quinta-feira, 10 de junho de 2021

Quando a harmonia chega, Carlos de Oliveira

 


Quando a harmonia chega

 

Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.

Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente que desperta no rumor das casas, forças surgindo da terra inesgotável, crianças que passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e irrevogável, a humanidade está na rua.

E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao encontro da luz, parece de repente uma ave de fogo.

 

Carlos de Oliveira, Terra de harmonia. Lisboa: Centro Bibliográfico de Lisboa, 1950.

 

Photo credit: Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras.
Photo credit: Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras.


O texto "Quando a harmonia chega” classifica-se como prosa poética, porque se encontra escrito em prosa, mas apresenta características poéticas, nomeadamente a intenção estética, a expressão da subjetividade do sujeito poético, a linguagem plurissignificativa e conotativa e a presença de recursos expressivos. (Paiva: 2013, 218)


***


Em consonância com a reflexão metapoética que atravessa os seus poemas, o segundo volume de Trabalho Poético reúne número considerável de poemas em prosa, vários deles numa partilha um tanto indistinta entre puro lirismo e narrativa curta, mas geralmente prevalecendo a lírica. Uma das razões a pesar na decisão é, certamente, o modo das formas verbais, onde pontua um presente do indicativo ao serviço da descrição de uma situação que diz o “aqui” e “agora” ou um presente de valor iterativo a traduzir uma ação reiterada, fruto de uma experiência, real ou imaginada, sedimentada na memória do poeta. Temos no primeiro caso “Quando a harmonia chega”, que encerra Terra de Harmonia, e “Estrelas”, de Sobre o lado esquerdo. Aquele é um poema em prosa, com verbos no presente do indicativo de valor descritivo. Estruturado em três parágrafos, vive de um perfeito equilíbrio entre o estar ali do poeta (que observa, sente e escreve), apresentado no parágrafo inicial, a fervilhante movimentação da labuta diária matinal, descrita no segundo parágrafo, e a conclusão do último, podendo ser considerada a “chave de ouro do poema”, como a tinha o soneto.

 

“As curtas histórias do conto moderno, o poema em prosa e o fragmento lírico”, Rosa Maria Goulart. Forma Breve - O conto: o cânone e as margens. N.º 14. 2017. https://doi.org/10.34624/fb.v0i14.172

 

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Esquema interpretativo do poema em prosa  “Quando a harmonia chega”, de Carlos de Oliveira:

1.º parágrafo

Sujeito poético

2.º parágrafo

Os outros

  • Escritor: trabalhador intelectual que acaba de criar um livro, construído com as palavras, a sua matéria-prima.

  • Operários ou lavradores: trabalhadores braçais

  • Construtor artístico de um mundo etéreo

  • “construtores terrenos”

  • Sentimento de tranquilidade por ter concluído o seu trabalho

  • Fervilhantes, cheios de energia (ou ânimo) para a jornada de trabalho

  • Trabalho realizado durante a noite e madrugada (referência ao fim de um ciclo)

  • Trabalho realizado durante o dia, tendo sido iniciado de madrugada (referência ao início de um ciclo)

3.º parágrafo

A Humanidade (o sujeito poético e os outros)

  • Síntese: A “humanidade” é vista como uma Fénix (“ave de fogo”) que diária e harmoniosamente conclui de madrugada um ciclo de trabalho, retomando de seguida a construção do mundo.

 

Identificação dos recursos expressivos do poema e explicitação da sua expressividade:

O poema apresenta um forte investimento na linguagem poética, desde logo através de vários recursos expressivos. Assim, no primeiro parágrafo, o “coração” – símbolo e metáfora do sentimento – surge personificado de modo a realçar a tranquilidade do sujeito poético por ter concluído o seu período de trabalho. Esta alusão expressiva ao coração, que liga o estado de «alegria» e de «harmonia», pode também ser entendida como uma sinédoque usada pelo sujeito poético para se referir a si próprio.

