NAVIO
Tenho a carne dorida
Do pousar de umas aves
Que não sei de onde são:
Só sei que gostam de vida
Picada em meu coração.
Quando vêm, vêm suaves;
Partindo, tão gordas vão!
Como eu gosto de estar
Aqui na minha janela
A dar miolos às aves!
Ponho-me a olhar para o mar:
‑ Olha um navio sem rumo!
E, de vê-lo, dá-lho a vela,
Ou sejam meus cílios tristes:
A ave e a nave, em resumo,
Aqui, na minha janela.
Tenho a carne dorida
Do pousar de umas aves
Que não sei de onde são:
Só sei que gostam de vida
Picada em meu coração.
Quando vêm, vêm suaves;
Partindo, tão gordas vão!
Como eu gosto de estar
Aqui na minha janela
A dar miolos às aves!
Ponho-me a olhar para o mar:
‑ Olha um navio sem rumo!
E, de vê-lo, dá-lho a vela,
Ou sejam meus cílios tristes:
A ave e a nave, em resumo,
Aqui, na minha janela.
Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida
ORIENTAÇÃO DE LEITURA
A realidade observada, o topos da infância, é sublimada, através do exercício da escrita para um outro plano, e remete para a interioridade do sujeito, que se funde, por intermédio de uma linguagem metafórica, na terra natal distante e perdida: “Tenho a carne dorida”. A ilha é caracterizada pela sua abundância e fertilidade – as aves, “quando vêm, vêm suaves”, mas partem gordas. O vaivém das aves pode ser associado ao exercício da escrita, pois o poeta, qual ave, procura, “suave” o regresso à terra natal, onde pretende mergulhar na sua essência, em busca da interioridade, saindo também ele mais fecundo.
Isa Severino, “A vivência da insularidade em Vitorino Nemésio e Cecília Meireles” in
Actas do I Encontro Açoriano da Lusofonia, Ribeira Grande, 5-7 Maio 2006.
Actas do I Encontro Açoriano da Lusofonia, Ribeira Grande, 5-7 Maio 2006.
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[O navio não possui, em O Bicho Harmonioso], a carga histórica de mediador de terras e de povos mas a carga erótica de precursor das águas, de mediador da «vaga» e do «capitão». [...] O navio é a figura que faz ocasionalmente coincidir os dois campos opostos, materialidade sólida e liquidez flutuante, formando um conjunto complexo que se associa ao próprio ser.
Duarte Faria, Outros Sentidos da Literatura
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A primeira estrofe repete a imagem do suplício prometéico: aves a assaltar o eu lírico. Logo, é preciso averiguar a natureza simbólica destas “aves”, que são, a um só tempo, tormento e prazer (“carne dorida” e “como eu gosto...”). Alguns versos dão pistas neste sentido: “Ah, que o canário é o meu sangue talvez!” ou “Que milhafre criou minha carne em seu bico?” ou ainda “Sempre gostei de aves e de lágrimas. / Lágrimas, agora, não podia, / Mas podia os alciões / - E dei-lhes meus olhos para ovos”.
As imagens aviárias estão ligadas à constituição do sujeito e, em última hipótese, metalinguisticamente à própria poesia. A postura do Eu, desta maneira, deixa sua forma passiva para assumir outra ambivalente: é ele o assaltado, mas também é ele a doar-se. São as aves a possibilidade de um utópico ovo, sinal de um tempo diverso, que aponta para o futuro (“E um ovo, /[...] /Que desse vida, penas, povo / Para as aragens e areais.”) e para o passado (“Ah, o ovo que deixei, bicado e quente, / Vazio de mim, no mar”).
