quarta-feira, 25 de maio de 2016

O homem-mãe (Cesariny)





Linhas de leitura:

- Pronuncia repetidamente em voz alta a frase seguinte: ‑ Ó mãe!

- Lê agora o título do poema de Mário Cesariny de Vasconcelos e explica as associações que se estabelecem entre as duas palavras que o compõem.
Apesar de serem palavras graficamente diferentes, a sua pronúncia aproxima-as.

- Observa o poema e verifica se essas palavras são recuperadas.
As palavras são recuperadas na sua totalidade, ou aparecem divididas em sílabas e sons.

- Apresenta várias formas de ler este poema.
A primeira estrofe pode ler-se horizontalmente, da esquerda para a direita. Já a segunda estrofe permite, por vezes, uma leitura horizontal e vertical (de baixo para cima e de cima para baixo).

- Que efeitos são conseguidos com a mudança do uso de letras minúsculas para letras maiúsculas?
As letras maiúsculas sugerem a leitura do poema em voz mais alta do que no caso das minúsculas.

- Identifica as sensações que tens que associar para entenderes este texto.
Visuais e auditivas.

Proposta de escrita recreativa, expressiva e lúdica:

Escreve um poema que ative um ou vários sentidos. Pode ser um poema:

- visual: por exemplo, jogos de palavras, experiências em vídeo, poemas tridimensionais;

- auditivo: por exemplo, jogos de sonoridades registadas em suporte áudio;

- comestível: por exemplo, poema feito de biscoitos.

Nota: sugere-se a visualização de exemplos de poesia experimental, particularmente a poesia animada por computador.

(in P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão. Lisboa, Texto Editora, 2012)




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sábado, 14 de maio de 2016

O guardador de rebanhos, Alberto Caeiro



Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr-do-sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr-do-sol
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minha ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa.
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos (poema I)



Audiopoema: poema dito por Luís Gaspar (Estúdio Raposa, http://www.estudioraposa.com/poetas/alberto_caeiro_guardador_sm.mp3, 2013-10-14)




Alex Howitt


Logo no começo do poema “O Guardador de Rebanhos” se declara pastor por metáfora (aqui desponta o “poeta bucólico de espécie complicada” que Pessoa, segundo a carta a Casais Monteiro, quis inventar para pregar uma partida a Sá-Carneiro). De pastor tem o deambulismo, o andar constantemente e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inexaurível variedade das coisas: “Minha alma é como um pastor, / Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar.” Anda a seguir, passivamente, como espírito concentrado numa atividade suprema: olhar. Os seus pensamentos não passam de sensações. Vive feliz como os rios e as plantas, gostosamente integrado nas leis do Universo. Não havendo para ele passado nem futuro, compreende-se que duvide do próprio eu. O retrato de Campos, uma vez mais, coincide com este modelo: limita-se a existir, tendo nos lábios o sorriso “que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol -, um sorriso de existir, e não de nos falar”. Às vezes o seu misticismo naturalista leva-o a desejar dispersar-se, a desejar transformar-se num rebanho, “Para andar espalhado por toda a encosta / A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo”. Ou então deita-se na erva (consta da “biografia” que vive no campo, com uma tia velha, numa aurea mediocritas horaciana) e o seu corpo “pertence inteiramente ao exterior”, sente a frescura cheirosa da terra, só ouve ruídos indistintos, ficou-lhe apenas “um resto de vida”.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa, Ocidente, 1949 (1.ª ed.).