Embora, convencionalmente, o sentimento (“coração”) e o saber (“sei”) surjam antiteticamente na literatura, aqui parecem convergir, visto que o sentimento de serenidade mantém-se, mesmo com o saber de experiência feito de que a criação artística é uma “alegria” que “se reconstrói e continua”, isto é, o sujeito poético está consciente de que as palavras, enquanto matéria-prima, podem, jornada após jornada, ser novamente trabalhadas na (re)construção  da obra de arte de que é exemplo o “livro” que o sujeito poético escreve.

A metáfora está também presente na expressão «os construtores terrenos», isto é, os trabalhadores terrenos/da terra (operários ou lavradores) que ele sente / ouve passar no exterior.

Na penúltima frase, há a comparação entre a ida da multidão para a rua e o curso “lento e irrevogável” (dupla adjetivação) do rio que aponta para a inevitabilidade das ações em questão.

Na última frase, está presente uma metáfora, “ave de fogo”, que remete para a simbologia da Fénix – tal como a Fénix tem a capacidade de renascer das cinzas, também a humanidade tem a capacidade de reconstruir a harmonia, no início de cada dia. (Marques: 2013, 271)

Existe ainda uma comparação entre a ave de fogo e a harmonia (a harmonia […] parece de repente uma ave de fogo”), transmitindo o caráter repentino, intenso, quase mágico, da revelação da harmonia: a ave passa rapidamente – “de repente” –, de forma intensa, qual labareda – “ave de fogo” –, sendo que a ave de fogo é um ser imaginário, fantástico. (Amaro: 2013)

“Como um rio lento” assim é, diríamos, o ritmo tendencialmente lento do poema que o espraiar das frases permite.

José Carreiro, “Quando a harmonia chega, Carlos de Oliveira”, in Folha de Poesia, 2021-06-10. <https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/06/quando-harmonia-chega.html>

Como saber se o que eu escrevi é poesia



 Por: Bibliomundi


O que define se você é um poeta? E como saber se essas palavras que você escreveu formam, afinal, uma poesia?

Basta escrever uma ou outra coisa, um verso aqui, outro ali, e pronto? Se quebrar as linhas fora da prosa, já é automaticamente poesia?

Essas são questões que podem assolar qualquer escritor. Quem dirá os aspirantes a autores, que não tiveram a oportunidade de publicar livro ainda. É como se para alcançar a forma que é o poema, você precisasse evoluir até um patamar de ouro, como se um coro de anjos descesse do céu para consagrar sua obra.

Mas qualquer pessoa pé no chão sabe que isso não vai acontecer. E por mais que você receba a dita consagração terrena, ganhando concursos, conquistando leitores, quiçá sendo premiado pelas suas publicações… Ainda assim, essa sensação pode assolar você.

Na verdade, já falamos sobre isso aqui no blog de autopublicação da Bibliomundi. Se chama a famosa síndrome do impostor, quando você sempre acha que não é bom o suficiente, que na verdade é uma farsa.

Ou seja, essa mesma dúvida se você pode se considerar um poeta de verdade, ou se pode chamar essa coisa que você botou no papel de poesia.

Vamos falar sobre poesia. Pode-se definir um poema como um conjunto de palavras que expressam ideias ou emoções de forma vívida e imaginativa. Pode-se dizer que um poema deve seguir uma determinada métrica, ter determinado ritmo. Pode-se dizer que é uma técnica literária que se diferencia da prosa e da fala normal. (Fonte: Literary Devices)

Mas também pode-se questionar: todo poema precisa ser assim, vívido e imaginativo? E se o poeta jogar a métrica e ritmo pro ar, será que não é mais poesia? Não pode ser verso livre? Pode-se questionar até mesmo se a poesia é sempre em verso, e se o poeta decidir não quebrar as linhas e basicamente escrever poesia em prosa… é proibido?

Não. Não é proibido.

Olhe bem, a poesia é mais livre que isso e defini-la pode ser tão difícil quanto definir o que é a literatura. E se você acha que é simples, é porque não buscou definições o bastante.

Aí é que está: definições, no plural. Da antiguidade até a contemporaneidade, não se pode confinar a poesia a apenas uma definição. Nem sequer é possível confiná-la a um único idioma, cultura, contexto. A poesia foi atravessando a história, ganhando novas formas e significados.

O que se entende por poesia hoje não só pode como deve ser um tanto diferente do que foi há dois mil anos atrás. E que maravilha!

