sábado, 18 de fevereiro de 2023

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa (Alberto Caeiro)


 

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verão nos passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que isso é senti-lo...

 

Alberto Caeiro, «O Guardador de Rebanhos», in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Releia os primeiros quatro versos. Caracterize a percepção que o «eu» tem da «Natureza».

2. Descreva o estado de espírito do «eu» tal como é expresso nos versos 5 e 6.

3. Explicite a relevância das perguntas que constituem a segunda estrofe.

4. «Quando o Verão nos passa pela cara / A mão leve e quente da sua brisa» (vv. 9-10).

     Refira dois dos valores expressivos da personificação presente nos versos transcritos.

5. Comente o sentido do último verso enquanto conclusão do poema.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Segundo os primeiros quatro versos do poema, a percepção que o «eu» tem da «Natureza» caracteriza-se «Às vezes» por uma intensidade inesperada: a realidade atinge o «eu» de forma física e directa («bate-me a Natureza de chapa / Na cara dos meus sentidos»).

A imagem que abre o poema, funcionando como um símile da percepção da «Natureza» pelo «eu», torna particularmente impressivo o carácter físico e avassalador de tal percepção, associada às sensações de calor e de forte luz solar recebidas «num dia de Verão», ao abrir a «porta de casa». (Essa imagem é particularmente impressiva pelo facto de começar por ser referido o gesto de espreitar — vv. 1-2 — o que sublinha, por contraste, a violência e a surpresa da sensação que lhe corresponde.)

2. O «eu» sente-se «confuso», «perturbado» perante a intensidade da sua percepção da «Natureza», que tenta em vão compreender racionalmente. De facto, procura defender-se do choque que a força da sensação lhe causou, transformando-a numa questão racionalizável. Como não o consegue, permanece num estado de confusão e dúvida, que as reticências em final de estrofe sinalizam.

3. Através das perguntas da segunda estrofe, o «eu» põe em causa a sua vontade de «querer perceber», isto é, como modo de reagir ao seu estado de desorientação, o sujeito poético tenta libertar-se da própria necessidade de racionalizar, expressa na estrofe anterior. Assim, o «eu» sugere que é esse mesmo impulso da intelectualização (v. 5) a causa da sua perturbação momentânea perante a «Natureza».

4. A personificação presente nos versos 9-10 tem, entre outros, os seguintes valores expressivos:

intensificar a sensação percepcionada;

atribuir à «Natureza» um papel de fonte de sensações;

expressar uma relação física e directa entre o «eu» e a «Natureza»;

— …

Nota — Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois dos valores expressivos.

5. O último verso sintetiza a decisão definitiva do «eu»: «sentir» as sensações da «Natureza» tal como o seu corpo as recebe, sem se perguntar porquê.

Como conclusão do poema e, nomeadamente, do raciocínio desenvolvido na última estrofe, este verso expressa que a sensação é sempre clara e simples e que apenasque senti-la, o que implica o rejeitar da avaliação racional. Na verdade, tentar «perceber» dificulta, se é que não impede mesmo, o «sentir», que é um modo directo de aceder à realidade.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2004, 2.ª fase

 

Proposta de resolução da Associação de Professores de Português:

1. Após a leitura dos quatro primeiros versos, a natureza apresenta -se ao poeta como algo que o penetra, que toma conta de todos os seus sentidos (“bate-me a Natureza de chapa”).

2. O sujeito poético sente-se “confuso” e “perturbado” perante o contacto com a Natureza. Quer perceber, sem que tenha consciência do objecto dessa percepção.

3. As perguntas que faz, mostram que ele está a pôr em causa a sua vontade de “querer perceber”, tentando reagir a essa vontade de racionalização.

4. A personificação presente nesses versos pode exprimir uma relação física entre o sujeito poético e a natureza e mostra como a Natureza tem um papel muito importante na transmissão de sensações.

5. O último verso mostra que o poeta conseguiu afastar a tentação de pensar, deixando-se dominar pelos sentidos e sentindo as sensações da Natureza tal como o seu corpo as recebe, sem querer saber o porquê.