Um dos documentos mais interessantes do espólio de Fernando Pessoa (1888-1935) é sem dúvida o manuscrito de O Guardador de Rebanhos, autógrafo assinado por Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, um dos heterónimos do poeta. Talvez não seja a mais importante peça do espólio, mas, como diz Ivo Castro no prefácio à edição deste texto, "por servir de sede completa a um dos seus grandes ciclos de poemas, por pôr em causa a versão do próprio Pessoa sobre a génese dos heterónimos, por fornecer amplos meios de corrigir o texto-vulgata de O Guardador de Rebanhos, por documentar reveladoramente os métodos de trabalho e de criação textual do poeta e, finalmente, por se ter conservado na obscuridade nos últimos quarenta anos, desconhecido do público e da maioria dos pessoanos, - por esses motivos todos o presente manuscrito [...] merecerá sem dificuldade ser considerado uma das joias da coroa".
Na verdade, este manuscrito parece à primeira vista confirmar esse "dia triunfal" a que se refere Pessoa na famosa carta a Casais Monteiro (13 de Janeiro de 1935) sobre a génese de O Guardador de Rebanhos e do seu heterónimo Alberto Caeiro:
"Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título - 'O Guardador de Rebanhos'. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive."
O Guardador é um ciclo de 49 poemas, que foi publicado na íntegra pela primeira vez em 1946, no volume intitulado Obras Completas de Fernando Pessoa. III. Poemas de Alberto Caeiro (Lisboa, Ática, 1946). O presente manuscrito inclui estes 49 poemas, escritos no mesmo tipo de papel, com o mesmo tipo de instrumento de escrita e a mesma caligrafia. Esta "unidade de escrita, de local e de tempo de conceção" parecem sugerir que este ciclo de poemas foi escrito de um jato e "em êxtase". Mas uma leitura atenta do manuscrito permite mostrar que assim não é.
Em primeiro lugar, a letra caligráfica, muito igual e desenhada, não parece ser compatível com uma escrita inspirada e veloz. Em segundo lugar, em vez de um, temos vários instrumentos de escrita: foram utilizadas quatro canetas diferentes no corpo do próprio texto. E, por último, o grande número de emendas, feitas em diversos momentos, e utilizando sete materiais diferentes, desmentem "a suposição de ter o Guardador nascido com o texto em estado definitivo".
A encenação desse "dia triunfal" é ainda desmentida pelas várias dezenas de rascunhos e cópias intermédias conservadas no Espólio da BN. Estes documentos mostram que no processo de escrita do Guardador houve pelo menos três fases distintas: uma fase de rascunhos (versões existentes no espólio), uma fase de passagem a limpo (o presente manuscrito) e uma fase posterior de emendas (presentes neste manuscrito).
Outro aspeto a salientar diz respeito à datação. No final do manuscrito surge a data "1911-1912", com a mesma caneta utilizada na assinatura "Alberto Caeiro". No entanto, alguns poemas estão datados no final a tinta vermelha, a mesma tinta que é usada na assinatura "Fernando Pessoa", que vem a seguir à do heterónimo. Estas datas (entre Março e Maio de 1914) colocadas posteriormente no final dos poemas, parecendo ser as ficcionadas (a primeira que surge é a do famoso "dia triunfal"), são provavelmente as que mais se aproximam da realidade, se tivermos em conta as datas dos rascunhos existentes no espólio, de Março a Maio de 1914, embora algumas não coincidam. E se não coincidem, surge uma nova dúvida: serão também inventadas as datas dos rascunhos? Provavelmente não, mas em Pessoa nem sempre é fácil distinguir ficção de realidade.
O interesse da divulgação deste documento reside ainda no facto de, tendo sido ele a fonte do texto publicado pela Ática (para os poemas não publicados em vida), permitir ao leitor o confronto entre o texto publicado e o original que lhe serviu de base. A Ática optou pela lição inicial e não pela versão final, que é considerada a lição mais autorizada por ter sido a única que o autor não repudiou, embora, na verdade, nunca se possa vir a saber se a repudiaria mais tarde. Mas um texto poético é sempre um texto aberto, e ao editor cabe apenas a obrigação de respeitar a última vontade do autor.
Manuela Vasconcelos
BIBLIOGRAFIA
Castro, Ivo (1981). "Para o texto de 'O Guardador de Rebanhos'". Sep. das Actas do Colóquio 'Critique Textuelle Portugaise' (Paris, 20-24 Out. 1981). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 319-328.
Castro, Ivo (1982). "O corpus de 'O Guardador de Rebanhos' depositado na Biblioteca Nacional". Sep. da Revista da Biblioteca Nacional, 2 (1), 1982, pp. 47-61.
Pessoa, Fernando (1986). O manuscrito de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. Edição fac-similada. Apresentação e texto crítico de Ivo Castro. Lisboa: D. Quixote, 1986.
Pessoa, Fernando (1946). Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1946 (Obras Completas de Fernando Pessoa, III).