Isso não é para dizer que toda pessoa lerá qualquer coisa e dirá: é poesia.

Talvez para fazer poesia seja preciso certa intencionalidade. E sem dúvidas cai bem compreender um pouco do que se entende por poesia, de hoje até o passado.

Você pode buscar inspirações nos poetas que mais mexem com você. E pode até mesmo não gostar de poeta nenhum até agora, mas continuar sua busca para ver se o problema não era uma definição limitadora, confinante, do poema, que não representava a poesia que sai e toca no seu âmago.

Talvez a lírica épica mexa contigo… Talvez você se encante pelos versos dramáticos de Shakespeare. E que interessante que separamos os gêneros literários em épico, lírico e dramático, mas o verso possa se espalhar por todos eles.

E quiçá a maior lição que você deverá aprender hoje é que mesmo uma criança pode escrever poesia. E talvez ela escreva sem que ninguém a ensine “é assim assado”. Talvez todo o repertório dela venha, apenas, de ler outras poesias e, um belo dia, por qualquer motivo que seja, decida colocar as palavras no papel.

Até mesmo uma criança pode ser consagrada pela poesia que escreveu, inclusive. Existem concursos para poetas infantis, que foram incentivados a escrever por suas escolas. Esses concursos podem ir a níveis municipais, estaduais, regionais, nacionais, mundiais.

Da singeleza inocente de uma criança, pode sair poesia. Da vivência adulta, também.

Talvez o que você precise absorver é que o julgamento de valor nem sempre dá conta de “proibir” a arte. Que o julgamento de valor do outro não pode “despoetizar” o seu poema.

Mesmo que considerem seu poema um lixo, não podem tirar de você a poesia.

E o que é o outro, não é mesmo? Deve escrever sempre a espera das críticas alheias? O outro pode amá-lo ou rejeitá-lo. Essa mistura de reações pode vir ao mesmo tempo. Talvez seja uma depois da outra. Talvez seu primeiro trabalho encontre rejeição e o segundo, consagração. Talvez o contrário.

A poesia é livre. Não é confinada. Você pode experimentar e experimentar. Pode experimentar no verso livre, depois no pentâmetro iâmbico. Pode abandonar as rimas, depois buscá-las. Pode só jogar sentimentos no papel, ou pode tentar abordar um conceito.

Pode escrever e publicar ebook sem olhar para trás… Ou pode editar e editar sua poesia incansavelmente para refiná-la até a mais intencional escolha de palavras. É sempre válido.

Aqui na Bibliomundi, acreditamos que a literatura é de todos para todos. A poesia, também.

Não confine a poesia, tudo bem? E nem a si mesmo.

E aí, autor? Pronto para se libertar?

Se você ainda não está satisfeito e quer saber mais sobre como escrever poesia, dê uma olhada nestes artigos:

Não sei como escrever poesia

Escrevendo um poema em 10 passos

5 dicas para escrever um poema

Autopublicação e tendências: ebooks de poemas

Descubra como escrever um conto ou poema fascinante com Edgar Allan Poe

 

“Como saber se o que eu escrevi é poesia”, redação da Bibliomundi, 2021-06-09

https://bibliomundi.com/blog/como-saber-se-o-que-eu-escrevi-e-poesia/

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Estrada Nacional, Rui Lage


 

EN 15

 

Encosto à berma da estrada nacional 15

para tirar a bexiga do aperto

em que se achava.

Faço pontaria a uma esteva

cativa de moita empoeirada,

na caruma um delta depois

uma enseada.

Miro de soslaio as aldeias agarradas,

quais carraças,

ao dorso insone dos montes

e verto, sob um pinheiro, as toxinas do passado.

 

Longos uivos à lua destinaria, feito lobo,

em pleno traço contínuo,

ou nele faria tosco sapateado,

não me chegasse já o ruído

de outro carro fugitivo,

o clarão dos seus faróis que recortam, no alcatrão,

o meu perfil acrescido.

 

Mais avisado será bater em retirada:

às quatro da madrugada

só pode ser o futuro, esse gatuno,

e assim a sacudo

mal sacudida

— assim te sacudo como quem

sacode a vida.

