sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ENCHI DE OESTE A MINHA VIDA (Vitorino Nemésio)

O OVO

Enchi de Oeste a minha vida,
Como se o Sol, que estira os peixes,
Me desse a terra percorrida,
O mar curvado e um não-me-deixes.

Sol fui no arco dos dias
E, pesado
Na minha luz, já mais do que o meu fogo,
Levei as ondas frias,
O vento e a vida logo.

Tudo levei, coroado de horizonte;
O amor queimei na tarde vaga,
Com uma ilha defronte.

Mas, queria, mais que o mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
De aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.

E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.
     

Vitorino Nemésio, Nem toda Noite a Vida (1953)
    
        
        


TEXTO DE APOIO
       
[…] o ovo (que, como se viu, ocorre no poema dos «Versos a uma cabrinha que eu tive», na imagem emblemático-simbólica final do «ovo e a ave: / Grande segredo / Equilibrado») é matéria germinal, fonte de vida encerrada à espera ,da sua hora, como elemento integrante de substância primordial, como o penedo e a rocha de onde brota a água, como a cabrinha indomável, a tartaruga lenta e o milhafre em seu paço.

De resto, como aliás já notou Esther de Lemos, o ovo é elemento simbólico-mítico de preferência de Nemésio. A ele já recorreu noutros textos que remontam a uma fase bem recuada da sua obra. Analisemo-lo, pois, em alguns poemas.

Em «O ovo» dá uma imagem da sua dependência afetiva, reitera a angústia de não poder silenciar o fascínio do mundo da sua meninice, das ilhas, do Oeste. Reconhecer a impossibilidade de repisar o perdido «[ ... ] praias carregadas / De passos, conchas e do haver / Das aves livres lá pousadas») não refreia a audácia, embora comedida, de sonhar com outra vida:
     
E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.
     
Um ovo que proporcionaria a revitalização do espaço físico e dele próprio. Porque é como elemento fecundado que Nemésio vê retrospetivamente a Ilha Perdida com a qual mantém como que um elo letárgico:
     
Ah! Ovo que deixei, bicado e quente,
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar ‑ ardente Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!

[…]
[Na conferência intitulada «Le mythe de M. Queimado» Nemésio faz] referência a um ovo deixado numa rocha, que não será por acaso que se chama rocha do Peneireiro.
[…]
Não parece, pois, ser por acaso que este «jeune homme naïf», caracterizado «par je ne sais quel côté irréel, o conduza num itinerário simbólico através da ilha, até à ponta da Serreta (a mesma que figura na fotografia da capa da 1ª edição do Corsário... ) e aí, levado «mysterieusement à un creux du rocher», fiquem perante um rochedo (bíblico-cósmico, diríamos quase) onde um ovo tal como o «ovo bicado e quente» deixado no mar e citado n'«O canário de oiro» ‑ é origem de vida:

«C'était un oeuf, rien qu'en oeuf, et admirablement pondu […] (p. 14). […] cette drôle d'histoire d'une calombe marine à queue blanche, et de son oeuf attendant dans un creux de rocher une éclosion symbolique […]» (p. 17).
     
O que é certo é que este personagem misterioso, que depois apareceria como contador das suas histórias, lhe deixa uma funda impressão que nos parece uma significativa identificação: «Quelque chose de la nature de M. Queimado m'a atteint à jamais. Et je ne vois de tout cela qu'en oeuf de cruombe courounné de brouillard à 28° de latitude Nord e 27° de longitude Oest, méridien de Greenwich» (p. 19).
O que parece, pois, comum à poesia nemesiana e a estas páginas de prosa ensaística semificcional do conferencista de 1940 é o tema cosmogónico do ovo, seja no rochedo ou no mar, em todo o caso ponto de partida vital e ponto de partida para as «viagens» verbais de toda a criação poética nemesiana. Com feito, é esta força vital que parece impeli-lo renovadamente na busca da Ilha Perdida, cujo húmus arquetípico se situa no passado e cuja «corporalidade» sofre adaptações; a Ilha Perdida flutua, e em parte, regressa de tempos a tempos.
       