Alex Howitt:











 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

                         

segunda-feira, 9 de maio de 2016

ERROS MEUS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE (Camões)


Marta Madureira (2012)


Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.
 
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
 
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
 
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido, revisto e prefaciado
 por Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005, p.170.

Fortuna – destino; se conjuraram – conspiraram; sobejaram – bastaram; discurso – decurso, percurso; mal fundadas – infundadas; duro génio – destino cruel, insaciável.

Linhas de leitura:
  • Estamos perante um soneto em verso decassilábico heroico, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, sendo de assinalar o ritmo ternário do 1.º verso.
  • Marcas de um discurso autobiográfico: uso da 1.ª pessoa do singular nos determinantes, pronomes e formas verbais (por exemplo, meus, minha, mim, passei, tenho, me, Errei, minhas, vi, meu); as referências ao percurso de vida («Errei todo o discurso de meus anos»).
  • Neste relato autobiográfico, o sujeito poético atribui as causas da sua perdição aos erros que cometeu, ao seu destino infeliz e ao amor intenso, sendo que o amor, por si só, seria suficiente para a sua perdição.
  • Os três termos dados no primeiro verso são desenvolvidos nos versos seguintes.
  • As expressões «Tudo errei» (2.ª quadra) e «Errei todo o discurso de meus anos» (1.º terceto) sintetizam a forma como o sujeito poético olha para a sua vida passada.
  • Na 2.ª quadra, o sujeito poético apresenta as consequências do seu passado de sofrimento no momento presente, a saber: a dor e o sofrimento passados foram tão intensos que impedem, no presente, o simples desejo de felicidade.
  • No 1.º terceto, o sujeito poético identifica-se como o verdadeiro culpado por tudo o que passou, porque considera que os seus erros impediram-no de ter outro destino traçado.
  • O amor, que já tinha sido referido na 1.ª quadra, reaparece no último terceto associado a «breves enganos» (i.e., as desilusões amorosas que terá sofrido).
  • Processos usados na construção do sentido disfórico do soneto: em primeiro lugar, o léxico selecionado pelo autor é fortemente indicativo de disforia: «em minha perdição»; «a grande dor»; «as magoadas iras»; «errei». O uso do pronome indefinido «tudo» («tudo passei») e do quantificador «todo» («Errei todo o discurso de meus anos») introduzem uma nota de extremismo no balanço negativo, nota que aliás se repete no verso «De amor não vi senão breves enganos». A acumulação no primeiro verso do soneto pode também considerar-se como um processo de construir a disforia já que a junção das três causas negativas poderá constituir um meio de as intensificar.
  • A interjeição «Oh!» acompanhada de uma frase exclamativa e de tipo imperativo estão ao serviço da expressão de um desejo que o sujeito poético gostaria de ver realizado: o de que as vinganças do destino acabem. Assim, os sentimentos presentes na interjeição que introduz os dois últimos versos são os de amargura, alguma revolta e necessidade de pôr fim ao sofrimento do próprio sujeito poético.

Questionários sobre a leitura do poema “Erros meus, má fortuna, amor ardente”.

 QUESTIONÁRIO 1

1. Explicite de que modo os «erros», a «fortuna» e o «amor» contribuíram para a «perdição» do sujeito poético, tendo em conta a primeira estrofe.

 

2. Explique as relações estabelecidas, na segunda estrofe, entre o passado e o presente.

 

3. No primeiro terceto, o sujeito poético assume-se como responsável pelos infortúnios que sofreu.

Justifique esta afirmação, referindo dois aspetos relevantes.

 

4. Interprete os dois versos finais do soneto.

 

 

Cenário de respostas:

1. Os «erros», a «fortuna» e o «amor» contribuíram para a «perdição» do sujeito poético do modo seguinte:

  • ditaram a inevitabilidade do seu sofrimento, numa ação convergente («em minha perdição se conjuraram» – v. 2);

 

  • levaram-no a sentir-se vítima da conjugação de três fatores nefastos: a «má fortuna» (v. 1), o «amor ardente» (v. 1) e os «Erros» (v. 1) que cometeu;

 

  • deram origem a um castigo excessivo, pois o amor, por si só, teria causado sofrimento bastante («que para mim bastava o amor somente» – v. 4).

