Quem foi?
Quem urdiu e enganou
o mundo
à minha volta?
Cravou o punhal
no meu coração?
Desencadeou em mim
a dor gelada
a envenenar-me a vida
com a sua mão?
Quem matou
me apagou a felicidade?
Ao despertar
o deserto
na maior solidão?
“IV – Solidão”, in Paixão.
Maria Teresa Horta. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2021
«É um
livro de poesia. O meu marido morreu repentinamente há um ano, foi uma
violência muito grande para mim. Ele é a minha paixão, ao final de 56 anos
juntos. No dia seguinte ao funeral, disse para mim “vou escrever um livro e o
título vai ser Paixão”. Este livro é para ele, como todos os outros que
escrevi. É um livro de poesia de amor dividido em seis partes. Nunca pensei ser
capaz de fazer isto. Inicialmente, a escrita deste livro ajudou-me muito. Todos
os dias escrevia, escrevia e escrevia… a poesia salva. A poesia salva-me.
Salvou-me várias vezes na minha vida. Mais uma vez. Nesta fase, o processo
tornou-se muito mais difícil, porque eu escrevo à mão e estou a ter dificuldade
em passar para a máquina porque é o tema que é… É perturbante.
Luís de Barros e Maria Teresa Horta
Foi um
livro que me deixou viver e sobreviver à morte e que agora, neste momento,
faz-me reviver diversos aspetos da minha vida e da perda. Não estou a reagir
mal ao livro, estou a reagir mal ao assunto. Tenho hesitado muito. Sinto-me
desassossegada com este livro. Escrever o livro fez-me aguentar, mas agora ter
de olhar para este espelho inquieta-me.»
Segredo
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço.
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1971
Teresa
acreditava que a escrita lhe pertencia por direito, mas queria fazer algo de
novo. E assim surgiu Minha Senhora de Mim. Procurava outras
possibilidades na escrita. E não descartava o risco de escrever algo que fosse
um vendaval, uma proposta em oposição à regra. Os poemas revelam a sexualidade feminina,
a mulher enquanto orientadora da acção que leva ao prazer. Mal terminou a
escrita, consciente de que os poemas escritos formavam um conjunto passível de
ser publicado num único volume (seria o seu nono livro de poemas), pediu a Luís
de Barros: «Quero que tu leias, por favor, estamos numa altura em que as coisas
estão complicadas, e quero que saibas o que sinto por ti. Ele disse: "Que
parvoíce, eu amo-te. Que disparate, não preciso de ler."» E não leu.
O
livro foi publicado, dedicado ao marido, e ele não leu um único poema. Não
mostrou interesse e Teresa optou por não o interpelar. Trata-se de um livro que
revela a paixão que Teresa então sentia, assumindo uma voz diferente, plena de
desejo, de ânsia e de sonho, procurando inspiração e rasgo na poética medieval,
nas canções de amor e de amigo. O livro começa com uma epígrafe de Marguerite
Duras: «J'ai le temps, que c'est long!»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, p. 206
Minha
Senhora de Mim (1971) compõe-se de cinquenta e nove poemas.
Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a
literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status
quo (neste caso, o pensamento patriarcal). Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é
subvertido (viria a acontecer o mesmo com Novas Cartas Portuguesas). Nas
cantigas de amigo medievais, escritas por homens, a voz era feminina e versava
quase sempre o sofrimento por amor, regra geral devido à ausência do “amigo”,
deixando as mulheres no estado de absoluta dependência em relação aos homens.
Contudo, na obra de Maria Teresa Horta, a mulher é o centro da narrativa dos
poemas, sendo ainda o centro do desejo sexual. Não raras vezes, o sujeito
poético usa o modo imperativo, comanda a relação heterossexual, não só rejeita
a submissão como submete.
Ana
Maria Domingues de Oliveira, em Quarenta anos de Minha Senhora de Mim,
fala precisamente da influência trovadoresca na obra:
Em
seus 59 poemas, Minha senhora de mim propõe uma releitura do
Trovadorismo português, sobretudo no que se refere às cantigas de amigo. (…) Ao
tomar as cantigas de amigo a partir de uma perspectiva crítica e paródica,
portanto, Maria Teresa Horta acabava por atingir de modo igualmente crítico a identidade
nacional, em razão sobreposição entre os conceitos de identidade literária e
identidade nacional (in Anais do XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário
Internacional Mulher e Literatura).
Assim,
ao alterar a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a preconizava,
instalava um novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o, desafiando a moral
instituída. A moral do fascismo, ao mesmo tempo, era afrontada pela
independência e pela liberdade das mulheres – estas seriam donas de si, não se
confinando ao quadro de dominação em que o Estado Novo as arrumava. Assim,
contra a dominação patriarcal, apresentada como prática política do regime,
Maria Teresa Horta, através da produção simbólica geralmente atribuída aos
homens, reclamou para si e para as outras mulheres um lugar social. Ao mesmo
tempo, Minha Senhora de Mim, pelas pontes que faz, evidencia o
patriarcado enquanto base da cultura ocidental. Afinal, traz para o seu tempo a
Idade Média, com a tradição literária que esta acarreta, que se mostra nas
cantigas.
Nos
poemas de Minha Senhora de Mim, a novidade não está apenas em dar-se voz
à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado nos poemas,
pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que deve fazer para
agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa e chega a
descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca pelo prazer,
esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para a mulher,
de uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recorde-se que, à época,
Portugal estava tolhido por uma moral católica: ainda que o prazer masculino
fosse permitido ou socialmente aceite, o da mulher, por motivos de moral
imposta ou religiosos, não o era. A vida pública regia-se pela ideia de que as
mulheres deviam reger-se por um espírito de sacrifício, e que este devia verificar-se
também no sexo. Por isso, a mulher devia estar subjugada. Foi contra isto que
Maria Teresa Horta criou uma voz de comando feminina, uma voz que ordena e
orienta. Com ela, precisa, incisiva, a procura pelo prazer sexual é clara,
indisfarçada, indisfarçável.
