terça-feira, 6 de maio de 2025

Este poema de amor não é lamento, Jorge de Lima


 

Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há de

transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou em piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.

É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;

mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procurá-la nesse vale obscuro.

 

Jorge de Lima, Livro de Sonetos.
Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1949

 

Linhas de leitura:

- Que imagens ou sentimentos amorosos o poema rejeita logo no início?

- Como é descrita a figura amada ao longo do soneto?

- Qual é a relação entre o sujeito poético e essa figura: é de posse, de lamento, ou de busca?

- Que significado pode ter a ideia de “não vê-la nem possuí-la”?

- Que efeito provoca a metáfora final do “vale obscuro”?

- O que este poema sugere sobre a natureza do amor verdadeiro?

 



O LIVRO DE SONETOS, de Jorge de Lima, compõe-se de 78 sonetos, sendo 74 em versos decassílabos, 3 em versos quadrissilábicos e 1 em versos de sete sílabas. Segundo informa José Fernando Carneiro em sua APRESENTAÇÃO DE JORGE LIMA, editada pelos “Cadernos de Cultura”, de Simeão Leal, o livro foi escrito “em estado de hipnagoge, no espaço de dez dias apenas, Jorge de Lima levantando-se às vezes de madrugada e compondo de uma vez dois a três sonetos”. Sabe-se ainda, segundo a mesma “Apresentação”, que o livro, originariamente, devia conter cerca de cem sonetos (103 ao certo), deixando o poeta de incluir 25 entre eles, por motivos que não se esclarecem no referido comentário. Nossa impressão é a de que Jorge de Lima tenha querido fazer o livro compor-se de 77 sonetos (número sabidamente cabalístico) e o próprio Fernando Carneiro menciona este como sendo o número das composições enfeixadas na OBRA POÉTICA; entretanto, conforme tivemos a curiosidade de verificar, tanto no LIVRO DE SONETOS, editado em 1949 pela “Livros de Portugal”, quanto na OBRA POÉTICA, organizada em 1950 por Otto Maria Carpeaux, o número encontrado foi 78.

Ler mais: “De uma possível continuidade no Livro de Sonetos, de Jorge de Lima”, Ivo Barroso. In Gaveto do Ivo, 12-12-2014. Disponível em: https://gavetadoivo.wordpress.com/2012/12/14/de-uma-possivel-continuidade-do-livro-de-sonetos-de-jorge-de-lima/

 


domingo, 4 de maio de 2025

Menino e moço, António Nobre

 


Menino e moço

 

Tombou da haste a flor da minha infância alada,
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo de prata embutido a marfim!

Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!

Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...

 

António Nobre, "Paraíso perdido", in Revista Brasil – Portugal,
edição n.º 200, de 16 de maio de 1907, p. 114

 

VOCABULÁRIO

Alada: que tem asas.
Alvorada: amanhecer.
Clamar: chorar, gritar.
Debalde: em vão.
Evolar-se: fugir, voando.
Pudico: envergonhado.

 

 

Linhas de leitura do poema “Menino e moço”, de António Nobre

- O título remete para a fase da infância e juventude do sujeito poético.

- A metáfora “Tombou da haste a flor da minha infância alada” transmite a ideia de fim da infância, representada como uma flor frágil e bela que caiu, simbolizando a perda da inocência e leveza dessa fase.

- O sujeito lírico acreditava que a infância e a sua felicidade seriam eternas (“Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada, / E que era sempre dia, e nunca tinha fim”).

- A “alvorada” representa o início da vida, cheio de luz e encantamento, que o sujeito poético julgava não terminar.

- No passado, o sujeito poético vivia um tempo mágico, protegido e sonhador (ex.: “a pomba enamorada [...] estendia as asas sobre mim”).

- No presente, sente-se desamparado e triste, percebendo que essa infância não volta mais (ex.: “Debalde clamo e choro [...] elas não voltam mais”).