APP, 14-06-2004




 

II - Elabore um comentário do poema de Alberto Caeiro em que desenvolva os seguintes tópicos:

- composição estrófica e estruturação lógica;

- relação entre o «eu» e a «Natureza»;

- oposição entre «perceber» e «sentir»;

- integração na poesia de Alberto Caeiro.

 

Explicitação de cenários de resposta:

Composição estrófica e estruturação lógica

- Apesar de composto em verso livre, o poema obedece a um princípio nítido de construção.

- A primeira e a terceira estrofes têm o mesmo número de versos, e correspondem a dois momentos simétricos da elaboração lógica do poema, com uma estrofe medial que estabelece a transição entre elas, e que, por sua vez, é construída com duas perguntas retóricas associadas.

- A primeira estrofe expõe uma perturbação na relação «eu» - «Natureza», a que a estrofe medial responde, vindo a terceira estrofe repor uma situação de equilíbrio nessa relação.

 

Relação entre o «eu» e a «Natureza»

- A «Natureza» tem uma relação com o «eu» muito física e direta, que pode provocar, pela sua intensidade inesperada, confusão ou perturbação.

- O «eu» descobre a sua capacidade para sentir simplesmente, quer as sensações que a Natureza proporciona, quer as reações subjetivas que às sensações vêm associadas.

- A «Natureza» é a fonte das sensações, e o «eu» tem de as sentir tal como lhe são dadas, sem perguntar porquê.

- …

 

Oposição entre «perceber» e «sentir»

- O «eu» considera que a perturbação que às vezes sente perante a «Natureza» advém de «querer perceber», isto é, de tentar exercer a sua capacidade de racionalização ou intelectualização.

- «Perceber» torna impossível o «sentir».

- A sensação é sempre clara e simples, mas o pensamento é fonte de confusão.

- …

 

Integração na poesia de Alberto Caeiro

- Tal como este poema, a poesia de Caeiro é toda em verso livre.

- Escolhe a sintaxe mais simples e o vocabulário mais comum.

- Representa sempre a mesma situação: um homem sozinho num cenário da Natureza.

- Propõe a desvalorização do pensar e a valorização do sentir, o que se traduz numa atitude antimetafísica geral.

- Recusa o misticismo espiritualista e afirma-se na sensação da realidade imediata.

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa. Portugal, GAVE, 1998, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

Sugestão de resposta:

O poema de Alberto Caeiro, intitulado "Como quem num dia de Verão abre a porta de casa", apresenta uma estruturação lógica clara, apesar de ser composto em verso livre. A primeira e a terceira estrofes têm o mesmo número de versos, e correspondem a dois momentos simétricos da elaboração lógica do poema, com uma estrofe medial que estabelece a transição entre elas, e que, por sua vez, é construída com duas perguntas retóricas associadas. A primeira estrofe expõe uma perturbação na relação "eu" - "Natureza", a que a estrofe medial responde, vindo a terceira estrofe repor uma situação de equilíbrio nessa relação.

A relação entre o "eu" e a "Natureza" é muito física e direta, e pode provocar confusão ou perturbação no "eu" pela sua intensidade inesperada. O "eu" descobre a sua capacidade para sentir simplesmente, quer as sensações que a Natureza proporciona, quer as reações subjetivas que às sensações vêm associadas. A Natureza é a fonte das sensações, e o "eu" tem de as sentir tal como lhe são dadas, sem perguntar porquê.

O poema apresenta ainda uma oposição entre "perceber" e "sentir". O "eu" considera que a perturbação que às vezes sente perante a Natureza advém de "querer perceber", isto é, de tentar exercer a sua capacidade de racionalização ou intelectualização. "Perceber" torna impossível o "sentir". A sensação é sempre clara e simples, mas o pensamento é fonte de confusão.

Este poema integra-se perfeitamente na poesia de Alberto Caeiro, que é toda em verso livre e escolhe a sintaxe mais simples e o vocabulário mais comum. Representa sempre a mesma situação: um homem sozinho num cenário da Natureza. Propõe a desvalorização do pensar e a valorização do sentir, o que se traduz numa atitude antimetafísica geral. Recusa o misticismo espiritualista e afirma-se na sensação da realidade imediata. Em suma, este poema é uma manifestação da poética de Caeiro, centrada na experiência sensível e na negação da transcendência.