O
poema “O meu desejo” trará essa buscar de forma clara. Note-se:
Afaga devagar as
minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo
(HORTA, 1971, p. 82)
Aqui, revela-se
aquilo a que já nos referimos previamente: a utilização do modo imperativo em
prol de uma relação de forças em prol da mulher. Para além disso, a acção é
explícita e, por sê-lo, rejeita o papel presumivelmente assexuado das mulheres.
Já no “Poema ao desejo”, que transcreveremos de seguida, em que existe o
mesmo modo imperativo, vê-se que está no cerne do poema uma relação erótica
mais violenta.
Empurra a tua
espada
no meu ventre
enterra-a devagar até ao cimo
que eu sinta de ti a queimadura
e a tua mordedura nos meus rins
deixa depois que a tua boca
desça
e me contorne as pernas de doçura
Ó meu amor a tua língua
prende
aquilo que desprende de loucura
(HORTA, 1971, p. 84)
A
“espada” como símbolo do homem será ainda uma metáfora recorrente na poesia de
Horta. Vemo-la, aliás, no poema que se intitula precisamente “Minha espada”:
Solidão de terra
ferida
feita
planta ou jornada
ignorada e perdida
ou nos meus seios
entornada
Em retorno da partida
amigo de sua amada
Vazio que habito esquecida
Com meu ventre e sua espada
(HORTA, 1971, p. 24)
Aqui,
o título do poema, através do pronome possessivo usado, já revela uma
transgressão. O sujeito feminino, ao assumir a posse, é quem domina e manuseia,
recusa a subjugação. Contudo, isto contrastará com a imagem da terra, que
representa uma imagem de submissão, já que espera ser fertilizada, e cujos
abandono e solidão causam sofrimento. Para além disso, a última estrofe gira em
torno do símbolo fálico e a mulher é vista como um objecto, como o “repouso da
espada”. Esta, entornada, por sua vez revelará o sacrifício e o sofrimento do
sujeito poético.
Finalmente,
cabe aqui uma referência ao poema “As nossas madrugadas”, que encontrará
paralelo em textos prosaicos presentes em Novas Cartas Portuguesas:
Desperta-me de
noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito
pois suspeitas
que com ele me visto e me
defendo
É a raiva
então ciúme
a tua boca
é dor e não
queixume
a tua espada
é rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas
E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse
E queres-me de amor
e dás-me o tempo
a trégua
a entrega
e o disfarce
E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes
Despertas-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo
e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales
(HORTA,
1971, p. 86/87/88)
Este
poema refere-se a um domínio físico, por parte do homem, que termina em
violação. Na primeira estrofe, a mulher é acordada para a satisfação do homem.
É o desejo dele que a desperta, indiferente ao facto de ela dormir, “vergando”
o sono dela, suspeitando que é usado para defender-se dele (a contraposição de
vontades e o domínio dele sobre a dela já é a violação do desejo dela). De
seguida, mostra-se a condição de objecto do sujeito poético, mulher: o homem
tem “pressa de ter[es] o que só sente[s]”, quer possuir dela “o que não
sabe[s]”. Finalmente, descreve-se a relação sexual involuntária, mostrando-se a
condição de subjugação física, emocional e psicológica a que o sujeito poético está
submetido: o corpo do homem desperta-a até que ela, saindo “do sono/onde
resvala [resvalo]”, repila a noite. O homem, por sua vez, terá o que almeja
desde o início, ainda que contra os desejos da mulher: “vais descobrindo
vales”.
Maria
Teresa Horta traz, assim, para a poesia, um novo sujeito poético – só rompendo
com a tradição literária podia romper-se com a condição da subjugação das
mulheres, até porque a primeira compactuava com o silêncio, anulava sujeitos.
Até que aquelas que pareciam trazer sujeitos novos – as cantigas de amigo –
eram, na verdade, escritas por homens, e eram portanto estes quem moldava, na
tradição literária, as relações afectivas e sexuais. Os poemas que compõem este
livro são, portanto, veículos de actos políticos indispensáveis: afinal, eles
mesmos são actos políticos, é a apropriação da linguagem que funciona como
desafio ao instituído.
O
rastilho deixado por Minha Senhora de Mim não se apagou depressa e
causou inúmeros dissabores. Teresa vivia no bairro social do Arco do Cego, na
Rua Caetano Alberto. Certa vez, saia de casa para ir ter com o marido, iam
beber um copo algures – expressão usual, embora Teresa nunca bebesse álcool – depois
do fecho do jornal. Era sexta-feira, o filho estava em segurança em casa dos
avós paternos. Teresa atravessou a rua na direcção da estátua de José de
Almeida, a fim de apanhar um táxi. Quando chegou à curva da Rua Caetano Alberto
viu um carro, estacionado à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe
deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que
vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente
estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para
trás eu não podia ir, não podia correr para casa, portanto tinha de andar para
a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que
existisse por ali mais gente.» Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu
as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro
ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção.
Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles
ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a
não escrever como escreves.» Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os
murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria
levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça
aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo.
Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões.
Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O
trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir
dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia
de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu, ele que
fosse a casa telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal
e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se
com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo
politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não
batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até
hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi
uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não
têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»
Teresa
foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança
muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na
cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações.
Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem
de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se
autocensura.»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 219-221
josé – meu filho
nascido do feno e das vertigens
álamo da esperança platinada
cheira à resina da manhã;
tem gestos de oliveira brava
fala por búzios e por ventos
come os próprios versos com hortelã.
nasceu frio
como rebento de fim de inverno
e mora na concha da alvorada
sabe de gebas e de guerra
atira sortes ao ar
tem dedos de lã fiada.
surdo mudo envaidecido
josé é louco profundo de raiz
anda sem raiva a lançar sementes
nas terras do seu país.
veste basalto.
usa sapatos.
aperta ideias com o cinto.
(até costuma passar
por aqui.
os que o conhecem
sabem que não
minto).
dizem que ama
que bebe
que fuma
que é vendedor de talismãs,
mas também dizem que é tão soberbo
como soberbas são as manhãs.
José
Henrique ÁLAMO OLIVEIRA (1945-2025), Versos de todas as luas - Poesia
reunida 1967-2020. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2021
Álamo Oliveira, por Rui Melo, 2020
ÁLAMO, O SEMEADOR
Aceitei com muita honra o convite que o Álamo Oliveira
me fez para dizer aqui umas palavras em jeito de comemoração do seu aniversário
de escritas. Não tanto pelo facto de nos conhecermos há muitos anos – o Álamo é
do Raminho, eu da Serreta –, e de ao longo de todo este tempo termos vindo a
cultivar uma amizade sólida, ainda que não muito frequente, mas sobretudo
porque se trata de uma personalidade que traz dentro de si a nossa ilha
Terceira. O que é muito, e muito complicado.
Na verdade, é quase impossível falar-se dos Açores, e
da Terceira em particular, sem que por alguma razão se não refira o Sr. Álamo
Oliveira, ou, mais simplesmente, «o Álamo». Porque é assim que no trato comum
se designam aquelas pessoas – como acontece com Camões, Camilo, Eça, Pessoa,
Nemésio ou Natália – que não necessitam de distintivos nem de nomes dobrados
para serem identificadas por todos. Aqui, temos «o Álamo» – simplesmente
«Álamo».
E quem é então este homem?
A condição que o identifica mais directamente é a de
um escritor com dezenas de livros publicados durante 60 anos, distribuídos por
poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica literária. Mas, para além de
escritor, Álamo também tem obra feita nas artes plásticas, que incluem
exposições individuais e ilustrações e capas de livros de outros autores, na
encenação teatral (foi o fundador do Grupo de Teatro Alpendre, o primeiro e
durante muito tempo único grupo de teatro dos Açores com produção permanente, e
seu director por muitos anos), na criação de suplementos literários e
artísticos que se constituíram em espaços de discussão e de inovação, e em
produções que se inscrevem na chamada «cultura popular», tendo escrito, que eu
saiba, inúmeros assuntos de danças e bailinhos de carnaval, bem como letras de
marchas das festas sanjoaninas.
É possível que tenha trabalhado ainda em muitas outras
áreas, que até se venha a aventurar pelos libretos de ópera – sei lá! –, mas
não há cabeça humana que se possa lembrar, assim de repente, da variedade e
quantidade de obras que este nosso Álamo nos tem vindo a legar – à maneira de
um agricultor que, pacientemente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai
lançando as suas sementes no grande solo que é a alma da nossa gente – que delas
também, avidamente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai colhendo as
novidades que a alimentam. Sem este nosso Álamo, seríamos um povo subalimentado
– e aqui faço recurso aos famosíssimos versos do poema «A Defesa do Poeta» de
Natália:
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
De entre toda esta vastíssima produção, não sei bem
qual o género ou as obras que mais prefiro – porque ele há-as para todos os
gostos. Começando pela poesia, é de salientar a beleza formal dos seus poemas,
a clareza dos seus versos e da linguagem que utiliza, as emoções e a
sensualidade que muitos deles transportam, o ritmo encantatório dos versos
frequentemente inspirado na poesia popular e, sempre constante, a manifestação
do «eu» do poeta que observa, interpreta e sente para depois exprimir –
assumindo-se como uma voz que nos interpreta e interpreta a identidade da ilha
que todos nós trazemos dentro de nós, como ele tão bem exprimiu num dos seus
primeiros livros:
ainda hoje se ouve a angústia do vento
percorrer as coordenadas do povo no mapa
(«Fábula da Ilha, Fábulas, 1974)
Ou seja, a acção do poeta que percorre a ilha e as
suas gentes, as identifica e classifica, para depois delas nos falar nos seus
poemas. Mas!, escrever é sempre um trabalho difícil, porque o poeta tem
consciência de que tem que encontrar as palavras e as imagens certas para
descrever, sem as deturpar, as realidades que observa e interpreta, sob pena de
cair na vulgaridade ou no lugar-comum. E isso cria angústias.
Mas, como poeta, tanto quando se inspira nos ritmos e
no vocabulário da poesia popular tradicional, como quando se situa num patamar
de expressão formal mais erudita, Álamo encontra, quase sempre, as palavras
certas e adequadas para nos dar as coordenadas da nossa gente e da sua identidade
cultural. E, naturalmente, dele próprio e do seu pensamento – porque, muito
frequentemente, toma posição sobre as realidades sociais, em praticamente todos
os seus livros de poesia ou de ficção, sobre as condições de vida das pessoas,
sobre a realidade política do país, e sobre o fado de ser ilhéu e as
dificuldades que isso representa na vida das pessoas. E não me refiro ao ilhéu
estereotipado – que é uma construção de intelectuais, baseada em lugares-comuns
que nada dizem ao povo de onde foram plagiados –, mas a toda uma comunidade
que, durante séculos, teve que se adaptar a um meio geográfico que tem tanto de
belo como de ingrato para a sobrevivência das pessoas e para a criação de
oportunidades para que elas possam ter uma vida decente.