 

Resumo das linhas de leitura:

O poema constrói-se sobre a oposição entre um passado idealizado, marcado pela inocência e proteção da infância, e um presente de desilusão, solidão e saudade. A metáfora da flor caída, a crença na eternidade da infância e o lamento pela sua perda são elementos centrais para compreender a nostalgia e o tom melancólico do poema.


Sugestão:

Assiste à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, disponível em Português - 7.º e 8.º anos , aula 47 - 04 mai 2021 - Estudo Em Casa - RTP

“Menino e moço", de António Nobre. "Meninos tomaram coragem", de Ruy Cinatti| Aula 47| 27 min| 04 mai. 2021 - Módulo de Português para 7.º e 8.º anos. O projeto #ESTUDOEMCASA destina-se a alunos e professores do Ensino Básico, que desejem recorrer a esta ferramenta no seu processo de ensino-aprendizagem.


quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Vencedor Vencido, Isabel Gouveia

 

O VENCEDOR VENCIDO

Não é fácil amar o que venceu,
o que leva alguns passos de avançada,
que o amor só se oferece ao que perdeu,
muito embora com culpa declarada.
Todavia, o que vence multiplica
sobre si as angústias de perder:
interroga, analisa e só complica
aquilo que não pode perceber;
e quando, em esgotamento prematuro,
ele aceita uma calma provisória,
vêm os homens que o lançam contra o muro
e lhe atiram ao rosto essa vitória.

 

Isabel Gouveia, Tangentes e Consequentes. Coimbra: Coimbra Editora, 1977

 

Linhas de leitura:

- Quem é o “vencedor vencido” referido no poema?

Que paradoxo está presente nesta expressão?

- Como é retratada a figura do vencedor?

Que sentimentos ou dilemas ele enfrenta?

- Por que razão o amor “só se oferece ao que perdeu”?

Que crítica social ou humana está implícita?

- Que papel têm os “homens” na estrofe final?

Que atitude mostram em relação ao vencedor?

- Como o poema contraria a ideia tradicional de vitória?

A vitória é apresentada como castigo ou como recompensa?

- Que elementos estilísticos reforçam o tema do poema?

Há antíteses, repetições?

- O título ajuda a entender o conteúdo do poema?

Que significado simbólico tem a junção vencedor vencido”?

 

domingo, 16 de março de 2025

De amor, Francisco José Viegas

Francisco José Viegas
Foto: Foto: Gonçalo Silva
https://visao.pt/visao-arquivo/2022-06-26-francisco-jose-viegas-o-fazedor-de-historias/



DE AMOR

despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento

abandono. despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.

tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso,

os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.

Francisco José Viegas


terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Cinismos, Cesário Verde

 


CINISMOS

Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei de abrir-lhe o meu intimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,1
Como um velho filósofo lendário.

Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso

Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!

E eu hei de, então, soltar uma risada...

 

Cesário Verde, Lisboa, Diário da Tarde, 12-03-1874

In: Obra Completa de Cesário Verde - 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983 (Coleção Horizonte Poesia, n.º 20)

 

[1] Nota do editor: Na primitiva publicação: «E, desvendar a vida, o mundo, o gozo,».





terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Nunca me atrevo a falar de ti, Zbigniew Herber

 NUNCA DE TI


Nunca me atrevo a falar de ti
vasto céu do meu bairro
nem de vós telhados que detendes as cascatas de ar
belos telhados felpudos cabelos das nossas casas
nem de vós chaminés laboratórios de tristeza
abandonadas pela Lua pescoços esticados
nem de vós janelas abertas-fechadas
que rebentais quando morremos além-mar

Nem sequer consigo descrever a casa
que conhece todas as minhas fugas e regressos
apesar de pequena não sai debaixo das pálpebras fechadas
nada conseguirá devolver-me o cheiro do reposteiro verde
nem o ranger das escadas por onde levo a lamparina acesa
nem a folhagem sobre o portão

Em verdade gostaria de escrever sobre o puxador do portão da casa
sobre o seu toque áspero e rangido amigável
e mesmo sabendo muito sobre ele
repito tão-só uma ladainha de palavras comum cruel

Cabem tantos sentimentos entre dois batimentos cardíacos
tantos objetos podem ser acolhidos entre duas mãos

Não vos admireis que não saibamos descrever o mundo
e que só tratemos as coisas pelos nomes com ternura

 

Zbigniew Herber, Poesia Quase Toda. Cavalo de Ferro, 2024.

