inglesa, a Ordem da Jarreteira. (Risos) Na verdade, a
ambição nestas coisas, a existir alguma, seria produzir nos outros aquilo que
produziram em mim certos textos, essa sensação de um abrir das possibilidades.
Não é que eu vá fazer algo da grandeza daquilo que fizeram os grandes autores
clássicos, mas que ao menos se espreitem essas possibilidades.
Quando li o Beckett pela
primeira vez, aqueles romances, que não sei porque é que não são mais lidos, o
Molloy e o Malone Está a Morrer, pensei: isto não tem nada a ver com o que eu
faço, mas a liberdade e a capacidade da escrita que aqui está... Foi isso o que
me foi transmitido. Não me interessa nada transmitir opiniões ou convicções...
Se conseguir transmitir esse élan... Agora, abafar o leitor... Isso não tem
interesse nenhum. Não gosto de escrever coisas deprimidas ou depressivas. Se
estou muito deprimido, não escrevo.
Para quê? Já há demasiadas
coisas deprimentes. Esta manhã, acordei pelas cinco da manhã, liguei a
televisão e já lá estava um tipo qualquer a dizer-me que estamos a caminho da
catástrofe. Não percebi bem qual das catástrofes é que era... (Risos) Não sei
se era o ar, as moléculas... Se calhar vocês não a conhecem, mas a televisão
portuguesa de manhã não faz outra coisa senão desfiar-nos a falar sobre
cancros.
Esse é um tema favorito da
nossa televisão, o cancro ou outras doenças assim. É logo ao pequeno-almoço.
Estamos ali de volta dos cereais, e lá vêm eles dizer que é assim e assim que
se morre. (Risos) E vamos nós acrescentar mais coisas a isso? Acho muito bem
que uma pessoa se interrompa, fale dessas coisas, mas não pode ficar por aí.
Tem de encontrar outro rumo, outra coisa qualquer.
Diogo
Vaz Pinto, Jornal i, 2021-10-11
https://ionline.sapo.pt/artigo/748955/antonio-franco-alexandre-sinto-me-ok-no-meio-das-galaxias
António Franco Alexandre. Fotografia: Mafalda Gomes, 2021.10.09 |
António
Franco Alexandre. A forma gravada a lume
Diogo Vaz Pinto, 20/10/2021
A reunião da obra poética daquele que
soube impor-se entre nós como il miglior fabbro, permite-nos apreciar
todo o rigor com que foi transformando o verso numa emboscada maravilhosa, essa
que continua a surpreender-nos a cada releitura.
Pierre Menard, o personagem de Borges investido daquele seu
célebre e delirante propósito, tem às tantas uma breve e concludente reflexão
sobre o que poderá ser fundamental neste exercício de expansão da memória e do
imaginário que é submergir a biografia nos livros, falando daquilo que nos
surge como inevitável. O resto seria precisamente a literatura, a tal de que às
vezes é preciso escapar. “Não posso imaginar o universo sem a interjeição de
Poe: Ah, bear in mind this garden was enchanted!”
Essa
lembrança é decisiva, pois tem de haver uma centelha, uma impressão capaz de
nos desencaminhar, de nos fazer escavar no real em busca de um inusitado
minério que faça estremecer toda a sua estrutura. É certo que, sem um
desencantamento do mundo, não nos forçaríamos a essa abertura, a este jogo à
margem da natureza e que, por meio de artifícios, nos leva a participar em
explorações num nível tal de comprometimento que desperta em nós esse prazer
extremo de cair, o qual nos é impossível satisfazer nas condições normais
da vida.
A
literatura é um refúgio e é, ao mesmo tempo, uma saída ou um modo de ir à volta
por entre a realidade, firmando os sentidos em qualquer noção obstinada, algo
que instigue em nós o caçador encantado. Mas se há na literatura um efeito de
desvinculação do mundo, nela está também inscrita essa condenação que, por fim,
nos encaminha para um silêncio para lá de qualquer hipótese de triunfo, uma
desilusão irresolúvel diante do que é possível. Como nos diz Borges num ensaio
de 1930 – “A supersticiosa ética do leitor”: “A literatura é uma arte que sabe
profetizar aquele tempo em que terá já emudecido, e encarniçar-se com a sua
própria virtude e enamorar-se da sua dissolução e cortejar o seu fim.”