 

 

EN 213

 

Cada luz que vacila mas resiste

como um farol longínquo, no mar,

ou nos olhos de um moribundo,

ilumina o teu passeio nocturno.

 

Cada luz que o vento destapa

nas encostas dos montes,

ao agitar a trama dos bosques indistintos,

ilumina a porta da tua casa

a chave na tua mão.

 

Não dormes sozinha, quero que o saibas,

mas sempre acompanhada

 

na terra prometida que existe

cheia de aldeias e estradas

na minha cabeça deitada.

 

 

EN 212

 

De infracção mais grave não sei:

deixar que mãos ausentes me conduzam

a sentidos proibidos

ou que os falsos deuses do amor me desmandem

entre acidente e contingente.

 

Cumpra a brigada de trânsito a sua missão:

cace-me a carta

onde se obstina a tua fotografia,

reboque-me a carcaça sinistrada

 

ou de castigo me leve a carripana

e me deixe apeado na valeta, pois

de infracção mais grave não sei:

conduzir fora de mão

conduzir contra o coração.

 

 

EN 2

 

Escavo as trevas à força de faróis:

aponto à estrada florestal

esses dois minúsculos sóis

com que inauguro galerias provisórias,

claustros, arcadas, naves arbóreas,

e de halos breves conjuro cancelas,

muros velhos, veredas, levadas.

 

O seu clarão torna visível o invisível,

traz as coisas para a existência:

marcos quilométricos, apeadeiros,

serrações assombradas,

pilares de pesadelo que suspendem sobre os vales

absurdos viadutos aéreos.

 

Com faróis ilumino porque não tenho luz própria:

cego viajo, como a traça,

às voltas, às voltas,

tão negro como a noite que lá fora me cerca,

peixe dos abismos, toupeira,

cometa.

 

 

EN 206

 

Sou a floresta que se fecha sobre a estrada,

à minha volta as montanhas assobiam

— finco as raízes mas o vento me desterra

quando sopra do teu lado

e erguendo-me nos ares faz-me em pedaços

rodopiar com as folhas nas valetas.

 

Tretas, dirás, pois ninguém se entrega inteiro:

fica tudo a meio, e mesmo a verdade

é sempre metade de algo a mais ou a menos,

e só não mentimos sobre o que não compreendemos.

 

Finco as raízes mas o vento me desterra

porque vem do teu lado,

traz-me o corpo dividido, caído em muitas partes;

nunca fiz questão, confesso, de o ter todo:

tirava só o que precisava e do resto

andava dorido.

 

Agora, de todas as partes partido, o corpo

passa noites em claro à procura de caminhos

de regresso a mim

e dói-me por vezes num sítio qualquer

que deve ficar do teu lado,

um cabelo na boca ou o fantasma

de um braço amputado.

 

Quando chegar

não poderei reconhecê-lo.

 

 

EN 314

 

Ardidas há muito as velas de ignição

que davam centelha ao meu antigo

e primeiro coração.

 

Agora sou apenas um ponto morto,

sem tracção: rolo sem atrito

mas também sem aflição.

 

A estrada adormece em bosques propícios

a emboscadas, mas já não tenho crenças

que mereçam ser cobiçadas.

 

E os meus sonhos, até os meus sonhos

me parecem guiados lá do alto por sinais de GPS.

 

 

CM 122

 

A pele dos estofos é ainda a tua,

e o calor do banco dianteiro.

 

Radiador vazio,

o meu coração sobreaqueceu.

 

Desço o vidro e ponho a cabeça de fora

a ver se o vento ma limpa

ou ma leva.

 

O gelo reduz no asfalto.

 

O cigarro que lhe atiro:

há instantes apenas acendido

pela tua mão soberana,

provinciana, emigrante.

 

A pele dos estofos é ainda a tua,

e o calor do banco dianteiro

 

e a minha alma um cinzeiro

que não posso despejar.

 

Rui Lage, Estrada Nacional. Lisboa, INCM, coleção Plural, 2016



CARREIRO, José. “Estrada Nacional, Rui Lage”. Portugal, Folha de Poesia, 26-04-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/04/estrada-nacional-rui-lage.html