 

Análise textual solicitada a ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-17

 

Outra sugestão de resposta:

O poema de Alberto Caeiro, intitulado "Como quem num dia de Verão abre a porta de casa", retrata a relação direta e imediata entre o "eu" e a "Natureza". Através da imagem de um dia de Verão em que se abre a porta de casa e se sente o calor dos campos na cara, o poeta descreve a experiência sensorial que muitas vezes pode ser perturbadora e confusa, mas que, ainda assim, é uma sensação genuína.

O poema é composto em verso livre, mas tem uma estruturação lógica clara, com duas estrofes simétricas que correspondem a dois momentos distintos da relação entre o "eu" e a "Natureza", separadas por uma estrofe medial que estabelece a transição entre elas.

A relação entre o "eu" e a "Natureza" é retratada como uma relação física e direta, em que a "Natureza" é a fonte das sensações e o "eu" tem de sentir simplesmente, sem questionar ou tentar intelectualizar a experiência. O poema critica a tendência do "eu" em querer perceber as sensações, o que torna impossível o sentir, e propõe uma valorização do sentir em detrimento do pensar.

No contexto da poesia de Alberto Caeiro, este poema integra-se perfeitamente na sua proposta de uma poesia que valoriza a sensação e a experiência imediata da realidade, sem se deixar levar pela especulação metafísica ou pela tendência para a racionalização excessiva. O poema é um exemplo claro da simplicidade da linguagem e da visão do mundo que caracterizam a poesia de Caeiro.

 

Análise textual solicitada a ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-17

 

 

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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O mistério das cousas, onde está ele? (Alberto Caeiro)


 

XXXIX

O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

 

Alberto Caeiro, «O Guardador de Rebanhos», in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Explicite a relação que se estabelece entre o desenvolvimento do tema e a estrutura estrófica do poema.

2. Refira um dos efeitos de sentido produzidos pelas interrogações presentes na primeira estrofe.

3. Interprete as referências aos «poetas» (v. 11) e aos «filósofos» (v. 12).

4. Tendo em conta, nomeadamente, os versos catorze e quinze, explique como se constrói a aprendizagem do «eu».

5. Comente a importância do último verso enquanto conclusão do texto.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. O poema organiza-se em três momentos, correspondendo globalmente cada um deles a uma estrofe, cujo subtema ou mote é enunciado nos versos de abertura.

Assim, o poema inicia-se com a identificação de um problema («O mistério das cousas, onde está ele?»), glosado na primeira estrofe.

Os dois versos iniciais da segunda estrofe («Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum.») enunciam o argumento que desconstrói esse problema, argumento que é expandido ao longo desta estrofe medial.

O primeiro verso da terceira estrofe («Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: ‑») anuncia a conclusão, formulada como um resumo do raciocínio precedente.

2. As interrogações (vv. 1-5) produzem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- conferem vivacidade ao discurso poético, destacando cada um dos elementos da cadeia do raciocínio;

- suscitam o interesse pelo problema apresentado;

- marcam mudanças de enfoque na argumentação (reduzindo ao absurdo o problema colocado ou questionando a existência de um saber com capacidade de o resolver);

-

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.

3. Os «poetas» e os «filósofos», sujeitos da busca de sentido oculto para as «cousas», são mencionados como pontos de comparação relativamente à estranheza das «cousas» sem «sentido oculto nenhum». É que nem os «poetas» nem os «filósofos» conseguem atingir, pelos seus «sonhos» ou pelos seus «pensamentos», a simples existência das «cousas». Com efeito, ambos procuram «compreender» aquilo que, para Caeiro, apenas tem «existência».

4. O verso catorze remata o discurso sobre a estranheza de as «cousas» «não terem sentido oculto nenhum», mencionando o facto de não haver «nada que compreender» como a maior de todas as «estranhezas». O sentido desta afirmação clarifica-se no verso seguinte («Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -»), ou seja, o saber que as «cousas» não ocultam mistérios corresponde a uma aprendizagem do «eu», construída através da simples apreensão dos sentidos, sem interferência da compreensão intelectual.

