domingo, 17 de outubro de 2021

Menino do Bairro Negro, Zeca Afonso

 



Menino do Bairro Negro

 

Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há de um dia cantar
Esta canção

Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há de um dia cantar
Esta canção

“Menino do Bairro Negro” (1963)

Letra e Interpretação: José Afonso

 

Outra canção de Zeca Afonso que também teve uma dimensão por falar da realidade do país foi Menino do Bairro Negro. Lançada em 1963, como parte do disco Baladas de Coimbra- mesmo álbum em que foi gravada a canção Vampiros, essa canção tem grande importância pelo fato de ter sido praticamente aquela que marcou sua 'rutura' com o 'fado tradicional', e traz características comuns das canções de resistência: a desigualdade e esperança. Ao mesmo tempo em que há uma indignação quanto ao momento presente, a esperança serve como um alento para a população e principalmente para uma nova geração que está por vir, mostrando na canção, as crianças ("meninos") como o sujeito principal.

 

Zeca Afonso revela78 que uma das inspirações para o refrão dessa canção foi uma das obras do brasileiro Josué de Castro, "Geopolítica da Fome", lançada em 1951, que trata sobre a questão da alimentação e desigualdade no mundo. Ele ressalta que o adjetivo "negro" descrito no refrão em "Negro Bairro Negro" não tem relação com a cor da pele dos meninos, mas sim com a condição deles de 'exploração', vistos na obra de Josué de Castro. O "Bairro" se refere a um dos bairros da Ribeira, região típica da cidade do Porto, local em que Zeca Afonso costumava ir para visitar alguns de seus amigos - e a primeira vez que foi à cidade, chegou à noite, e ficou surpreso ao ver a dura realidade e a desigualdade que havia no local e em seu país.

 

O início e o término da canção são marcados pelos sons de pássaros que dão a impressão de liberdade e condizem com a vida dos "meninos" que vão "correndo, ver o sol chegar". No restante da música, o som do violão se faz presente, sempre acompanhando a voz de Zeca Afonso. Nessa canção também se apresentam outros elementos da natureza, tais como o sol, o mar e a terra.

 

A canção possui onze quartetos, dos quais quatro são repetição de estrofes anteriores, e a maioria dos versos são classificados como redondilha maior, especialmente os dois primeiros versos de cada estrofe, ao passo que o refrão é intercalado em redondilha menor e tetrassilábico. As rimas são alternadas e cada estrofe contém terminações diferentes - nove rimas diferentes no total - apresentando assim, uma grande variação no esquema sonoro da canção. O poema, mesmo contento onze estrofes e divisão métrica diferentes, apresenta uma simetria em relação ao seu formato, como podemos ver exposto abaixo, mostrando a ordem das estrofes, começando pela primeira em azul e seguindo abaixo, obedecendo a ordem das setas:

 


 

A quadra mais relevante do poema é a primeira, pois há a repetição dela na sexta e décima-primeira estrofes, sendo o início, o meio e o término da canção, como ilustrado em azul. Os versos dessas estrofes são heptassílabos (redondilha maior) e pentassílabos (redondilha menor), e as rimas intercaladas (ABAB). Ainda em relação a essas estrofes, há a presença de uma rima rica ("mar", "chegar") e pobre ("nascendo", "correndo") e o substantivo mais importante é o "sol'', que revela a chegada de um novo dia, e a alegria com que as crianças veem a chegada desse novo ciclo. Esse recomeço pode revelar uma esperança, uma ansiedade por dias melhores sendo descritos na imagem do sol e também dos meninos (crianças), que podem revelar uma nova geração, uma geração que traz uma mudança para a humanidade. Ainda há a presença de dois verbos no imperativo ("olha", "anda'', do português europeu), e pode apresentar uma 'ordem' ao ouvinte, aos adultos: "olha o sol que nasce", "anda a ver o mar".

 

As segunda, terceira, quinta, sétima, oitava e décima estrofes são equivalentes, sendo os dois primeiros versos classificados como redondilha maior; os terceiros versos são hexassílabos e os quartos e últimos versos são tetrassilábicos. As rimas são todas intercaladas, com exceção da oitava quadra, sendo ABBB.

 

Já o refrão, apresenta versos pentassilábicos (redondilha menor) e tetrassilábicos, havendo uma intercalação entre eles. Esse refrão é caracterizado pelas repetições dos adjetivos "negro", do substantivo "bairro" e do advérbio de negação "não", acentuando uma situação cíclica e sem uma aparente mudança, sendo evidenciado também pelos verbos no tempo presente.