É na ficção – contos e romances –, mas também nas
crónicas, que o nosso Álamo mais se tem afirmado como uma voz próxima das
pessoas de quem fala e para quem escreve.
Senhor de uma capacidade de observação e de
transfiguração pela escrita, com a frontalidade e, por vezes, a ingenuidade de
um escritor autodidacta que não foi contaminado pelas teorias académicas – que
travam e moldam a criatividade do escritor em nome de modelos artificiais que
variam consoante o tempo, os gostos e os contextos –, o nosso Álamo tem vindo a
produzir alguns livros relevantes no contexto da literatura nacional, e
incontornáveis no contexto da literatura de autores açorianos. Cabe aqui dizer
quanto me é grato constatar que uma pequena editora açoriana, a «Companhia das
Ilhas» (das Lajes do Pico), está a republicar a obra completa de Álamo
Oliveira.
Ao mesmo tempo que Álamo foi, digamos, abandonando a
poesia para se dedicar mais à ficção, vamos acompanhando a saída dos seus
livros com uma impressionante regularidade – nos quais encontramos personagens
muito bem construídas, porque autênticas, na medida em que são claramente, e
sem que o autor recorra a subterfúgios ou dissimulações, inspiradas na sua
própria história pessoal e nas suas experiências de vida.
Livros como «Burra Preta com uma Lágrima» (1982), «Até
Hoje. Memórias de Cão» (1986), «Contos com Desconto» (1991), «Pátio
d’Alfândega, Meia Noite» (1992), «Com Perfume e com Veneno» (1997), «Já não
Gosto de Chocolates» (1999), «Murmúrios com vinho de Missa» (2013), «Marta de
Jesus. A Verdadeira» (2014), «Contos d’América» (2020) ou «O Sábio da Miragaia»
(2021) ficarão para a história como documentos autênticos de uma realidade
cultural e social por onde passa a pobreza, o isolamento, o pequeno drama pessoal
e familiar, a falta de oportunidades, a emigração e os consequentes
desenraizamentos e depois aculturações, o conformismo atávico mas também a
coragem para cortar com os condicionamentos geográficos (a emigração) e sociais
(em temas como a sexualidade, por exemplo), a sensualidade natural, o
vocabulário e os modos de produzir populares e tradicionais, a religiosidade e
a sua subversão instintiva, o diz-que-disse tão próprio de meios pequenos e
isolados em que toda a gente se conhece – enfim, uma realidade que nem a
sociologia, nem a antropologia nem a história, isoladamente, algum dia
conseguiriam descrever. Porque a realidade de uma ilha é todo um universo, uma
espécie de microcosmos, onde ocorre de tudo o que é próprio do humano, mas em
que nada pode ser entendido se não em articulação com tudo o resto – e essa
realidade e essa articulação são-nos transmitidas, naturalmente na sua
perspectiva e com a sua ideologia pessoais, mas sempre de um modo global e
holístico, por Álamo Oliveira nos seus livros.
Poderemos, aqui e ali, achar que provavelmente a
solução técnica ou artística por ele encontrada não terá sido a melhor, ou que
não é como cada um de nós acha que deveria ter sido, mas acabamos por concordar
que é uma solução possível, que a obra está feita e disponível, e que nos
últimos tempos ninguém conseguiu fazer melhor.
De facto, no que diz respeito à vivência açoriana, e
da Terceira em particular, será necessário recuar até Nemésio, e de um modo
particular aos seus romances «Varanda de Pilatos» (1927) e «Mau Tempo no Canal»
(1944), à novela «Negócio de Pomba» (1937), ou ao roteiro afectivo que é
«Corsário das Ilhas» (1956), para encontrarmos um registo da nossa realidade
tão exaustivo como aquele que Álamo Oliveira nos dá nos seus livros. E isso é
obra! São autores e obras diferentes?, pois são; situam-se em patamares
diferentes?, talvez: mas a isso apenas o tempo dará resposta. E o tempo em que
vivemos é ainda o tempo em que Álamo Oliveira está a construir a sua obra.
Aquele que será talvez um dos seus livros mais
importantes e mais conseguidos literariamente é «Até Hoje. Memórias de Cão»
(1986): um romance poético e nostálgico, que aborda dois temas principais e
coincidentes no tempo e no espaço: a guerra colonial (neste caso, na Guiné),
que é o cenário e o contexto, e a relação amorosa entre dois soldados, que é o
assunto e a acção. O tema da guerra colonial tem sido, paradoxalmente, muito
pouco tratado na literatura portuguesa, salvo excepções como Carlos Vaz Ferraz
(«Nó Cego»), António Lobo Antubes («Os Cus de Judas») – e os nossos João de
Melo («A Memória de Ver Matar e Morrer»), Martins Garcia («Lugar de Massacre»)
e Cristóvão de Aguiar («Braço Tatuado»); porém, neste livro, Álamo não retrata
a guerra por meio de descrições e relatos de cenas militares, mas antes os
comportamentos e emoções, mais o ambiente em que vivem, das personagens que são
os soldados convocados – e que, mais do que estarem na guerra, o que estão é
fora das suas referências culturais, ou seja, das suas zonas de conforto. Desenraizados
em busca de raízes. Por outro lado, a relação amorosa entre os dois soldados
que são os protagonistas da história é tratada com muita naturalidade e
elegância, sem clichés nem lugares-comuns, e sobretudo sem folclorismos, de
modo que aquilo que ressalta da história não é a homossexualidade das
personagens (que é um acidente: eles eram eles e estavam ali, o que nos faz
recordar a justificação que Michel de Montaigne, contemporâneo de Camões, deu
para explicar a sua relação com Étienne de La Boétie: «porque era ele, porque
era eu»…), mas a relação amorosa em si, vivida num contexto de solidão e de
desadequação. Este será, muito provavelmente, um romance importante na
literatura portuguesa do último quartel do século XX.