Tradução: Teresa Fernandes Swiatkiewicz

 

 

SOBRE O AUTOR

Zbigniew Herbert (Lviv, 1924 – Varsóvia, 1998) foi um poeta e ensaísta polaco, considerado pela crítica uma das figuras mais marcantes da literatura europeia da segunda metade do século XX.

Durante a guerra, participou na resistência armada antinazi. Já na vigência do regime estalinista no seu país, foi diversas vezes impedido de publicar por se recusar obedecer à estética oficial. O seu primeiro livro de poesia, Strun switl (Corda de Luz) data de 1956. Seguiram-se vários outros, incluindo o célebre Pan Cogito (Sr. Cogito), de 1974 (ambos a editar em Portugal).

Considerado um poeta do histórico, do filosófico, do político e, ao mesmo tempo, do individual, Herbert foi igualmente um exímio ensaísta, tendo o volume Um Bárbaro no Jardim, de 1962, ou os ensaios recolhidos em Martwa Natura z wedidlm (Natureza Morta com Brida), de 1993 (ambos editados na Cavalo de Ferro), ajudando a consolidar a sua enorme reputação internacional.

Efetivamente, um crítico do New York Times chegou a afirmar à data: «num mundo justo, Zbigniew Herbert teria há já muito sido galardoado com o Prémio Nobel».

https://www.wook.pt/autor/zbigniew-herbert/1127886/122

 

 

SINOPSE DE POESIA QUASE TODA

Poesia Quase Toda, com seleção a cargo do Prémio Nobel de Literatura J. M. Coetzee e da poeta e tradutora Alissa Valles, contém uma amostra significativa dos nove livros publicados em vida por Zbigniew Herbert, entre 1956 e 1998, e poemas inéditos do seu arquivo pessoal, nunca antes divulgados, constituindo um volume essencial para se conhecer a sua obra poética, uma das mais marcantes do século XX e praticamente inédita em Portugal.

https://www.wook.pt/livro/poesia-quase-toda-zbigniew-herbert/30921435

 

SOBRE A TRADUTORA

A tradutora Teresa Fernandes Swiatkiewicz é uma das mais importantes tradutoras de literatura polaca para língua portuguesa e já traduziu vários livros de Wysława Szymborska, Olga Tokarczuk, Stanisław Lem, entre outros. Venceu o Grande Prémio de Tradução Literária pela adaptação para português de Casa de dia, casa de noite, de Olga Tokarczuk. Em 2020, recebeu uma menção honrosa pela tradução do livro Viagens, também de Olga Tokarczuk. Em 2012 a tradutora foi galardoada pelo Presidente da Polónia com a Cruz de Ouro da Ordem de Mérito.

https://www.camoes.pl/2024/10/21/zbigniew-herbert-em-portugues-no-livro-poesia-quase-toda/

 

CRÍTICAS

Não deixa de surpreender a diversidade de modos como a poética de quatro jovens polacos, contemporâneos entre si - Czeslaw Milosz (Nobel de Literatura em 1980), Tadeusz Róžewicz, Wislawa Szymborska (Nobel de Literatura em 1996) e Zbigniew Herbert -, respondeu aos terríveis acontecimentos que assolaram a Europa, e em particular a Polónia, na primeira metade do século XX. Mas a poesia de Herbert foi outra coisa: desde os primeiros livros, em particular desde o terceiro que, num tom que frequentemente tocou a sátira (e o sarcasmo), envoltos porém num lirismo belo e surpreendentemente quotidiano, recorreu à mitologia greco-romana como exemplo para plasmar a sua visão de mundo, à qual não faltou a voz do icónico Senhor Cogito, o seu alter-ego. É, na minha opinião, uma das maiores, se não a maior voz poética europeia do século XX, à qual não fez falta o prémio maior para se tornar uma das maiores inspirações das gerações seguintes, polaca e não só, que nela se inspiraram e reviam.