Maria Margarida Maia Gouveia, A viagem em Vitorino Nemésio, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986, pp. 119-122
    


      
LINHAS DE LEITURA
         
Comente o poema, explicitando e desenvolvendo os tópicos:

• o tom retrospectivo;

• «Oeste»: a «terra percorrida e o mar curvado»;

• a identificação sujeito poético/Sol:
- a errância, a febre do horizonte
- o fogo, o amor;

• o desejo de mais errância/liberdade;

• o desejo do regresso à origem ‑ ao ovo;

• ainda o ovoa luta contra o tempo?
      
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       
       


SUGESTÃO
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/24/ovo.aspx]

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, Poema 12 (Vitorino Nemésio)

      






POEMA 12

Lembro o que perco. Estranho
Que meu regaço vá vazio.
Já enche o monte o meu rebanho
E, chega o inverno, tenho frio.

Se o mar que tive o sal me nega,
Como me posso conservar?
Minha saudade só despega
Quando não vê para cavar.

Abri agora o meu piano.
Que imprópria música desprende!
Mofo e tristeza de ano
Seus tendõezinhos prende.

Mas toco. Junta-se gente:
São os retratos da sala,
Que o ar da noite acentua.
A minha mão lhes fala
Da sua vida ausente
Naquela parede nua.

Que exacta, a minha mão
No seu mover, chamando
A música remota!
Sérios, os mortos vão
Seus lugares retomando
Enquanto a noite se esgota.

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          
         



LINHAS DE LEITURA
      

Faça o comentário do poema, tendo em conta as seguintes linhas:

• o sentimento de perda, de vazio, de frio;

• a memória;

• a saudade do mar, insistente;

• as imagens de raiz rural e as imagens de raiz marítima;

• o piano: a música a convocar o passado, os mortos;

• a consciência do tempo que passa, o inverno e a noite chegados.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       
       


SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/23/poema12.aspx]

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

NOITE, MATÉRIA DA MORTE (Vitorino Nemésio)

       
http://www.miguelclaro.com/wp/?portfolio_category=azores-nightsky




Noite, matéria da morte,
Acostuma-me a ti;
Dispõe de sul a norte
A Barra que eu perdi.

O vaso de mistério
Que o dia apaga ‑ põe-o
A mim cheio e evidente:
Coisas que são do sonho,
Que não as veja gente.

Meu sono cava, ó casta e sossegada,
Como se fosse a tua horta.
Na terra humana tudo pega,
Até silêncio!
Planta sossego à minha porta.

E cresça do sossego
Então minha alma nova,
Como a rosa, que é só decência e apego
A uma modesta cova.
    

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
    



    
LEITURA ORIENTADA
       
1. Releve as expressões textuais que integram o campo lexical da «noite».

2. Atente na relação eu/noite.

2.1. Indique, relevando marcas textuais, a função da linguagem que melhor exprime essa relação.

2.2. Relacione a função aludida em 2.1. com o estado de espírito do eu poético.

2.3. Do apaziguamento trazido pela noite, espera o eu poético renascer.

2.3.1. Destaque os elementos textuais que reenviam para a ideia de apaziguamento» e de «renascer».

2.3.2. Em que consiste o desejo de renascer do eu poético?

2.3.3. O que é preciso ao eu poético para «renascer»?


      
      
CHAVE DE RESPOSTAS
      
1. Noite: «matéria da morte»; «de sul a norte» (= da vida para a morte), «vaso de mistério»; «sono», «casta e sossegada».

2.1. A função apelativa está em destaque no poema, bem patente no recurso à apóstrofe («Noite», v. 1); «Ó casta e sossegada») e à frase imperativa: «acostuma-me a ti»: «põe-o»; «que as não veja gente», «meu sono cava»; «planta sossego».

2.2. A função apelativa serve a expressão da súplica de um eu que busca apaziguamento.

.3.1. apaziguamento: «Meu sono cava»; «Planta sossego à minha porta»; renascer: «cresça do sossego/[...] minha alma nova.».

2.3.2. Consiste na aceitação humilde e resignada da sua condição de mortal, dada pela imagem da rosa que só pode crescer presa a uma «modesta cova».