Mais recentemente, Álamo deu-nos um novo romance, em
que uma vez mais se revela um escritor inovador na técnica de narração e que
tem por título «O Sábio da Miragaia» (2021). Livro de memórias também, nele
encontramos uma personagem enigmática, que é um homem já idoso que vai
relatando a um jovem, em ambiente de conversa informal (com umas cervejas pelo
meio), um conjunto de acontecimentos vividos por personagens castiças da nossa
ilha e da nossa cidade, nas quais qualquer um de nós identifica tipos humanos,
mas também coisas e lugares, que todos nós conhecemos. Neste sentido, este
romance dá-nos um verdadeiro friso de personagens tipificadas que representam a
vida de Angra do Heroísmo (que nunca é nomeada directamente) durante várias
décadas, mesmo antes do 25 de Abril de 1974 – até aos actuais tempos de
pandemia em que o próprio livro foi escrito. A íngreme rua da Miragaia,
metonímia da ilha e da cidade, em cujas cercanias funcionavam instituições como
a PIDE ou o Seminário, mas também o pequeno comércio, a prostituição, a
crendice, o mexerico ou a má-língua, é uma espécie de palco por onde desfilam
personagens portadoras de histórias pessoais que giram entre a comédia e o
drama, entre a variedade e o crime, entre os bons comportamentos e os maus
costumes, enfim, entre as representações que fazemos de nós próprios e os
juízos que os outros fazem de nós. Como acontece nos nossos bailinhos de
carnaval.
Sessenta anos de escrita podem ser muito tempo na vida
de uma pessoa qualquer, e de um escritor em particular. No caso de Álamo
Oliveira, esse tempo traduz-se numa impressionante quantidade de livros
publicados e uma apreciável actividade de intervenção social e cultural, uma e
outra felizmente reconhecidas pelas pessoas e instituições que têm a obrigação
de valorizar os seus melhores – como acontece com a presente homenagem. E,
nesse aspecto, Álamo Oliveira pode considerar-se um felizardo: poucos serão os
escritores ou artistas que foram assim tão reconhecidos e valorizados em vida.
Justamente.
Esse reconhecimento, mas sobretudo a obra que o justifica,
são, no fim de contas, o resultado e a matéria de uma enorme pujança criativa –
o que nos leva à certeza de que ainda teremos Álamo por muitos mais anos:
tenhamos nós vida, saúde e arcaboiço para, entretanto, o irmos acompanhando…
Haja saúde, ó Álamo!
Luiz Fagundes Duarte. Texto da conferência, a pedido do autor, para a cerimónia
de comemoração dos seus 60 anos de escrita. Centro Cultural e de Congressos de
Angra do Heroísmo, 20-06-2021. Disponibilizado por Luiz Fagundes Duarte na sua página do Facebook, em 06-07-2025
Sentia-se
livre. Embora casada, tinha a sua vida. Estava implícito que seria assim. Raul
Boaventura trabalhava na SONAPE, Teresa dispunha dos seus dias. A faculdade era
uma novidade e um espaço feminino. Os rapazes, quando iam para aqueles lados,
sentiam-se intimidados com tantas mulheres. Teresa escrevia de lápis na mão e
caderno no colo. Escrevia em qualquer lugar, mal o poema lhe acontecia. Não era
uma boa dona de casa, odiava o tempo que se perdia em tarefas sem nexo. Dirá que
não tem vocação para a lida da casa. O marido pouco se importava com isso.
Estava apaixonado, Teresa podia tudo, não havia qualquer problema. Gostava dos
poemas que ela escrevia e o orgulho neles era tanto que os levou ao seu chefe,
também ele adepto das coisas escritas e da literatura. O superior hierárquico
de Raul Boaventura não tinha a menor dúvida – aqueles poemas precisavam de ser
publicados: «O que está a sua mulher a fazer? Devia publicar!» E perguntou: «A
sua mulher não tem um poeta de quem goste»
Raul
falou em António Ramos Rosa (1924-2013) e o chefe foi categórico: urgia enviar
os poemas ao autor. Para ele dizer de sua justiça, para que os poemas fossem
lidos por outras pessoas, pelo maior número de pessoas possível. O marido ficou
orgulhoso e estupefacto. Acreditava no talento da mulher, mas não esperava
tanta euforia. Aconselhou Teresa a entrar em contacto com António Ramos Rosa. À
época, o poeta residia em Faro, no Algarve, na cidade onde nasceu.
Com
alguma falta de jeito, Teresa dispõe-se a escrever a António Ramos Rosa,
começando por pedir desculpa pelo abuso. Mandou alguns poemas e deixou o número
de telefone, para contacto posterior, e pensou que o mais certo era nunca obter
resposta. Por um lado, desejava saber se o que escrevia possuía algum valor.
Por outro, sabia, no seu íntimo, que as suas palavras se alinhavam de forma
distinta, reflexo da jovem mulher que era e de quem tinha sido na sua infância
dorida. Dois dias depois de enviar a carta, o telefone tocou.