João Luís Barreto Guimarães

https://www.wook.pt/livro/poesia-quase-toda-zbigniew-herbert/30921435

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Paz, Tomaz Kim

 

Óbidos, 2024-09-11 (Fotografia: José Carreiro)

PAZ

Aqui foi a casa:
Alva a toalha e o pão,
O berço além.

Breve a canção:
Bater de asa
O sorriso de mãe.

Veloz a hora:
Agora,
Só o coaxar noturno e certo
Das rãs,
Enche o campo deserto.

 

Tomaz Kim (Lobito, 1915 – Lisboa, 1967)

(Pseudónimo de Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo)

 

Linhas de leitura do poema:

  • Repara que a estrutura fragmentada do poema (versos curtos e ausência de pontuação) contribui para a transmissão do tema da passagem do tempo/efemeridade da vida.
  • Que significados podem ser atribuídos às imagens da "toalha alva", do "pão", do "berço" e do "sorriso de mãe"? Como essas imagens contrastam com o "coaxar noturno e certo / Das rãs" e o "campo deserto" na terceira estrofe?
  • O título do poema é "Paz". Como interpretas essa escolha, considerando que o poema evoca tanto a memória de um passado afetuoso quanto a desolação do presente?

 


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Fui criança, indo por um carreiro, a caminho do mar (Fiama Hasse Pais Brandão)


 

Fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
Toda a Natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
E, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
Se os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.

 

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007),
Cenas Vivas. Lisboa, Relógio d’Água, 2000


Leitura orientada do poema

  • Qual é o tema central do poema?
  • Como é retratada a natureza no poema?
  • Qual é o papel da criança no poema?
  • O que simboliza o carreiro no poema?
  • Qual é o significado do mar no poema?
  • Por que razão a natureza é descrita como "mestra de sentimentos"?
  • O que representa o silêncio das ondas no poema?
  • Qual é o significado da "mudez imerecida dos insectos"?
  • Por que razão a distância das aves "doía"?
  • O que simboliza a mão que puxa a criança?
  • Qual é o significado da "luz de cada dia"?
  • Qual é a importância das pupilas no poema?
  • Como se retrata no poema a transição da infância para a vida adulta?
  • O que sugere a repetição da palavra "mão"?
  • Qual é o papel do silêncio no poema?


sábado, 1 de fevereiro de 2025

Os poemas que (não) fiz, Gastão Cruz

 



OFÍCIO

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira

 

Gastão Cruz, Escarpas. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010


Leitura orientada do poema

1. Qual é o significado do título "Ofício" no contexto do poema?

2. Como explora o poema a relação entre corpo e alma?

3. Qual é o papel da poesia no poema?

4. Como a imagem do "duro sopro" contribui para o significado do poema?

5. Qual é o significado do paralelismo entre "Os poemas que não fiz" e "Os poemas que fiz"?


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Natália Correia à partida de São Miguel

 


MANHÃ CINZENTA
À Partida de São Miguel

Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais…
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...

O meu veleiro – era de espuma fria –
levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.

Cruzei o mar em direções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrada resta – mais nenhuma:
na Ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...

 

in Portugal, Madeira e Açores,
Abril de 1946

 

Natália Correia, “Inéditos, 1941/47” in O Sol das Noites e o Luar nos Dias I. Lisboa, Círculo de Leitores, março de 1993, p. 11




A Ilha: ponto de partida

 

O laço de pertença que une Natália à Ilha é naturalmente emocional e psicológico, porque a partida se efetiva na realidade, despertando um sentimento de perda material. Mas a poesia permite recuperar a Ilha como se fosse “um objeto imaculado pela distância, a nata de uma criança infinitamente chamada pelas ondas a esvaziar-se pela boca cantante com que assombramos as vírgulas adultas dos lugares que habitamos.” (Correia 1993a: 422) Assim se pontua o momento da partida numa “Manhã Cinzenta”, porque se impõe a mudança exigida pela fase adulta da vida […].

