quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância, Alberto Caeiro


 

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

8-11-1915

Alberto Caeiro, Poemas, 7.a ed., Lisboa, Ática, 1979

 

Questionário sobre o poema “É noite. A noite é muito escura”, de Alberto Caeiro

1. Transcreva as referências ao espaço, representado no poema.

2. Defina o tipo de relação que, ao longo do texto, o Eu estabelece com o “indivíduo que ali mora”.

3. Apresente uma interpretação possível para o seguinte verso: “Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.” (v. 3)

4. Explicite os sentidos produzidos pela interrogação no final do poema.

5. Exponha o pensamento sobre a realidade que é desenvolvido no texto. Fundamente a sua resposta em citações elucidativas.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Referências ao espaço:

- “é noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância / Brilha a luz de uma janela.” (vv. 1-2);

- “ali mora” (v. 4);

- “essa luz vista de longe.” (v. 5);

- “a luz da janela dele.” (v. 7);

- “a luz estar ali” (v. 8);

- “de onde estou, só vejo aquela luz, / Em relação à distância onde estou há só aquela luz.” (vv. 12-13);

- “do lado de lá da janela.” (v. 14);

- “do lado de cá, a uma grande distância.” (v. 15);

- «A luz apagou-se.» (v. 16).

 

2. A relação que, ao longo do texto, o Eu estabelece com o “ele”, o “indivíduo que ali mora”, é marcada por três movimentos fundamentais:

- vv. 1-6 – curiosidade e atração por esse desconhecido (“que não sei quem é”), uma presença humana que, ao longe, se adivinha pela luz que brilha na noite. A perceção dessa luz convoca de imediato uma “casa” e uma “janela”, suscitando o interesse pela “vida do indivíduo que ali mora” (“Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.”);

- vv. 7-15 – a constatação de que a luz é o único elemento visível conduz o sujeito a assinalar “aquela luz” como “a única realidade que lhe importa”, relativamente ao “homem” que a acendeu, pois “ele” e “a família dele” só “são reais do lado de lá da janela” e não “do lado de cá, a uma grande distância”, de onde não pode vê-los;

- vv. 16-17 – ao apagar-se a luz, o Eu perde o contacto com o outro, desinteressando-se dessa existência humana.

 

3. Exemplos possíveis de interpretação:

- a perceção da luz, na noite “muito escura”, acorda no sujeito um desejo de aproximação do outro, de identificação, pela humanidade que partilham na noite cósmica;

- a perceção da luz suscita no Eu sentimentos de curiosidade e de atração pelo outro desconhecido, mas idêntico na sua humanidade;

- ...

 

4. A interrogação intensifica a expressão do desinteresse pela existência do outro, que o apagar da luz provoca no sujeito e poderá transferir para o leitor a responsabilidade de problematizar a consciência humana da realidade, a partir da experiência relatada no poema.

 

5. O sujeito poético atribui estatuto de realidade apenas ao que é percecionado como coisa vista. Por um movimento reflexivo iniciado no verso 7 (“Mas agora só me importa a luz da janela dele.”), o sujeito identifica a luz como o único elemento percecionado, objetivo, da realidade representada: “ A luz é a realidade imediata para mim. / Eu nunca passo para além da realidade imediata. / Para além da realidade imediata não há nada.” (vv. 9-11). Não sendo visíveis “do lado de cá, a uma grande distância” (v. 15). “O homem e a família dele” – apesar de “reais do lado de lá da janela” (v. 14) – não pertencem à “realidade imediata” para o Eu; correspondem a uma ficção construída, que o apagar da luz rasura da sua consciência.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1998, 2.ª fase

 

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