Não
será de somenos afirmar que o mundo de Teresa mudou naqueles segundos em que se
dirigia ao telefone preto, sossegado em cima da mesinha. Não esperava aquela
chamada. Talvez tenha pensado que seria uma das irmãs, Chilinha ou Rosarinho.
Corria o mês de Agosto. Estava calor e era já o meio da tarde. Estava sozinha
em casa. Teresa atendeu a chamada e ouviu a pergunta e a afirmação: «Maria
Teresa Horta? Aqui António Ramos Rosa.»
Podemos
imaginar as suas pernas a tremer, o estômago a encolher-se, as mãos a suar.
Teresa viveu o momento com uma alegria imensa. O poeta dizia-lhe que tinha
obrigatoriamente de publicar e que, para mais, existia uma ressonância nos seus
poemas que a aproximam de outros poetas portugueses. Havia ali um espírito, uma
família, garantia-lhe. «Temos de publicar este seu livro, Teresa!» Ela
agradeceu, corou, sorriu de prazer, sentiu-se afogueada de contentamento. Era o
seu corpo a reagir ao imenso prazer que sentia por ouvir aquelas palavras.
Ao
lado de António Ramos Rosa estava outro poeta, Gastão Cruz (1941-2022), que
pedia para falar com ela e lhe disse, ao telefone: «Gosto muito dos poemas,
Teresa.» Adoptaram-na à distância e, para garantir esse elo, deram-lhe o número
de telefone de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), então namorada de Gastão
Cruz. Exortaram Teresa a procurá-la e, acrescentaram, era urgente
encontrarem-se também com Luiza Neto Jorge (1939-1989). Todos pertenciam a uma família.
Como poetas de uma geração, reconheciam-se e ressoavam uns nos outros. Gastão
Cruz afirmou, ainda ao telefone: «Consigo, Teresa, isto parece um grupo. O que
acha se publicarmos juntos?» Inesperadamente, Teresa era acolhida. Elogiada.
Diziam-lhe que pertencia. Fizeram-na poetisa nesse mesmo instante – não para
ela, mas para o mundo.
Foi
invadida por uma profunda alegria. De surpresa e de confirmação. Sem demoras,
telefonou a Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz já a tinha avisado: «Temos
nova poetisa.» Combinaram encontrar-se na Universidade de Lisboa, que ambas
frequentavam intermitentemente. A empatia foi imediata, proporcionou-se um
certo reconhecimento na outra, de quem eram e do que escreviam. Partilharam
alguns poemas, reconheceram-se. Nunca mais deixariam de se dar, mesmo que a
vida as afastasse, a distância física era quase nada comparada com o que as
unia. Na faculdade, Fiama e Teresa tornaram-se inseparáveis. Sofriam do mesmo
mal. Sempre que calhava terem um teste, um exame, fosse a que disciplina fosse,
ambas tinham mostras súbitas de febre. Chegavam aos 38, 39 graus. Era o corpo a
negar-se a cumprir; a cabeça a pedir outros rumos. Não eram felizes ali,
queriam terminar os estudos e, ao mesmo tempo, dispensavam aquele martírio de
estudar coisas pouco apelativas, porque ambas sabiam qual era o destino, não
havia margem para dúvidas: escrever, descobrir-se na escrita e ensaiar o avesso
da vida, através da palavra. Eram – são – poetisas. O arrastar de cadeiras e
trabalhos, exames e outras agruras académicas trouxe o cansaço e ambas acabaram
por abandonar a faculdade no terceiro de cinco anos de curso.
Teresa
instalou-se no maravilhamento. Foram dias de um abismo consolador. Ramos Rosa
tornou a falar-lhe, no sentido de organizar um livro e de o enviar para Faro.
Ele trataria de tudo para o imprimir, seria mais barato do que imprimir em Lisboa.
Ela assim fez. Escolheu alguns poemas, hesitou, escreveu novos poemas, fez
opções e começou um processo de construção do primeiro livro que usará em todos
os outros: escrita à mão, papéis acumulados, a este poema segue-se este, depois
aquele. Pára, recomeça, muda de ideias. Sem hesitação, nomeou o seu primeiro
livro: Espelho Inicial. Por esses dias, o pintor Manuel Baptista (1936)
ainda não partira para a capital francesa, com uma bolsa da Fundação Calouste
Gulbenkian; encontrava-se a passar férias em Faro, a terra que também o viu
crescer. António Ramos Rosa desafiou-o: «Não farias tu a capa do primeiro livro
da Teresa Horta?» O futuro artista aceitou e concebeu a capa que, até aos dias
de hoje, Teresa tem como a capa perfeita.
António
Ramos Rosa tratou de tudo, tal como disse que faria. Teresa quase deixou de
respirar quando, por fim, lhe chegou a casa uma caixa com ripas de madeira, bem
pregadas. Estava ali o seu primeiro livro. E ela não conseguia vê-lo, apenas
vislumbrar o que lá vinha, pelas gretas da madeira. Não tinha força física para
abrir a caixa e, apesar de múltiplos esforços, teve de ter ajuda para abrir a
caixa e pegar no seu primeiro livro. «Deu-se tudo ao mesmo tempo, foi uma coisa
das deusas, houve interferência! Foi uma coisa natural, sem entraves.»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 129-133.
A Horta, cidade com o seu nome, na ilha que
julgava serdela, entra-lhe no sangue para todo o sempre.
Teresa criou ohábito, que ainda mantém, de verificar o boletim
meteorológicoda ilha. Prometeu voltar, não sabe se o fará.