A despedida reveste-se da tristeza que é normal sentir-se quando se deixa a “Ilha que o passado envolve em bruma.” É da terra dos seus pais – “ninfa e pai chuva de lava” – que o sujeito poético parte para cruzar “o mar em direções diferentes”, como se doravante a ínsula se afastasse da vida da poetisa. Este afastamento, porém, é materializado no momento da partida, uma vez que a poesia permite a Natália apenas uma “longa viagem que não finda, / só uma estrada resta – mais nenhuma”: a lembrança do adeus acenado por um lenço branco.

Por isso é que, no III dos “7 Poemas da Morte e da Sobrevivência”, Natália esclarece que o retorno à Ilha não deve fazer-se de um qualquer modo, há que revestir o colorido da flor para imprimir outra tonalidade à palidez da despedida naquela “Manhã Cinzenta”. Se um lenço branco acenou à sua partida, que a florescência em cor a saúde aquando do regresso:

Não regressarei à terra
como uma folha que cai.
Condição de ser a hera
que no meu tronco se enlaça
sou a nascente da água
que me leva quando passa.

Não sou poeira que o vento
arrasta até encontrar
a florescência da flor.
Origem morte existência
sou a própria florescência
incontinente na flor.

(Correia 1993a: 117)

 

Mas o regresso não se faz tão cedo. O lugar de onde parte permanece-/-lhe na memória e é evocado com saudade quando, numa circunstância específica da sua vida, Natália pensa que pode vislumbrar, ao longe, a Ilha que lhe serviu de berço e da qual se despediu tristemente numa manhã sem sol. Na obra Descobri que Era Europeia. Impressões duma viagem à América3, a poetisa descreve a jornada que faz aos Estados Unidos da América. Quando, em 1950, sobrevoa o Atlântico rumo à terra da fartura, a escala técnica na ilha vizinha de Santa Maria leva Natália Correia a registar em prosa aquilo que em poesia é canto de saudade:

Estamos a vinte e sete milhas náuticas de Santa Maria. A partir daqui, a viagem começa a revestir um significado sentimental. Pela primeira vez, após quinze anos, vou aproximar-me da terra onde nasci. Ficarei durante uma hora a sessenta milhas de distância da minha ilha: São Miguel.

Vou parar em Santa Maria, onde nunca estive, mas que conheço como uma ténue linha de horizonte dos dias claros. Quantas vezes, debruçada na balaustrada do Aterro, vendo a ilha distante, aberta como uma flora na bruma do mar, eu pensava se aquela não seria a ilha misteriosa sepultada no oceano que a velha Maria da Estrela dizia aparecer de quando em quando aos olhos fadados para a ver: […] (Correia 1993a: 422).

A paragem na pequena ilha de Santa Maria assume uma dupla função: por um lado, não será mais do que um lugar de passagem na rota para outro mundo, mesmo ao lado do ponto de partida de há década e meia de anos e, por outro, torna-se numa espécie de janela a partir da qual Natália tenta perscrutar a sua Ilha, espaço agora preservado na memória, ao qual a poetisa acede através da recordação e do sonho.

 

_________

[3] Esta narrativa de Natália Correia é um documento importante para a compreensão do fenómeno da “açorianidade”. Aí se desenvolve, com bastante acuidade, a conclusão a que chegam, por exemplo, Rosa & Trigo 1987:199: “Entre a insularidade e o sonho realizado, ou não, da distância das “Califórnias da abundância”, constrói-se cada vez com mais fervor a açorianidade – essa maneira que o açoriano tem de afirmar a sua especificidade de ser português, sendo ao mesmo tempo um cidadão de errância em trânsito permanente, espiritual ou físico, para sua mátria: Açores.”

 

Rui Faria, “Figurações da Ilha na poesia de Natália Correia: da expressão da açorianidade à busca da universalidade” in Limite. ISSN: 1888-4067, nº 16, 2022, pp. 149-163