 

2. As relações estabelecidas, na segunda estrofe, entre o passado e o presente podem ser explicadas a partir dos aspetos seguintes:

  • o presente conserva a memória do passado, marcada pela experiência do sofrimento, a tal ponto que a dor outrora sentida ainda persiste («tenho tão presente / a grande dor das cousas que passaram» – vv. 5-6);

 

  • a experiência do passado representa uma aprendizagem que condiciona a vivência do presente, levando o sujeito poético a abdicar de toda a esperança de felicidade («a não querer já nunca ser contente» – v. 8).

 

3. No primeiro terceto, o sujeito poético assume-se como responsável pelos infortúnios que sofreu:

  • por ter cometido «erros» que marcaram profundamente a sua vida («Errei todo o discurso de meus anos» – v. 9);

 

  • por ter dado azo a que a «Fortuna» (v. 10) o punisse;

 

  • por ter confiado em «mal fundadas esperanças» (v. 11).

 

4. Nos dois versos finais do soneto, o sujeito poético:

  • sublinha o sofrimento e a angústia, através da interjeição e do tom exclamativo;

 

  • expressa a mágoa provocada pelos infortúnios que marcaram a sua vida;

 

  • anseia pelo fim das provações por que tem passado;

 

  • dirige uma súplica a quem tivesse o poder de saciar o seu «duro génio de vinganças» (v. 14).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa | Prova 734 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2022 |11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março)

Prova: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/06/EX-LitP734-F1-2022_net.pdf

Critérios de correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-LitP734-F1-2022-CC-VD_net.pdf

 

QUESTIONÁRIO 2

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337 – Formação geral 11.º ano - Prova escrita de Português, 1997, 1.ª fase, 2.ª chamada)




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(Última atualização: 2022-07-26)


domingo, 8 de maio de 2016

a poesia das coisas se insinua (Idílio, Antero de Quental)





IDÍLIO

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Antero de Quental


Notas de leitura:
v. 1 e segs. António Sérgio (Antero de Quental, Sonetos, Lisboa [1967], pág. 40) considera este soneto uma maravilha de musicalidade expressiva, que analisa primorosamente. Faz notar o ritmo vivo, matinal, fresquíssimo das duas quadras, com a sua estrídula rapidez de ascenso e suas duas rimas em a e i - violinos, flautas; as três sílabas em on (cf. v. 8); a amplitude que se quebra a súbitas com um verso isolado (v. 9); o movimento afrouxa, ensurdece em uu, é soturno e fundo (v. 10); toda a orquestração vai descer aos baixos (com nasais e com uu), lembrando não sei quê de violoncelo e de fagote (vs. 12-14).
vv. 1-4. Repare-se nas representações de movimentos.
vv. 6-8. Na contemplação do céu, do horizonte, encontra expressão libertadora a imaginação visionária do poeta.
vv. 9-11. O amor revela-se pelos movimentos íntimos, indizíveis.
vv. 12-14. O amor abrange a natureza, santifica a paisagem, permite a identificação com o mistério que envolve o Homem. - Recorde-se o comentário de Ruy Galvão de Carvalho (Três Ensaios sobre Antero de Quental, Coimbra, 1934, pág. 29): «O mar e o vento são os dois elementos que melhor exprimem toda a ânsia libertadora da alma humana.» (Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.)
v. 13. Um poema, não sendo obviamente uma construção teórica, pode ter uma referencialidade que é a do pensamento, da reflexão, sempre que em relação a eles, como diria Antero de Quental, “a poesia das cousas se insinua”. Da poesia à filosofia e desta àquela pode estabelecer-se o mesmo “caminho da verdade”. Neste caso é o que vai ou ascende do particular para o geral, da palavra para a multiplicidade de sentidos. (Ser, um problema filosófico-poético?”, Fernando Guimarães.  Filosofia e Poesia - Congresso Internacional de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016.)