Há um episódio que permanece intacto. Existe uma
estátuado infante Dom Henrique perto da estrada e, depois,
um jardim com muitas árvores. Do parapeito de um miradouro
chegava-lhe o mar hipnotizante. Camila pegava em Teresinha ao colopara verem aquele
oceano, agressivo, e a ilha do Pico, que Teresinha acreditava – ainda hoje o mantém
– ser o lugar ondeviviam as feiticeiras e bruxas. Estava convencida
disso e diziaà avó: «Não vês as bruxas?» E ela respondia: «Acho que vejouma sombra.»
O que a fascinava, e que ela observava sem sossego, eram os anéis de nuvens sucessivos,
a adornar a ilha, a escondê-la e a descobri-la, numa dança permanente que amenina considerava
ser só para si. «Às vezes, penso que talvezseja a razão para esta
minha paixão por anéis, nunca entendiexactamente. A minha
mãe usava anéis, o Pico tinha anéis, euuso-os em quase todos
os dedos da mão.»
Camila, nesse dia, levou as meninas para um passeio,
paraas tirar da frente de Carlota. Teresinha carregava
consigo umlivro da colecção Manecas. Belinha estava irrequieta,
brincavaa subir e descer o banco de jardim. Chilinha mantinha-se
bemtapada no carrinho de bebé. Teresinha, perturbada
com o vaivém da irmã, resolveu afastar-se e a avó chamou-a: «Teresinha,volta para aqui.»
Regressou ao banco e, assim que se sentou, obanco descaiu para
o precipício, em direcção ao oceano. Camilaficou em pânico, Belinha
não parava de se mexer e Teresinhapercebeu que aquilo
que as prendia eram cabos de aço. Deu-seum deslizar contínuo
que era acompanhado por gritos – eramas pessoas que estavam
por ali, que assomaram para ver, «Pousei os olhos no Atlântico e fiquei apaixonada.
Estava tudo ali,aquela magia; ia em direcção àquilo sem medo.»
Camila não gritava, não chorava. Em aflição silenciosa,
temtava passar a neta para os braços de alguém. A memória
fixaráuma imensa lentidão associada à queda e um barulho
desconexo. Camila consegue empurrar o carro de Chilinha
paralonge, mantém-se no banco com as outras duas netas.
Belinha insistia em pular, Camila mantinha-a agarrada pelo
pulso.Juntaram-se algumas pessoas. «Conseguiram agarrar-medebaixo dos
braços. Entendi esse agarrar como se fosse um sítiode obscuridade.
Tudo o resto estava sem mácula, a ilha, o mare eu, maravilhada.
Não me teria importado de ter ficado por láperdida.» Teresinha
foi puxada até estar com os pés bem assentes na terra, depois, no último minuto,
Camila foi salva. Jáestava pendurada no vazio. Teresinha fitou-a, aterrorizada. «O que recordo
são as pessoas a olharem para um buraco edepois surgir a minha
avó.» Nesse instante, em que as três jáestavam a salvo, em
que o susto já passara, as pessoas vociferavam e começavam a caminhar na direcção
de um homem quenão se tinha aproximado. Gritavam com ele, chamavam-lhenomes, acusavam-no
e, por fim, batiam-lhe. «Era um desgraçado de um judeu alemão que tinha procurado
refúgio na ilhaE as pessoas pensaram que era ele o culpado do
que tinha acontecido. Era preciso culpar alguém e o judeu estava ali à mão.Diziam: «Ele
é culpado de tudo!”»
Jorge Horta, que tinha sido prevenido do que se
tinha passado, chegou esbaforido do hospital, perdido de medo – estariam a mãe bem?
E as filhas? Deparou-se com as acusações e osmaus-tratos e tentou
impedir as pessoas de continuarem a culpar quem não poderia ter culpa. Teresinha
repetiu: «Ele nãoteve culpa, o senhor não teve culpa.» O pai, a
tentar salvar osenhor, gritava que tudo aquilo era um disparate.
Era médico,as pessoas conheciam-no e respeitavam-no, rapidamente
aqueletumulto terminou. De volta a casa, o evento foi
relatado e repetido várias vezes. Carlota pediu pormenores, Jorge ouviu,atento. «Tive
consciência, pela primeira vez, de que havia umaguerra e que as pessoas
podiam ser acusadas; de que alguémtinha “a culpa da guerra”,
a culpa que derivava de ter fugido daguerra.»
Décadas mais tarde, no livro Meninas, a
Teresa-escritorasítioescreverá sobre este
episódio. O conto chama-se «Ondas» e étambém uma homenagem
a Virginia Woolf, que se suicidou noano em que Teresinha
poderia ter sido arrastada até ao mar, semdestino seguro. No
conto, lê-se:
«Lembro-me da queda e também de
não ter sentido nenhumdesassossego, primeiro aturdida e logo sufocada
de maravilhamento diante do esplendor, enquanto ela durou no sentido dasondas, comigo
perfeitamente imóvel no centro da voragem.O rugido do mar a tornar-me
surda para os gritos da minhaavó de pé a meu lado
gesticulando, e para o cada vez maislongínquo choro da
minha irmã, que ficara do lado de fora doburaco lá no alto,
de onde pouco a pouco nos íamos distanciando»(HORTA, Maria Teresa,
Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).
A ilha que torturava Carlota era o lugar encantado
de Teresinha. Nunca dirá o Faial, falará sempre da Horta, essa terraque treme. Para
Teresinha, os pequenos tremores eram momentos de maravilhamento. Na sala de jantar,
existia um armáriode madeira com portas de vidro, um quadriculado
de vidrinhos.Lá dentro, estavam as loiças mais bonitas, expostas
e por usar.Na parte superior, presas por pequenos camarões
de ferro,perfilavam-se as chávenas de chá Vista Alegre.