2.3.3. Que se habitue à ideia da sua finitude (cf. v. 2) e que abdique do sonho (cf. vv. 8-9), condições indispensáveis ao apaziguamento que procura.
      
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
       
    


SUGESTÃO
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/22/Noite.Materia.Da.Morte.aspx]

terça-feira, 21 de agosto de 2012

SENHOR, NAS MINHAS VEIAS (Vitorino Nemésio)



EX06 (untitled). Artist:  Tomasz Alen Kopera. Movement:  magical realism. Type:  oil on canvas. Dimensions:  100x120cm / 39x47in. Year:  2021





Senhor, nas minhas veias
Trago a morte medida.
Sou lâmpada de pobre:
Nem toda a noite a vida,

Já meu sangue estremece;
Veio uma asa ao lago.
Minha mão arrefece
Nestas coisas que afago.

Que maneira de amor
Fui, no menino ido!

Agora, seja o que for
Já no homem cumprido.

Até ao último fio
Poupei o dote divino.
O homem de Deus perdi-o;
Só salvei o menino.

Esse me leva e enche
Como uma onda do mar:
Minhas fraquezas preenche,
Que a grande força é brincar.

Já vai escurecendo;
O sangue pára de arder.
Agora, o que digo acendo
Para me não perder.

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste

Pavel Dolsky, Ícaro, 2004



      
ICARUS, Bogdan Goloyad, 2015



      
LEITURA ORIENTADA
       
1. Analise o texto, tendo em conta as seguintes dicotomias:
- morte / vida;
- escuridão / luz;
- frio / calor;
- perdição / salvação;
- pecado / inocência;
- adulto / criança;
- indiferença ou abandono/ réstia de esperança.

2. Caracterize a atitude do eu poético perante Deus, ilustrando a sua resposta com citações.

3. Tendo em conta o mito de Ícaro, interprete os versos: "Já meu sangue estremece; /Veio uma asa ao lago".

4. Segundo José Martins Garcia, Eu, comovido a Oeste encerra o ciclo da demanda da «poesia prometida». Complete as frases que se seguem com citações do poema:
o poema fecha-se com circularidade; retoma-se a ideia de "veias" («________________________») e de escuridão: «________________________»
Feito o percurso, o que resta como salvação possível no momento presente é a poesia como luz intermédia («lâmpada de pobre») que evita a escuridão absoluta e a perdição: «________________________».

5. Faça a análise da estrutura formal do poema (estrofes, métrica e rima).
         
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
       

File:Johan Jongkind - Clair de lune à Overschie.jpg
Johan Barthold Jongkind, Clair de lune à Overschie, 1855

       

SUGESTÕES DE LEITURA
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/21/Senhor.Nas.Minhas.Veias.aspx]

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O PASTOR MORTO (Vitorino Nemésio)

           
"Admirável gado novo", José Carreiro (Feteira Grande, 30-05-2011)

        
O PASTOR MORTO

De madrugada a neve envidraçou-o.
Seus olhos rasos de um espanto podre,
As águias o mediram pelo vôo
E se encheu de silêncio como um odre.

Cheirado dos carneiros atrevidos,
Húmido fica já no fio lilás,
Aquilo sim, é que se chama paz,
Ali, à serra e à morte todo ouvidos!

Lá vêm as flores da neve à sua cara
E seu rubor perdido copiado
Pelo extenso corar das ervas gordas.

Atravessa, atravessa os rolos frios
Do tempo, o nevoeiro, e o passo às hordas
Dourado e podre sob os astros frios.
          