As aves estão sob o signo de uma construção, que é alimentada pelo (próprio) Eu, mas que também o constitui – no mencionado duplo movimento ativo-passivo. Observemos duas passagens do poema “Minha voz”: “Quando acabares o pão, pede mais, / Pois te darei a tua parte:” e “Vamos a ver se eu te crio, / A ti que me encheste de ser”. Em “Navio”, as duas estrofes, formalmente, plasmam as forças (“picada em meu coração” e “a dar miolos às aves”) que competem e se equilibram no cerne de sua poética: o palco da coincidentia oppositorum. Para ecoar o anterior Eduardo Lourenço, Mircea Eliade, ao se questionar sobre o que revelam os mitos e símbolos religiosos que implicam a reunião dos contrários, afirma: “[revelam] antes de tudo, uma profunda insatisfação do homem com a sua atual situação, com aquilo que se chama condição humana. O homem sente-se dilacerado e separado.” (1999, p.127)
Em Nemésio, poderíamos dizer que os opostos procuram se harmonizam (“num negrume que afinal é toda luz que nos fica” ou “O malmequer me quis bem”). Contudo, ao Eu que a todo o momento dá provas de sua aguda consciência qualquer tentativa de uma estável comunhão mostra-se frustrada. Aquilo que Paul de Man percebe nos fracassos mallarmeanos caberia aqui: “when he thought to have reduced the totality of being to a status that makes it fit to be expressed in language, he had been deceived by part of it that he did not reach” (2005, p.160). Qualquer demanda de fixação pela poesia acaba por afastar o Eu da realidade concreta: “Que eu já só choro por medida / De versos, e (o que é pior) / Digo que choro: aprendo a vida / Talvez um pouco de cor.” E “Que esta vida cantada / Já nem sequer é vida”.
Estes últimos versos, extraídos de “O abuso da Harmonia”, estabelecem diálogo com “O Bicho Harmonioso” e tocam, portanto, no ofício poético. Adiante ele conclui “Seu eu não cantasse tanto / Vivia o dobro”. O destino de poeta prende-o até o âmago, sem possibilidades evasivas, ao confronto das questões de uma existência carente de respostas em seus propósitos últimos. Se sua condição é a do ser destacado, o adjectivo aqui não assume o caráter daquele que se sobressai, mas sim daquele que está isolado, separado e, portanto, obrigado a conviver com a tensão de seu senso diferenciado manifesto em seu canto: “Quando desejo ser (bem sei que minto) / Só paciência e marcha, como os mais”.
Para este sujeito tensionado, a janela é, por excelência, o lugar de observação (“Pobre janela aberta, / Minha medida, / A boca da minha casa”). Deste ponto eleito, o Eu enquadra o mundo, o que significa dizer que o olhar não incide livremente sobre o objeto, mas condicionado por um mediador (ou como dirá em “Uns Pinheiros: “Eu, na minha varanda de palavras”). A perspectiva do Eu não é unilateral, assim alternam-se momentos de observação dentro-fora. Georges Poulet, ao interpretar o poema “Les fênetres” de Mallarmé, comenta: “D’um cote de cette vitre, le poete; de l’autre son image magiquement transformée en elle d’un habitant de l’Azur : Je me mire et me vois ange...‟"(1952 apud REBELO 2005, p.32). Na modernidade de Nemésio, não há alternativas mágicas, mas existe – e isto nos interessa – esta dinâmica possibilitada pela janela: olhar e ver-se, i.e., ser olhado.
Logo, em “Navio”, o achado poético aproxima o olhar ativo e seu produto pelo jogo paranomástico, vê-lo/vela. Mas, se há um princípio de organização (a poesia dar rumo ao Eu = “de vê-lo, dá-lho vela”), a condição do poeta e a consciência de seu estado (na metonímia dos “cílios tristes”) desarticulam disforicamente a tentativa de síntese. Talvez por isso, “ave” está contido em “nave”: se a poesia é potencialmente livre, não o é o poeta consciente: para o olhar a sua janela.