Não
havendo invenção sem uma ruptura, o criador começa por inventar o seu silêncio
antes de poder virar costas seja ao que for. E este tempo de emudecimento
que a literatura nutre pode levar-nos ao outro lado da vida, pois nasce de
um convívio que começa com a leitura silenciosa, nessa forma de liturgia
que tem subsistido ao longo de séculos por meio de um fino enredo de
gestos e palavras, numa aura de destruição controlada que passa pelo uso de
certas matérias e não de outras. Neste encontro com o imaginário, alguma coisa
vai ter de ceder na nossa relação com a realidade. Mas guia-nos essa percepção
de que em tempos este jardim foi encantado.
Assim,
as grandes personagens literárias são de algum modo os derrotados, essas
presenças cavalheirescas que abominam os maus modos do cepticismo, que
prosseguem a sua demanda investidos de uma crença fascinante e trágica, essa do
ser aberto à morte, ao suplício, à alegria, esse ser que, sem reservas,
consegue conter em si todos os extremos, ser imensamente doloroso e feliz, e
que nos aparece já nessa sua luz velada, uma luz que, segundo Bataille, é
divina.
Hamlet
e Dom Quixote são figuras centrais na literatura por serem dos primeiros a
escutar as vozes desse velho mundo numa época que se tornou surda para o
transcendente.
O
génio dos grandes escritores faz deles detectives em busca de vestígios dessa
zona encantada, e, nas melhores páginas que nos têm chegado, damos por eles com
o seu ar de intriga, agarrados às suas especulações fantasistas, colhendo
amostras e realizando perícias enquanto mergulham no abismo. “Terá sido então
por desespero que pereceram os homens apaixonados pelo seu próprio canto? Por
um desespero muito próximo do arrebatamento”, questiona Blanchot.
À
falta de melhor expressão, chamamos loucos a esses que se sacrificam no
altar da razão, abrindo aquela margem que torna possível o género de cogitações
que funcionam como o vento propício a estas navegações felizes e infelizes,
exultantes e prodigiosas, destrambelhadas também, e tormentosas. Mas tudo
começa aí, nesse ponto onde “parece suspender-se o som do mundo”... A isso, pelo
menos, deveria aspirar a grande literatura. E sem isso não há poesia.
Hoje,
não se pede tanto. É até considerada uma deselegância contar com algo de
espantoso da parte de quem tão afanosamente se dedica à literatura, muitas
vezes com um absurdo desdém pelas expedições que arrancaram esse território às
limitadas circunscrições a que, hoje, de novo, nos atemos. Quase não se lhes
pede nada, e preferem que assim seja. Mas depois, além da sensação de descolado
em tudo isto, damo-nos conta de como a narrativa ou a lírica contemporânea se
entretêm quase exclusivamente com problemas técnicos. E as melhores coisas que
se lêem dão-nos a impressão de estarmos perante "um conjunto de órgãos
desmembrados que tivessem sido cosidos de forma tosca" (Mark Fisher).
O
poema anda longe de provocar aquela mudez das bocas diante de um corpo
perfeito. As melhores coisas que lemos ou ouvimos dizer apenas nos afundam mais
de um dos lados da equação – o lado desolador. Deixam-nos perante a constatação
de que “o infinito está sem forças”, “a rosa já nada espera da sua época”, e,
pior que isso, de que “os amantes já não assombram/ os lugares suscitados/ pelo
seu perfume” (François Jacqmin). Ninguém parece já lembrar-se de que em tempos
este jardim foi encantado. Ninguém, a não ser um ou outro, e esses preferirão
por estes dias esconder a sua demanda longe dos modos afectados dos que tão
afanosamente dizem que escrevem.
O
que ainda resta como crença é algo como uma “modéstia predestinada, o
desejo de não pretender nada e de não levar a nada”, esses poucos que, “à custa
de descrição e de alegre nulidade, procuram esquecer aquilo que outros degradam
chamando-lhe o essencial” (Blanchot). “Ser abelha, dar mel, eis um projecto/
sensato, e à medida de um insecto;/ mas pode um aracnídeo inadaptado/
mascarar-se de humano, descer da teia ao palco,/ cantar, ao clássico balcão, a
serenata?”, interroga António Franco Alexandre.