Vitorino Nemésio
          



         
TEXTOS DE APOIO
       
De um único morto anónimo se ocupa Nemésio na singular elegia “O pastor morto”. Hesita-se entre a sublimação redentora e a materialidade desenganada, entre o cadáver “belo” e o cadáver podre. Hesitação veiculada desde logo pelo oximórico “espanto podre” que qualifica os olhos do corpo jacente na neve. Toda a elegia se centra na visão do cadáver imóvel e no silêncio da natureza despovoada que o rodeia – “aquilo sim, é que se chama paz,/ ali, à serra e à morte todo ouvidos”. Não há vivalma, apenas a paisagem, animais e plantas. Para que a intromissão do seu próprio olhar não desfaça a aura de paz solene e trágica do quadro, o sujeito poético empresta o olhar às águias que medem o cadáver “pelo voo” e fá-lo cheirar por “carneiros atrevidos”. Nada se movimenta para fora do corpo do pastor, nem alma nem matéria. Tudo, pelo contrário, converge para ele: “lá vêm as flores de neve à sua cara/ e seu rubor perdido copiado/ pelo extenso corar das ervas gordas”. Apenas no terceto final o cadáver “atravessa, atravessa os rolos frios/ do tempo, o nevoeiro, e o passo às hordas,/ dourado e podre sob os astros fios”. Mas o cadáver não pode atravessar, apenas ser atravessado. Aquilo que passa é o tempo, rolando frio – tal como o nevoeiro movente – sobre o cadáver. Não há regresso do pastor morto à Natureza: esta colhe-o na sua indiferença, dedica-lhe o mesmo cuidado que dedica a um penedo imóvel na serra. Os astros estão, como ele, frios. Mas só ele é que está podre. Mesmo que dourado.
     
Rui Carlos Morais Lage, A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI ‑ Perda, luto e desengano, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010, pp. 291-292.
            
                 
*
        
           
Os dois quartetos põem em contraste o pastor estático no local de sua morte e a movimentação da natureza ao redor. O silêncio ganha estatuto outro na medida em que, tal como procede com imagens domésticas, presentifica-se (“encheu-se como um odre”).
Olhemos a cena novamente: este homem morre na montanha onde provavelmente trabalha, morre em meio ao rebanho que agora o fareja. Para além da delicadeza e simplicidade, o quadro imprime um forte caráter de pertencimento àquela terra – tanto do ambiente que pertence ao homem, como do contrário, que parece mais verdadeiro, do homem que pertence ao ambiente.
Este é o prelúdio para os tercetos finais, nos quais o teor panteísta discutido é patente: as flores parecem absorver a cor do morto que empalidece; a neve,  tornada flor, cai sobre sua face como se a natureza lhe provesse os trabalhos fúnebres; e a imagem final do nevoeiro, aludindo ao tempo, a assimilar completamente o homem.
O verso que sintetiza a sensação de paz (“Ali, à serra e à morte todo ouvidos!”), ao atribuir ação ao pastor morto, sinaliza esta outra possibilidade de perdurar a existência através da libertação da individualidade. A mesma dinâmica vida-em-morte identificada com o todo da natureza está posta em “Desabafo” (“Terei vestido e pão no mar e nos seus fundos / E nos peixes de cor as flâmulas de guerra; / Hei-de cravar o Sol no meu destino.”)
“O Pastor morto” ainda interessa pela sua estrutura; afinal, sua forma e metro são os tradicionais por excelência. No entanto, o tema, para tomarmos a invocação dOs Lusíadas, está mais para a “frauta ruda” do que para a “tuba canora” que os decassílabos sugerem. A antiguidade clássica tinha prescrições claras quanto aos estilos, a depender da natureza dos assuntos. A morte deste pastor anônimo cantada nas notas idílicas da “avena” é elevada não só pelo tratamento a que o poeta lhe dispensa mas também pela forma do soneto, o que revela um traço importante da lírica nemesiana, cujo olhar é extremamente sensível para a beleza das cenas simples.  ‑ Tematicamente, está nos “versos dedicados a uma cabrinha que tive”, em Eu, comovido a Oeste; quanto ao tratamento do tema, em “Canção do Búzio Velho”, no qual a inversão humilde contrapõe a adjectivação do búzio (“velho”, “ridículo”, “malhado”, “búzio de bicho comido”, “relho”, “desusado”) ao valor daquilo que ele evoca e ao canto em si; e, na apresentação da persona poética, em “Desabafo”, cujos versos “Não espero amor nem glória de ninguém: / Espero terra e cinza” condensam este sentimento de desprendimento e humildade.
       
Leonardo de Barros Sasakil, “Palavras escuras, luz do canto: Vitorino Nemésio e o decadentismo-simbolismo” in Revista DesassossegoFFLCH/USP.
       

       
                             
SUGESTÕES DE LEITURA
      
   
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/20/pastor.morto.aspx]