A nau como duplo do homem é retomada em outros poemas. Trata-se também da viagem, cujo itinerário é desconhecido e cumprido solitariamente (“Aqui – um por todos e todos por um, / Embora, na verdade, não haja mais que um,”). O tema foi muito caro aos simbolistas: está em Mallarmé (“Salut”, “Brise Marine”) e, exemplo mais próximo, em Camilo Pessanha. O ambiente marinho sugere a imensidão, o absoluto e, por extensão, a completude da morte. Aqui, novamente, a imagem é de extracção decadentista- simbolista. Os versos de António Nobre - “Quando eu morrer, hirto de mágoa, / Deitem-me ao Mar!” (Do poema “António”, 2009, p.61) – ganham eco em Nemésio: “E vou, lavado em mar e enxuto em ossos, / Buscar a minha estrela aos céus de Oeste:” e “E levem-me – só horizonte – para o mar.”
A aproximação quanto ao tema da morte possibilita dois desdobramentos. Se é verdade que há uma conotação de restabelecimento de completude existencial através da morte, ela nunca ocupará, na poesia de Nemésio, o lugar que tem na de Pessanha e Nobre, por exemplo. Como lembra Seabra Pereira, o tema da mors liberatrix para estes poetas estava ligado a certa abulia e ao “alheamento do corpo e da alma como única fonte de pacificação” (1975, p.344). Em Nemésio, os poemas sob este tema parecem mais imbuídos de um sentimento de “preparação para a morte”, para evocarmos termos bandeirianos.
Outra consideração relevante diz respeito ao panteísmo contido nos versos. A figura do mar traz consigo a sugestão do ventre uterino, ou seja, a morte neste ambiente também é reintegração a uma instância pré-natal totalizante. […]
Se “Navio” é, como lemos, um poema de propensão intimista sobre a constituição do sujeito e sobre o alcance da linguagem neste processo, ele insere-se numa das mais altas discussões da modernidade. A dicção, no entanto, não se investe do modo grandioso que recomendava o decoro clássico. A própria escolha lexical denuncia isto: “aves gordas”, “dar miolos” e “carne dorida” – o mesmo poderia ser dito de “O Pastor Morto”: “neve à sua cara” e “ervas gordas”.
Este pendor ao registro humilde revela uma sensibilidade que não hierarquiza temas, imagens e formas e vê até no mais singelo a potência do sublime. Parece ser esta a opção explicitada por Nemésio justamente no poema “Arte poética”: “Nem o abstracto nem o concreto / São propriamente poesia. / Poesia é outra coisa. / Poesia e abstracto, não.”
A chave de leitura não há de ser nem idealista, nem materialista, pois pressupõem a primazia deste ou daquele domínio. A poesia existe em uma autonomia possibilitada justamente por esta viragem da humildade. A lírica inicial nemesiana não adere, com isto, nem a uma noção do concreto da tendência neo-realista da década de 40, tampouco à “imaginação psicológica” abstratizante da geração anterior presencista.
A voz poética é modulada de forma livre, o que lhe permite criar um singular registro poético no Modernismo e aproveitar temas decadentistas sob rupturas e inversões da humildade.
Em outras palavras, se Óscar Lopes acerta em apontar “o jardim de temas da sua infância açoriana” (1989, p.1117), há de se considerar também, como procuramos demonstrar, que estes temas e imagens, reelaborados pela sensibilidade particular do poeta, têm notas decadentistas, o que imprime nuanças interessantes à produção de Nemésio.
Leonardo de Barros Sasaki, “Palavras escuras, luz do canto: Vitorino Nemésio e o decadentismo-simbolismo” in Revista Desassossego, FFLCH/USP.
LINHAS DE LEITURA
1. Que significado tem, para o sujeito poético,
- a janela?
- as aves?
- o navio (nave)?
2. Note a diferença de ritmo dos dois últimos versos da 1ª estrofe para os três primeiros da 2ª estrofe. Em que assenta essa diferença?
3. O acento silábico e a cesura de:
«Quando vêm, vêm suaves;
Partindo, tão gordas vão!»
lembra a poesia popular, nomeadamente as «bailadas», cuja técnica também fazia submeter os seus versos a um ritmo pontuado, próprio à dança.
4. O interesse desta poesia reside, ainda, no jogo das sonoridades. Repare no uso da paranomásia em vê-lo/vela e na similitude fónico-semântica de ave/nave.
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/19/navio.aspx]