Face
àquilo que, hoje, temos diante de nós, pode pôr-se a hipótese de termos sido
trancados do lado menor da existência, só nos restando a perspectiva do frio,
olhares que não conhecem a sua ordem, trocados entre fantasmas. Mas se já não
nos resta a esperança de voltar de novo, nem conhecer a glória frágil da hora
concreta, ficamos a olhar para um lugar que se perde.
Podíamos
exigir ao menos que a linguagem cobrisse uma vez mais impressões informes,
impulsos que esfolam a pele de um momento transitório para, soltando-se dela,
acederem a algo de menos instante. Trocar as tantas imagens e as voltas todas
nesse registo embaraçado por uma verdadeira volta de sangue, por um desejo
honesto de expor “a carne roubada, esconsa, suada”; levar a frase além do ponto
onde o mundo se fecha numa razão cínica para não lhe serem assacadas
responsabilidades pela sua falta de ânimo ou coragem para retomar a
aventura que dá gosto a tudo isto, essa verdadeira vida que nos transtorna e
exige de nós o mais alto preço: “Porque eu não espero voltar/ Desejando os
dotes deste homem e as capacidades daquele/ Já não me esforço por esforçar-me
rumo a tais coisas/ (Porque estenderia a velha águia as suas asas?)/ Porque
lamentaria eu/ O poder extinto do costumado reino? (...) E que o juízo não seja
demasiado severo connosco/ Porque estas asas já não são asas para voar/ Mas
meras pás para bater o ar/ O ar que agora é completamente rarefeito e seco”,
diz T.S. Eliot (aqui na tradução de Rui Knopfli), desejando a tranquilidade e
justificando-se com um rasgo e um brilho final a si mesmo e a todos os que,
chegando tarde, já não se sentem à altura das assombrosas liturgias do passado.
No
fundo, Eliot não faz mais do que enamorar-se da sua dissolução e cortejar o seu
fim. Mas depois dele, vêm todos esses que se sentem já defendidos nesses
resmungos de renúncia, incapazes de trazer algo mais, algo de novo. Mas o
verso, para que o seja, tem de nascer com aquele impulso capaz de nos iludir
quanto à hipótese de um recomeço, de restabelecer o antigo murmúrio que sirva
de ligação entre as eras, aquele ritmo contínuo que nos mostre como “a boca que
beija é a fonte do mito”. Assim, entre outras noções, o poeta (no caso, Franco
Alexandre) lá nos vem dizer que pior do que morrer é a morte do verso, e que
pior do que a morte é o lume desfeito.
A
esta obra, sendo das mais escrupulosas e vigiadas, e por isso pouco prolixa, é
difícil considerá-la como um todo face ao seu peso imensamente variável, como o
de um corpo ao longo de uma vida, amiúde também tocado, atravessado por outros.
Trata-se de um trabalho que nunca rejeitou qualquer dos desafios formais que os
poetas se foram impondo, e que apura o verso nesse encadeamento espantoso,
entre rimas e aliterações que operam como ecos, ritmos que são jogos de
reflexos, um sabor que tanto quanto seduz a inteligência se dirige já a esses
recessos que organizam sensações e memórias. É uma poesia para se ler um
bocado, se ser siderado por esses detalhes que ali ficam rodando, como se um
sopro os forçasse a um regime gravitacional, capaz de atender a pulsões mais
vastas, a uma consonância com a música das esferas. “enquanto escutas falas
vive a língua/ doce desejo de água o corpo aberto/ caído sobre a lama// em dura
frágil chama recortado/ imóvel em retrato/ amealhado// enquanto escutas ar em
ar respira/ o sopro cobre as mãos/ a cor da terra// o passo rompe a luz a jovem
face/ pequena sobre as folhas”.
Aqui,
a tradição roda sobre si mesma, nasce e alimenta-se de si própria, o eco é
posto de novo a funcionar, e vemo-lo cumprir-se de novo e emergir como um
organismo vivo e mutante. Diferente de Eliot, mas em tantos aspectos seu
semelhante, também Franco Alexandre aspira a uma mente diáfana, a ser canal de
transmissão. Assume também aquelas presenças desfocadas, invoca sem espalhafato
os antigos, integrando-se nessa conversa inacabada com as sombras do passado.