5. O verso «As cousas são o único sentido oculto das cousas.» encerra a questão da «significação» das «cousas», que se coloca ao longo do poema, dando resposta definitiva à interrogação lançada no primeiro verso.

A negação da existência de «sentido oculto» nas «cousas», inscrita nos versos 8-9, surge reformulada neste verso, que convoca outros temas do texto, nomeadamente, a estranheza da coincidência entre o ser e o parecer das «cousas» (v. 13) e a sua simples existência sem «significação» (v. 16).

Deste modo, o verso «As cousas são o único sentido oculto das cousas.» quer dizer que o «sentido oculto» das «cousas» reside no existir, sem «significação», das «cousas» em si mesmas, tal como se apresentam aos sentidos. 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, Recurso


*** 


II - Comente o texto, desenvolvendo, de forma especial, os seguintes aspetos:

- classificação do discurso;

- descrição da estrutura externa e interna do texto;

- marcas morfossintáticas, semânticas e estilísticas relevantes;

- interpretação: perspetivas filosóficas assumidas pelo sujeito de enunciação;

- relações com outros textos de Caeiro e do Ortónimo seus conhecidos.

 

Tópicos de correção:

Classificação do discurso e descrição da sua estrutura:

- texto literário;

- género lírico;

- estrutura externa:

- mancha irregular;

- três estrofes irregulares;

- verso livre;

- estrutura interna: divisão em três partes;

- formulação de questões;

- resposta do sujeito lírico;

- síntese confirmativa.


Marcas morfossintáticas, semânticas e estilísticas relevantes:

- interrogações;

- pronomes;

- formas verbais;

- repetições;

- pobreza lexical;

- palavras-chave;

- imagens e comparações bem conseguidas.

 

Perspetivas filosóficas assumidas pelo sujeito de enunciação:

- aceitação do mundo tal qual ele é;

- recusa da metafísica;

- fenomenalismo;

- sensorialismo.

 

Relações com a restante obra de Caeiro e com o Ortónimo:

- em especial de semelhança:

· por exemplo, os poemas IX e X de O Guardador de Rebanhos;

· Caeiro, poeta ingénuo, do real objectivo, que vive de impressões, mormente visuais;

- em especial de diferença:

· por exemplo, "Ela canta, pobre ceifeira";

· o Ortónimo, poeta racionalista, da "dor de pensar", que vive pela imaginação. 

Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 12.° ano, 1991, 2.ª Fase


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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Acho tão natural que não se pense, Alberto Caeiro

 



XXXIV






5





10




15




20

Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa

Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas…
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um dormente.

Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.

 

Alberto Caeiro, «O Guardador de Rebanhos», in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o poema “XXXIV - Acho tão natural que não se pense”, de Alberto Caeiro:

1. Explicite as características do «eu» reveladas na primeira estrofe.

2. Analise os sentimentos expressos no verso: «E então desagrado-me, e incomodo-me» (v. 8).

3. Atente na frase: «Que me importa isso a mim?» (v. 14). Explique o seu significado no contexto em que surge.

4. Refira os efeitos produzidos pelos traços de discurso oral presentes no poema.

5. «E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.» (v. 20). Comente o sentido deste verso enquanto conclusão do texto.

 

Explicitação de cenários de respostas:

1. Segundo a primeira estrofe, o «eu» caracteriza-se como alguém que:

- considera o ato de não pensar como seu traço constitutivo;

- se sente distanciado da «gente que pensa»;

- tem, por vezes, um sentimento tão forte do absurdo que constitui «haver gente que pensa», que se põe «a rir [...] sozinho»;

-

2. O verso «E então desagrado-me, e incomodo-me» exprime o descontentamento do «eu» consigo mesmo por se ter surpreendido a perguntar-se «cousas», isto é, a pensar, o que significa ter-se traído, por momentos, a si próprio, caindo no erro que critica nos outros. Mesmo que momentânea, esta contradição provoca-lhe, ao aperceber-se dela, um desagrado e um desconforto quase físicos (cf. v. 9).