Inserido na expressão do lirismo amoroso, Idílio retrata uma situação de amor ideal.
O soneto narra momentos de grande tranquilidade do poeta com uma mulher. Calmamente, os dois amantes vão conjugando o seu amor com o próprio cenário. Verifiquemos a importância dos verbos “vamos”, “galgamos”, “contemplamos” que transmitem a ação na primeira pessoa do plural, facto que inclui o próprio sujeito poético na felicidade comungada pelos dois, induzindo a uma união não só física “Quando vamos ambos, de mãos dadas,”, mas também espiritual “Contemplamos as nuvens vespertinas”.
As duas primeiras quadras são, não só narrativas, mas também extremamente descritivas, na medida em que predominam adjetivos bastante expressivos – “orvalhadas”, “ermas”, “vespertinas”, “fantásticas”, “amontoadas” – que contribuem para que o leitor visualize o cenário que os dois amantes desfrutam. Este cenário está carregado de misticismo e é, igualmente, um ambiente contemplativo: “ermas cumeadas”, “fantásticas ruínas”, “o vento e o mar murmuram orações”, fazendo-nos lembrar a natureza dos românticos.
Perante este espaço, a companheira do poeta reage de um modo sui géneris – “de súbito, emudeces!” / Não sei que luz no teu olhar flutua; / Sinto tremer-te a mão, e empalideces…”, perturbando o sujeito poético que não encontra explicação para o seu comportamento. Porém, no último terceto, a vivência romântica é retomada com a personificação do vento e do mar que “murmuram orações” e, deste modo, nos seus corações se insinua a poesia que mais não é do que a harmonia que colhem do espaço onde se encontram:
“E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.”
A dupla adjetivação presente no último verso evidencia mais intensamente a sensação de amor e tranquilidade dos dois amantes. Este ambiente pacífico é também sugerido pela pontuação.
Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]




A geometria da razão opõe-se à lógica do coração, intuitiva do "fundo essencial da alma". Pergunta-se, se o conteúdo desta "deixará de ser (...) verdadeiro só por não ser rigorosamente lógico?" E afirma que "há muitas lógicas" e a do coração é onde se "sente a verdade eterna". Trata-se da lógica do sentimento que se manifesta na poesia, pois que "a poesia é também verdade [já que] é a evidência da alma". Devedor em certa medida do espírito romântico, reabilita Antero o carácter revelador e sublime da poesia, que brota da alma e que "prende as vontades e arrebata os corações”. É a poesia a palavra possível do silêncio em que a consciência se remete para si, pela sublimidade do momento em que a vontade é presa e o coração arrebatado. O real aí transfigura-se, pois que, enquanto o "contemplamos":
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das cousas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Todo o soneto "Idílio" ativa motivos naturais - o vento, o mar, as orvalhadas - a par de elementos humanos, que na sua combinação e relação sugerem e fazem conhecer pelo sentimento e pela intuição. A poesia nasce aí como a palavra própria de um silêncio "sobre-real", fruto de um pathos que premeia esse que a profere com "o batismo dos poetas".

A sabedoria oriental na obra poética de Antero de Quental e ensaística de Manuel da Silva Mendes, Carlos Miguel Botão Alves, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, 2014.


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

  Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



sábado, 7 de maio de 2016

O ser começa entre as minhas mãos de homem.





El ser empieza entre mis manos de hombre.
El ser,
todas las manos,
cualquier palabra que se diga en el mundo,
el trabajo de tu muerte,
Dios, que no trabaja.

Pero el no ser tambiém empieza entre mis manos de hombre.

El no ser,
todas las manos,
la palabra que se dice afuera del mondo,
las vacaciones de tu muerte,
la fatiga de Dios,
la madre que nunca tendrá hijo,
mi no morir ayer.

Pero mis manos de hombre donde empiezan?

Roberto Juarroz (Argentina, 1925-1995)
Poesia Vertical, 1958

*


O ser começa entre as minhas mãos de homem.
O ser,
todas as mãos,
qualquer palavra que se diga no mundo,
o trabalho da tua morte,
Deus que não trabalha.

Mas o não ser também começa entre as minhas mãos de homem.

O não-ser,
todas as mãos,
a palavra que se diz fora do mundo,
as férias da tua morte,
a fadiga de Deus,
a mãe que nunca terá filho,
meu não morrer ontem.