Sabe ser mais vivo nessa irresolução voluptuosa, tanto mais carnal quanto não
abdica de um fulgor transcendente, de um desejo que se realiza de forma
dolorosa e feliz. Afinal, “a morte é o que há de mais terrível, e manter a obra
da morte é o que exige maior força”, diz-nos Hegel.
Ora,
este poeta sabe que uma vida mais profunda não pode arrancar as suas raízes sem
deixar de as sentir ainda mais, e que é entre os mortos que lhe cumpre
descobrir o seu alento, esse fôlego que só pode distinguir-se reconhecendo que
nenhum autor possui a totalidade do seu próprio significado. Há, por isso,
nesta obra essas tantas voltas meio desencaminhadas de um vigilante nocturno.
Na sua relação com os que se foram, para conferir à morte todo o seu terrífico
sentido, Franco Alexandre mantém vivos os mortos.
Esse
regime de tensões e disputas que atravessa esta obra, exprime uma disposição de
acolher um destino ambíguo e até dilacerado, assumindo uma profusão de
conotações, associações, usos anteriores, valores pictóricos e sugestões
tonais, num convívio que se estende dos clássicos greco-latinos, com ênfase
para Homero e Ovídio, passando pelo Antigo Testamento, e atendendo às
ramificações algo obscuras dentro desse regime incomensurável de interpretação
ou decifração dos textos que anima a cultura judaica. Aí terá aprendido a sua
contenção contra-instintiva, trabalhando a capacidade da sintaxe de atestar que
existe ali um além. Foi fazendo, assim, da poesia essa arte ensombrada pela
música que vai deixando para trás, que é a marca de um desejo antigo de vencer
a morte, e soube também dominar aquilo a que a crítica chamou “uma respiração
neo-quinhentista”, atendendo ao diálogo que foi mantendo com Camões. Sem uma
orientação de trás para a frente, Franco Alexandre buscou sempre o enlevo
deixando-se instigar pelas explorações mais ousadas da contemporaneidade, fosse
na poesia portuguesa já do século XX, fosse nos desenvolvimentos do que se
fazia pelo mundo, tendo vivido largos anos em França e nos EUA. Mas o grande
virtuosismo desta obra está na relação entre um erotismo das formas e essa
intuição sensível que está atenta a tudo o que vibre numa frequência mais
larga, encostando o rosto nas superfícies em busca dessas declarações e
movimentos primordiais do espírito humano que anunciam uma ordem de existência
mais próxima do mistério e da criação do que a linguagem. Assim, à gramática
subjazem essas fragmentações, uma sensação daquilo a que a actual cosmologia
chama “ruídos de fundo”, “radiações de fundo” da primeira irrupção do vazio.
Isto
não significa ceder ao solene e pomposo regime que serve mais para cativar os
fazedores de teses, sempre à cata desses acenos gelados, dessas composições
petrificadas, que tornam mais fácil a datação por carbono e o recurso a
práticas bastante inúteis de exumação de matéria morta. “Preferia ir ao colombo,
comprar roupas, ver as montras,/ enrolar-me no cheiro dos corpos que se trocam/
na esquina municipal/ esquecer-me por dentro/ da carne e do modo como se
transforma/ em luz. Ou talvez andar de moto/ na perigosa margem litoral,/
encontrar-me de noite com a terra/ e ter o nome a sério no diário/ por um crime
incomum, uma invenção moderna; tudo/ menos o jogo vago das palavras/ cruzadas,
com gavetas de ficheiros;/ a alma interrogada, o corpo aberto/ para medir os
vírus e as plaquetas,/ e a cabeça torcida para a frente, pra caber/ e as costas
inclinadas que escorregam/ no rebordo da gaiola.”
Franco
Alexandre aprendeu acima de tudo com a tradição, essa mais vasta que só se pode
ir digerindo com muito esforço, ao longo de toda uma vida, esse poder de decepção
que vai a par com o gosto de seduzir. Pois é necessário sempre levantar novos
obstáculos, respeitar uma distância para que a atracção se perpetue, sem que as
linhas se enredem, acabando por cortar o caminho uma da outra. Assim, não é a
nobreza dos materiais o que produz um verdadeiro fascínio, mas essa capacidade
de dar testemunho da pobreza que somos também. E muitas vezes há um ganho maior
no ensejo de erguer uma obra a partir desses lamentáveis materiais que os dias
nos trazem. Como vincou Alejandro Rossi, o exercício literário é nobre
precisamente por efeito desse resgate, dessa capacidade de fazer lume a partir
de matérias que chegam a ser trivialíssimas: “aparências, olhares, formas de
vestir, a comédia, a espuma da vida”. Tudo isso está presente e resplende nesta
obra. “Ah também tu és vaidoso, meu querido./ Também tu queres vestir-te/ de
rimas e kalamanknes leibserdak/ e ver o manto rasgado/ numa cave
transcendente./ De terra em terra foste deixando as asas./ Não mintas mais: só
conheceste imagens.”