3. A frase interrogativa «Que me importa isso a mim?», encerrando o discurso sobre a hipótese inverificável de as coisas terem pensamento, marca a distância do sujeito poético em relação a esse tipo de problemática. Depois de negar categoricamente essa hipótese (v. 11) e de manifestar a sua indiferença perante a eventualidade de a «terra» pensar (vv. 12-13), o sujeito poético, através desta última interrogação, prescinde de todas as interrogações, à imagem da própria natureza.

4. Pelas suas características oralizantes - vocabulário simples e corrente, repetições, frases curtas, frases interrogativas, reticências, recurso a perguntas e respostas - o discurso poético aproxima-se da fluidez coloquial da fala, recriando o aspeto de uma linguagem despojada de artifícios, coerente com a simplicidade comunicativa das ideias que apresenta.

5. O verso «E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.» surge formulado como a conclusão do poema e, em particular, da argumentação iniciada no verso 15, relativa ao que o sujeito poético perderia se «pensasse» e ao que ganha não pensando. Assim, pensar significaria deixar de ver a realidade para «ver só» as construções abstratas dos «pensamentos», que se interporiam, como uma cortina, entre o «eu» e «as árvores», «as plantas» e a «Terra», deixando-o «às escuras». Pelo contrário, não pensando, nada se interpõe entre o seu olhar e a realidade das coisas do mundo; em suma, não pensar é libertar de subjetividade a visão do real, é restituir ao olhar a capacidade de ver o mundo na sua plenitude, é sentir-se dono da «Terra» e do «Céu».

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2002, 1.ª fase, 1.ª chamada

 


 

Proposta de resolução da Associação de Professores de Português:

1. O “eu” caracteriza-se como alguém que se ri sozinho dos que pensam, pois para ele, o natural será não pensar. Existe uma recusa em pensar e um certo afastamento dos outros que pensam.

2. Esse verso exprime sentimentos de descontentamento e mal-estar pois o poeta , quando toma consciência de que poderá eventualmente pensar, sente-se “incomodado”.

3. Esta frase mostra o afastamento de tudo aquilo que possa conduzir ao “pensar”. O poeta, ao referir que para ele não é importante que “outros” pensem, está a tomar uma atitude de total indiferença.

4. O discurso oral presente no poema sugere uma linguagem simples e objetiva, que está de acordo com as ideias expressas no poema.

5. Enquanto conclusão do texto, esse verso reforça mais uma vez a importância do “não- pensar”. O poeta, se pensasse, deixaria de ver a realidade do mundo pois o pensamento impedi-lo-ia de olhar para a Natureza. Assim, como ele não pensa, consegue ver tudo o que o rodeia, quer seja a Terra, quer seja o Céu.

17-06-2002

 

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É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância, Alberto Caeiro


 

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

8-11-1915

Alberto Caeiro, Poemas, 7.a ed., Lisboa, Ática, 1979

 

Questionário sobre o poema “É noite. A noite é muito escura”, de Alberto Caeiro

1. Transcreva as referências ao espaço, representado no poema.

2. Defina o tipo de relação que, ao longo do texto, o Eu estabelece com o “indivíduo que ali mora”.

3. Apresente uma interpretação possível para o seguinte verso: “Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.” (v. 3)

4. Explicite os sentidos produzidos pela interrogação no final do poema.

5. Exponha o pensamento sobre a realidade que é desenvolvido no texto. Fundamente a sua resposta em citações elucidativas.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Referências ao espaço:

- “é noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância / Brilha a luz de uma janela.” (vv. 1-2);

- “ali mora” (v. 4);

- “essa luz vista de longe.” (v. 5);

- “a luz da janela dele.” (v. 7);

- “a luz estar ali” (v. 8);

- “de onde estou, só vejo aquela luz, / Em relação à distância onde estou há só aquela luz.” (vv. 12-13);

- “do lado de lá da janela.” (v. 14);

- “do lado de cá, a uma grande distância.” (v. 15);

- «A luz apagou-se.» (v. 16).