Mas as minhas mãos de homem onde começam?

Roberto Juarroz, Poesia Vertical. Tradução de Arnaldo Saraiva, 1998.


Desenha-se neste poema uma grande metáfora: a do ser (que é vida, movimento para os outros ou doação, palavra, morte, Deus) e a do seu contrário que é o não-ser (e que retoma o que o ser é num registo negativo). Talvez nos ocorra, ao considerarmos esta oposição ou esta diferença que também é semelhança, o poema de um dos pensadores da antiga Grécia, Parménides, onde ele nos fala do “caminho da verdade” que há-de conduzir à noção ou, melhor, ao pensamento de ser: “Necessariamente deve ser dito que o ser é, porque é Ser. Quanto ao Não-Ser ele nada é”. O poema, aqui, logo se converte em teoria ao estabelecer uma axiomática; como ocorre num axioma, Parménides infere dele consequências que ao longo do poema são explicitadas: o ser é uno, semelhante à curvatura de uma esfera, não provém do não-ser, etc. Mas, prosseguindo, ele socorre-se da mitologia ‑ que tão louvada foi por Schelling ‑, dizendo: “antes de todos os deuses criou Eros”. Ou, mudando de registo, considera que o ser olha constantemente “os raios brilhantes do sol”, como se, neste momento, passasse da teoria para a poesia!
Considerando o poema de Juarroz e o de Parménides, podemos talvez medir melhor a distância que vai de um poema que não é só filosofia a uma filosofia que não é só poema. O que quer isto dizer? Um poema, não sendo obviamente uma construção teórica, pode ter uma referencialidade que é a do pensamento, da reflexão, sempre que em relação a eles, como diria Antero de Quental, “a poesia das cousas se insinua”. Da poesia à filosofia e desta àquela pode estabelecer-se o mesmo “caminho da verdade”. Neste caso é o que vai ou ascende do particular para o geral, da palavra para a multiplicidade de sentidos.
A noção de ser, a qual vinda dos pensadores gregos pré-socráticos corresponde à realidade última das coisas, atinge um momento em que se torna contraditória em si mesma; é quando, já no século XIX, Hegel na Ciência da Lógica considera que no ser a falta de qualquer determinação faz com que ele acabe por se identificar com o nada. Ao contrário de Parménides, para Hegel o ser puro e o puro nada – assim os designa – são a mesma coisa, o que faz com que a sua verdade consista num ato de pensar sempre que este vai de um para o outro. É o devir, o ponto de partida mesmo para um método, a dialética que se torna no caminho que conduzirá a um conhecimento total equivalente à realidade última das coisas – não o ar, a água, o fogo, etc., dos pré-socráticos – mas, sim, ao pleno saber ou Sistema. O Sistema é, pois, o pensamento considerado na sua totalidade, isto é, o conhecimento absoluto…
Neste caso, o pensamento e, como ocorre nos pré-socráticos, a realidade ficam circunscritos à sua essencialidade. Mas a esta perspetiva essencialista pode contrapor-se, como acontecerá no século seguinte àquele em que viveu Hegel, uma outra perspetiva que, genericamente, poderíamos considerar como existencialista. O pensamento é incarnado, refere-se à existência humana, é nosso. Como se dá a posse por nós do conhecimento? Será mediante os múltiplos sentidos da linguagem, não só naquela em que as palavras são os mediadores como acontece na poesia, mas, por extensão, em todas as formas de simbolização. É esta convergência de sentidos que vai ocorrer na criação artística, de modo que se passa da área do lógico ou do ontológico para a do simbólico. É aí que, em arte, o conhecimento se há-de realizar.
Criam-se referências ou disposições verticais (ou paradigmáticas) de sentido, que já se não orientam diretamente para as coisas reais ou indiretamente para conceitos que, como o de ser, se configuram abstratamente. Será, então, o momento em que encontraremos uma espécie de verticalidade que se assemelha à de uma árvore, com as suas múltiplas raízes, múltiplos ramos, múltiplas folhas.

Ser, um problema filosófico-poético?”, Fernando Guimarães.  Filosofia e Poesia - Congresso Internacional de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016.


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