Estes
versos surgem já nesse longo poema em fragmentos que fecha como uma construção
fresca aquilo que é a segunda reunião da obra do poeta, mais de vinte anos
depois da primeira, e que preserva o título dessa (um simples “Poemas”),
publicada em 1996. Antes dessa estrofe, uma outra diz-nos: “Tantas canções e
versos pelo mundo fora/ e só um, em querendo, será teu./ Querendo tu e ele,
como corpos que/ na secura dos corpos se saciam/ terá o mundo alheio uma outra
face/ e outro novo passado nos será futuro.”
Eis,
assim, como a tradição pode ser um perfume que nos guia ao nosso próprio futuro
ou destino. Um perfume que não deve limitar mas tão-só dar o tom, até para
dele, com mais propriedade, podermos divergir, abrindo margem para um conflito
verdadeiramente criativo. Pois só se pode gozar de uma aura de destruição se
esta for exercida de forma controlada. No fim, de qualquer modo, também a morte
nos terá, e, com “o trabalho dos dias terminado/ deixados os trenós na névoa
branca/ repousa a criação connosco dentro”. Mas no fim de “Carrocel”, este
ciclo inédito que, por ora, encerra a obra, o poeta faz questão de deixar esta
advertência: “É certo que aceleram as galáxias/ no fim do universo: o espaço
cresce;/ e em cada coisa flui, sempre diverso, o tempo./ Não te distraias:
dessa matéria és feito;/ és quem demora.”
Hoje,
quando esta arte da linguagem parece ter perdido de todo a sua influência e
magnetismo, atravancada da sucata sentimental e da tagarelice que tomou conta
de tudo, juntamente com os programas de assistência social e marchas de orgulho
disto e daquilo, esta é uma poesia que não cede no rigor e na precisão, que
procede de uma amantíssima solidão profunda, desse eclodir da expressão à
superfície de uma vasta e intrincada rede de silêncios, de lugares visitados,
encontros candentes, coisas lidas (“desenharei uma paisagem, com a autoridade/
apenas das coisas vistas;// pedras, arestas, maravilhosos lábios anteriores às
palavras,/ corpos de arte sem voz, estremecendo, livres”). Toda essa urdidura
inquietante que fica por baixo, deixando-se pressentir, e que é justamente o
vigor desta obra. Uma função da sua paciência íntima, entretecendo entre o que
diz e o que deixa como falha a sua música secreta, o veneno apaziguador das
imagens, estabelecendo um pacto cardíaco com o leitor.
Depois,
há toda a autoridade das vivências à queima-roupa, mesmo dessas orientações que
escapam à musa, apreciando esta “glória, poder e uniforme”. E este é o momento
em que o poeta deserta, abandona sempre aquilo que dele se esperava,
perseguindo a vida, que, “afinal, anda lá fora, antes da folha/ ter passado a
prensa”. Pois, no fim, só há nisto um ganho a partir do que se consegue trazer
de fora, na sua vibração irada, surpreendida de ser arrastada assim, por um
golpe tão simples, tão discreto e imperdoável: “vou ficando invisível, aos pedaços,/
comendo laranjas no escuro./ o teu corpo é dos que nunca lêem livros,/ sabem de
estradas e de pássaros, pouco mais;/ a tua morada tem no telhado as frinchas/
da lei, onde se vê o céu; e eu,/ absorto de silêncio e de chuvisco,/ ó tosco
cantador!,// dissolvo-me na sombra da paisagem,/ separo-me de nós, de mim,
serei só quase/ a chama no carvão que fica ardendo/ noite fora, noite fora./
acordaremos, já sei, transparentes e sábios,/ do outro lado da criação do
mundo;/ uma mão presa à luz, outra nas trevas,/ um só tronco de chamas, uma
asa.”