 

De acordo com o esquema a seguir, o menino e a (falta de) condição dele são vistos como a mensagem central do poema:

 

Presente

Futuro

Atmosfera

Menino

Esperança

 

Sol nascendo, chegando

 

Não há pão

 

Não há sossego

Meninos correndo

 

Menino sem condição

 

Irmão de todos os nus (todos são iguais, porém, a desigualdade presente na terra faz com que alguns tenham mais que outros)

 

Menino do mal trajar

 

Menino pobre (é) o teu lar (elipse)

 

Tira os olhos do chão, vem ver a luz

 

Um novo dia vem

 

Quem souber cantar virá também

 

Há de um dia cantar esta canção

 

Um dia hás de aprender

 

Toda a terra sorri

 

 

 

O poema reforça a ideia da desigualdade perante os homens, mas traz a esperança de que, um dia, esses meninos conseguirão ser felizes, visto que o ambiente se apresenta na canção mostrando 'esperança': o sol nasce para todos, a terra sorri [prosopopeia], e por isso, um dia, os meninos haverão de sorrir e cantar também. O poema enfatiza que o lugar é um bairro (que sabemos por Zeca Afonso que ele se refere a um bairro situado no Porto), porém pode ter relação com qualquer lugar do mundo em que a desigualdade esteja presente, cabendo, dessa forma, uma crítica ao problema social do mundo em geral - inclusive de Portugal. Essa desigualdade faz com que falte o "pão" necessário, referindo-se metonimicamente a qualquer tipo de alimentação que deveria ser adequada para todas. No restante do refrão "onde não há pão/não há sossego" cabem duas leituras: a primeira, sem a presença do pronome relativo "onde" na frase "não sossego", como escrito abaixo:

 

"onde não há pão não há sossego",

 

Com essa leitura o local representado pelo "bairro" revela a impossibilidade de haver paz e tranquilidade uma vez que não são todas as pessoas que têm uma chance de ter alimentação adequada. Na segunda leitura, - caso tenha ocorrido um zeugma com a omissão do "onde", ficaria assim descrito:

 

"Onde não há pão,

"(Onde) não há sossego"

 

No caso acima, o "bairro" apresenta dois grandes problemas: além de não haver alimentação adequada para todos, também não há "paz", podendo fazer alusão à Guerra Colonial, já iniciada nesse período, indicando a falta de paz das famílias ao saber que seus filhos ou maridos estariam combatendo nas províncias ultramarinas.

 

Ao mesmo tempo em que o poema apresenta as dificuldades de Portugal - e do mundo por extensão - ele também mostra uma forma de se ter esperança nos versos em que fala da natureza e da necessidade de os homens tomarem alguma providência, descrita na "condição": "Se não é fúria a razão; se toda a gente quiser" e "Se até dá gosto cantar; se toda a terra sorri". O poema também pode ser uma chamada para que todos "cantem" contra a injustiça, e que os cidadãos possam utilizar suas vozes como arma contra governos e regimes opressores, como se percebe nos versos: "queira ou não queira o papão, há de um dia cantar esta canção". Aqui o "papão" é uma metonímia de "governo" ou daqueles que se enriquecem às custas do outro, provocando uma enorme desigualdade econômica e social no país. O poema contém uma anáfora ao iniciar, pelo menos por quatro vezes, um verso com a conjunção "se": Se até dá gosto cantar/ se toda a terra sorri; se não é fúria a razão/ se toda a gente quiser, mostrando que depende da população uma mudança em relação à realidade apresentada no poema.

 

Embora o poema fale de um espaço e momento específicos, ele dá margens para ser utilizado em contextos e épocas distintas, sendo, portanto, tão atual e presente nos dias de hoje. Pensando à época em que o poema foi feito, durante a Guerra Colonial, o "bairro" também poderia ser interpretado como uma das províncias ultramarinas, atribuindo toda a desigualdade em que lá existia (e ainda existe) em relação a outros países desenvolvidos.

 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016

 

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Nota:

78 Como visto no website da Associação José Afonso: http://www.aja.pt/verso-dos-versos/

 





CARREIRO, José. “Menino do Bairro Negro, Zeca Afonso”. Portugal, Folha de Poesia, 17-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/menino-do-bairro-negro-zeca-afonso.html



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