 

2. A relação que, ao longo do texto, o Eu estabelece com o “ele”, o “indivíduo que ali mora”, é marcada por três movimentos fundamentais:

- vv. 1-6 – curiosidade e atração por esse desconhecido (“que não sei quem é”), uma presença humana que, ao longe, se adivinha pela luz que brilha na noite. A perceção dessa luz convoca de imediato uma “casa” e uma “janela”, suscitando o interesse pela “vida do indivíduo que ali mora” (“Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.”);

- vv. 7-15 – a constatação de que a luz é o único elemento visível conduz o sujeito a assinalar “aquela luz” como “a única realidade que lhe importa”, relativamente ao “homem” que a acendeu, pois “ele” e “a família dele” só “são reais do lado de lá da janela” e não “do lado de cá, a uma grande distância”, de onde não pode vê-los;

- vv. 16-17 – ao apagar-se a luz, o Eu perde o contacto com o outro, desinteressando-se dessa existência humana.

 

3. Exemplos possíveis de interpretação:

- a perceção da luz, na noite “muito escura”, acorda no sujeito um desejo de aproximação do outro, de identificação, pela humanidade que partilham na noite cósmica;

- a perceção da luz suscita no Eu sentimentos de curiosidade e de atração pelo outro desconhecido, mas idêntico na sua humanidade;

- ...

 

4. A interrogação intensifica a expressão do desinteresse pela existência do outro, que o apagar da luz provoca no sujeito e poderá transferir para o leitor a responsabilidade de problematizar a consciência humana da realidade, a partir da experiência relatada no poema.

 

5. O sujeito poético atribui estatuto de realidade apenas ao que é percecionado como coisa vista. Por um movimento reflexivo iniciado no verso 7 (“Mas agora só me importa a luz da janela dele.”), o sujeito identifica a luz como o único elemento percecionado, objetivo, da realidade representada: “ A luz é a realidade imediata para mim. / Eu nunca passo para além da realidade imediata. / Para além da realidade imediata não há nada.” (vv. 9-11). Não sendo visíveis “do lado de cá, a uma grande distância” (v. 15). “O homem e a família dele” – apesar de “reais do lado de lá da janela” (v. 14) – não pertencem à “realidade imediata” para o Eu; correspondem a uma ficção construída, que o apagar da luz rasura da sua consciência.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1998, 2.ª fase

 

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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Alberto Caeiro

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos

XX




 


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêm em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

 

Alberto Caeiro, Poemas Completos, Comp. José Aguilar, Rio de Janeiro, 1972

 

 

Questionário sobre o poema “XX - O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, de Alberto Caeiro

 

l. No início do poema afirma-se em sequência:

"O Tejo é mais belo..." (v. l) "

"... o Tejo não é mais belo ..." (v. 2)

1.1. Com base na leitura do texto, apresente as razões desta mudança da forma afirmativa para a forma negativa.

2. "E navega nele ainda, (v. 5) / [...] A memória das naus. (v. 7)"

2.1. Comente o valor expressivo desta afirmação.

3. "... aqueles que veem em tudo o que lá não está ..." (v. 6)

3.1. Explicite o sentido desta expressão.

4. No texto afirma-se que "o rio da minha aldeia" é mais livre e maior (v. 15).

4.1. Refira o significado desta afirmação, neste contexto.

5. Todo o poema é atravessado pela comparação entre o Tejo e "o rio da minha aldeia".

5.1. Indique o grau em que se encontram os adjetivos que estabelecem essa comparação. Exemplifique.

6. Dos rios referidos no poema, um é nomeado com um substantivo próprio, o outro com um substantivo comum.

6.1. Justifique esta afirmação com transcrições do texto.

6.2. Relacione essa diferente nomeação com o significado que cada um dos rios assume no poema.

7. Há um momento do texto em que o Tejo surge associado à procura de uma vida melhor.

7.1. Aponte esse momento e selecione as palavras que melhor exprimem essa associação.

8. "Quem está ao pé dele está só ao pé dele." (v. 22)

8.1. Analise o processo de construção do sentido presente neste verso.

9. Refira marcas características da poesia de Alberto Caeiro presentes no poema.

 

 



Sugestões de correção:

1.1. O sentido de cada uma das expressões assenta numa perspetiva diferente:

- o Tejo é considerado mais belo, na medida em que é mais conhecido, mais famoso, um lugar com mais história;

- o Tejo não é considerado mais belo, na medida em que não suscita uma relação tão intima de afetividade, de proximidade; é mais distante.