Este
enredo sedutor é servido ao nível da pulsação, perturbando levemente os
sentidos, influindo por meio de um subtil encadeamento sinestésico, em que a
nossa percepção se agudiza sem se saber dominada exactamente pelo quê. É o tal
perfume que os espíritos deixam uns nos outros. Esse modo de criar um vínculo
entre o fio das sílabas e uma razão mais vasta, que liga o som à matéria, este
grão de pó que se diz ao esplendor que governa as galáxias. "Talvez te
enroles no lençol, ou seja/ tua esta voz que canta em língua estranha,/ ou por
galáxias amplas de aventura/ noutro quarto quebrado me procures/ para existires
em mim uma vez mais."
E
sim, poderíamos averiguar dos antecedentes criminais ou mitológicos desta obra,
como dos seus tantos envios mais ou menos cifrados, mas o que é único nela é
esse gozo delituoso de explorar diversos códigos, na montagem, no recurso ao
fragmento, estendendo um campo de sugestões difuso, que faz do poema um registo
aberto, selvagem, mais doloroso nuns momentos, noutros exuberante e cheio de
perversidade. E se, contrariamente ao que vão afirmando os promotores dos chás
dançantes da poesia, entre finais do século passado e as primeiras duas décadas
deste a abundância da poesia tem sido o efeito de um regime de canto coral,
sendo fácil reconhecer grandes uniformidades estilísticas, impondo-se “uma
espécie de rumor colectivo, e poucas grandes obras singulares”, como notou
certa vez Franco Alexandre, a sua foi uma poesia que sempre se furtou a esse
retraimento de uma arte que se enchia de pudores, se enclausurava virando-se
para um rosário de banalidades e maneirismos langorosos, numa auto-punição que
fazia da poesia outro dos modos da abstinência que sempre se exulta como a
grande virtude moral e ética.
“Depois,
há uma massa imensa de versos que tendem a utilizar um pequeno código do
‘poético’ e a produzir o enjoo típico dos países-de-poetas. Depois, há a
crítica silenciosa, quando não aclamando o torto e o direito”, vincava ainda o
poeta numa entrevista que deu ao seu editor, Manuel Hermínio Monteiro, para um
dos números da “Phala”. E nos versos prosseguia este exame: “Ou palavras com ar
de parafusos,/ metálicas, brilhantes, úteis perfeitamente/ indispensáveis às
comunidades e seus cinco mil intérpretes./ E ao fim da tarde todos se deitam
nos tapetes húmidos de pó eterno/ e oram ao deus da morte enquanto passam as
notícias.”
E
foi disto que António Franco Alexandre se foi libertando, de uma morte que se
antecipava, e dessa cobarde, medíocre e calma fruição que ia restando como
consolo, com os dos versos a aperfeiçoarem a coreografia do luto e os sinais de
pertença a uma ordem moribunda. Já este poeta, perfeitamente alheado, parecia
vingar-se alegremente, furtando-se a essa placidez. E enquanto a morte punha em
cena o seu desolado cerimonial, deu-lhe para ir medir-se contra o fulgor que,
quanto mais mortal, mais se fere dentro dessa ânsia de perpetuação: “Fica
dentro de mim, como se fosse/ eterno o movimento do teu corpo,/ e na carne
rasgada ainda pudesse/ a noite escura iluminar-te o rosto./ No teu suor é que
adivinho o rastro/ das palavras de amor que não disseste,/ e no teu dorso nu
escrevo o verso/ em pura solidão acontecido./ Transformo-me nas coisas que
tocaste,/ crescem-me seios com que te alimente/ o coração demente e mal
fingido;/ depois serei a forma que deixaste/ gravada a lume com sabor a cio/ na
carícia de um gesto fugidio.”
Diogo Vaz Pinto, 20/10/2021
https://ionline.sapo.pt/artigo/750072/antonio-franco-alexandre-a-forma-gravada-a-lume
António Franco Alexandre, Jornal i, 20-10-2021 |
CARREIRO, José. “Entrevista a António Franco Alexandre (outubro 2021)”. Portugal, Folha de Poesia, 12-10-2021 [Última atualização: 2021-10-25]. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/antonio-franco-alexandre-entrevista.html
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