Tudo aquilotilintava sempre que havia um tremor de terra.
Teresinha nãosabia porquê, mas achava graça. O que é um tremor
de terra?Achava a possibilidade de a terra estremecer um
gesto lindo.Certa vez, adulta, a viver em Lisboa, estava ao
telefone com oescritor José Cardoso Pires e deu-se um tremor
de terra.O escritor fugiu para a rua, apavorado com a possibilidade
deo
tecto lhe cair em cima da cabeça. Teresa ficou especada com otelefone na
mão, não percebeu o medo que o amigo sentiu. Maistarde, Cardoso Pires
voltou a telefonar e perguntou: «Não sentiste o tremor de terra?» Teresa respondeu-lhe
que sim, acrescentando: «Mas que mal tem um tremor de terra?», Para ela eraalgo encantatório,
fazia com que as chávenas brincassem umascom as outras.
Era impossível não viver os grandes acontecimentos
da ilha.Um deles seria motivo de notícia e pelas piores
razões. No dia13 de Junho de 1942, nas oficinas da Fayal Coal,
junto ao LargoDoutor Manuel de Arriaga, ocorreu uma explosão
violenta quese fez sentir em toda a Horta. Destruiu o edifício
da Fayal Coale alguma envolvente. O barulho foi tremendo, Carlota
assomou à janela, Teresinha alcançou a cadeira mais próxima, trepou e foi ver o
que acontecera lá fora. Queria saber a razão dobarulho. Quando chegou
ao parapeito, uma parte da ilha parecia ter desaparecido, só se via fumo. Numa janela,
ao ladodaquela onde estava, viu um dedo de um homem com
um anel,um dedo que resultava da explosão. «Nunca mais
me esquecidisto. Foi misterioso, porque ninguém explicava
nada às crianças. Morreram pessoas. Explodiram» A criança que era poderia ter sentido
apenas o susto, ou a náusea de ver um membroamputado, colado ao
vidro da sua casa. Mas não foi assim.Teresinha disse: «Mãe, está ali um dedo.» Viu a mãe: ela tinhaos olhos fechados
de uma maneira afincada. Não queria ver.E Teresinha repetiu:«Mãe, está ali um dedo.» Sentiu tudo comose fosse um
filme, como se não fosse a vida real.
Era de manhã muito cedo. Jorge Horta apressou-se
a ir parao hospital. A pressa foi tanta que levou vestidas
as calças porcima do pijama. Teresinha não percebeu a urgência
e pareceu-lhe absurda a aflição paterna. Mais tarde, soube-se
que, naoficina, se procedia a uma soldagem a altas temperaturas
a umapequena bóia de ferro. Esta tinha sido encontrada
há mais devinte anos e era utilizada para amarrar pequenas
embarcações.A «pequena bóia» era na verdade uma bomba, que
terá chegadoali durante a Primeira Guerra Mundial.
Fernando Manuel, "Senhor dos Passos Cidade da Horta 2020", Facebook, 29-03-2020
FICAR COM OS ANJOS
Era então uma menina calada e envergonhada. Sentia
que osdesconhecidos traziam com eles o poder de um qualquerperigo. Importava-lhe
a mãe, a avó, o pai, as irmãs e pouco mais.Não precisava de alternativas,
outros rostos, histórias diferentes. Tudo o resto, tudo o que poderia interferir
nessa bolhafamiliar, quebrava o encanto e Teresinha repudiava.
Mas o deslumbramento improvável foi capaz de a libertar da timidez, dafundura do seu
sossego. Era o dia da Procissão do Senhor dosPassos, um domingo
soalheiro. A família foi para a varanda verpassar a procissão.
Teresinha observou tudo com pasmo eintensidade. Escapou
da varanda, desceu as escadas e seguiu ocortejo. Era uma menina
doentiamente tímida. Sem descolaros olhos do chão, manteve-se
em silêncio; a procissão surgia-lhe como um apelo. «Vi anjos, meninos-anjos e meninas-anjo.Eu, tão envergonhada
que era, meti-me na procissão a seguiros anjos, já apaixonada.»
Jorge Horta descobre a filha a andarao lado dos anjinhos.
«A Teresinha vai ali?», perguntou incrédulo. Carlota não deu importância e terá
dito: «Ah, não... talvez não seja.») Jorge correu na direcção da filha mais velha,Carlota foi
no seu encalço, Camila ficou a ver tudo da varanda,tomando conta
das outras duas netas. O pai aproximou-se daprocissão com rapidez,
pegou-lhe ao colo e afastou-se.«Tiraram-me dos
anjos e eu fiquei desolada. Até hoje. Desateia espernear e a chorar.
Não queria sair daquela coisa mágica,
nunca tinha visto uma
procissão. Eram anjos. Eu tinha encontrado os anjos.» Não vislumbrou o andor com
o Senhor dosPassos, fixou-se naquela visão improvável de anjos
feitos crianças, e guardou aquela imagem de modo tão único,
que afirmaráque os anjos a invadiram. Na sua poesia, na ficção,
os anjos sãouma constante -humanizados, sexualizados, tangíveis.
«Fazemparte de mim.»
«Foi
nessa altura que mais do que as vi adivinhei as asasbrancas, filas
à minha frente, anjos de asas translucidas de verdade, quem sabe… E num arremesso,
num arroubo, numapressa ansiosa e desmedida corri num ápice, célere,
esquecidade tudo o mais, pois os anjos esperavam-me.» (HORTA, Maria Teresa,
«A Ilha» inMeninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).
A
Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta,
Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 38-44.