 

2.1. Ao estabelecer-se a relação direta de "memória das naus" com "navega" (sujeito/predicado), torna-se mais expressiva a ideia de permanência do passado.

 

3.1. Por exemplo: aqueles que sobrepõem o conhecimento e a memória, afinal a cultura, simples perceção do real.

 

4.1. A liberdade do "rio da minha aldeia" é menos afetada e o domínio de si próprio é maior, devido ao facto de ser menos conhecido.

 

5.1. Grau comparativo de superioridade. Qualquer um dos seguintes exemplos: "mais belo"; "mais livre"; "maior".

 

6.1. Tejo é um nome próprio.

       Rio é um nome comum.

 

6.2. · O rio da minha aldeia é nomeado por um nome que se aplica a todo e qualquer elemento da mesma espécie. O Tejo tem nome próprio. Esta diferente nomeação radica no diferente grau de notoriedade de cada um. O Tejo tem uma nomeação geográfica e um sentido histórico a nível nacional.

 

7.1. Os três primeiros versos da 4.a estrofe. "América" e "fortuna".

 

8. No verso transcrito, verifica-se a presença da repetição de "está ao pé dele", reforçada pelo advérbio de exclusão "só".

 

9. Entre outras*, podem considerar-se as seguintes marcas:

- simplicidade da linguagem (caráter repetitivo do léxico e da morfossintaxe);

- versilibrismo;

- apreensão direta da natureza;

- predomínio da perceção visual.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos de Caráter Geral e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1997, 2.ª fase

 

______

* São marcas características da poesia de Alberto Caeiro:

- recusa de pensar;

- visão objetiva da natureza;

- aceitação do mundo;

- simplicidade de estilo [comparação, polissíndeto, repetições];

- relação de harmonia com a Natureza;

- aparente simplicidade e natureza argumentativa do discurso poético, visível no recurso a uma linguagem corrente;

- a natureza como valor essencial;

- verso livre;

- irregularidade métrica e estrófica;

- linguagem próxima da prosa.

 

 

Uma análise literária pelo ChatGPT

 

Análise literária do poema “XX - O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, de Alberto Caeiro solicitada ao ChatGPT, com base na resolução do questionário do exercício anterior.

 

O poema XX de Alberto Caeiro, pertencente ao livro "O Guardador de Rebanhos", é uma reflexão sobre a relação entre a beleza e a proximidade afetiva. O poema compara o Tejo, um rio conhecido e famoso, com o rio da aldeia do poeta, menos conhecido e próximo dele.

Os primeiros versos estabelecem a comparação entre o Tejo e o rio da aldeia, afirmando que o Tejo é mais belo, mas não é mais belo do que o rio da aldeia, que é mais próximo e afetivamente ligado ao poeta. A partir dessa comparação, o poema explora as diferentes perspetivas em relação aos dois rios e o que eles representam.

O Tejo é apresentado como um rio de grande importância histórica, com grandes navios a navegar nele e uma memória de navegação que perdura. Essa característica torna-o mais conhecido e famoso, mas também menos livre e próximo. Por outro lado, o rio da aldeia é menos conhecido, mas mais livre e maior, permitindo uma relação mais íntima com ele.

A referência à América e à fortuna na quarta estrofe é uma alusão à ideia de que o Tejo é um rio que leva as pessoas para lugares desconhecidos e, possivelmente, mais prósperos. Por outro lado, o rio da aldeia não sugere essa possibilidade, mas é valorizado pela sua simplicidade e pelo facto de que quem está perto dele está só com ele, sem influências externas.

Em relação às características da poesia de Alberto Caeiro, o poema apresenta uma linguagem simples e repetitiva, com versos curtos e uma predileção pela perceção visual. A ideia de apreensão direta da natureza também está presente, pois o poeta compara os rios com base em suas características reais, e não em ideias pré-concebidas ou estereótipos. A repetição do nome do rio da aldeia com um termo genérico ("rio") em vez de um nome próprio também sugere uma aproximação mais natural e menos carregada de história e simbolismo.

 

ChatGPT Feb 13 Version. Disponível em https://chat.openai.com/chat. Resposta solicitada em 15-02-2023

 

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