É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma
grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
8-11-1915
Alberto Caeiro, Poemas, 7.a ed., Lisboa, Ática,
1979
Questionário sobre
o poema “É noite. A noite é muito escura”, de Alberto Caeiro
1. Transcreva as referências ao espaço, representado no poema.
2. Defina o tipo
de relação que, ao longo do texto, o Eu estabelece com o “indivíduo que ali
mora”.
3. Apresente uma
interpretação possível para o seguinte verso: “Vejo-a, e sinto-me humano dos
pés à cabeça.” (v. 3)
4. Explicite os
sentidos produzidos pela interrogação no final do poema.
5. Exponha o
pensamento sobre a realidade que é desenvolvido no texto. Fundamente a sua
resposta em citações elucidativas.
Explicitação de cenários de resposta:
1. Referências ao espaço:
- “é noite. A
noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância / Brilha a luz de uma
janela.” (vv. 1-2);
- “ali mora” (v.
4);
- “essa luz
vista de longe.” (v. 5);
- “a luz da
janela dele.” (v. 7);
- “a luz estar
ali” (v. 8);
- “de onde
estou, só vejo aquela luz, / Em relação à distância onde estou há só aquela
luz.” (vv. 12-13);
- “do lado de
lá da janela.” (v. 14);
- “do lado de
cá, a uma grande distância.” (v. 15);
- «A luz
apagou-se.» (v. 16).
2. A relação que, ao longo do texto, o Eu
estabelece com o “ele”, o “indivíduo que ali mora”, é marcada por três
movimentos fundamentais:
- vv. 1-6 –
curiosidade e atração por esse desconhecido (“que não sei quem é”), uma
presença humana que, ao longe, se adivinha pela luz que brilha na noite. A
perceção dessa luz convoca de imediato uma “casa” e uma “janela”, suscitando o
interesse pela “vida do indivíduo que ali mora” (“Sem dúvida que a vida dele é
real e ele tem cara, gestos, família e profissão.”);
- vv. 7-15 – a
constatação de que a luz é o único elemento visível conduz o sujeito a
assinalar “aquela luz” como “a única realidade que lhe importa”, relativamente
ao “homem” que a acendeu, pois “ele” e “a família dele” só “são reais do lado
de lá da janela” e não “do lado de cá, a uma grande distância”, de onde não
pode vê-los;
- vv. 16-17 – ao
apagar-se a luz, o Eu perde o contacto com o outro, desinteressando-se dessa
existência humana.
3. Exemplos possíveis de interpretação:
- a perceção da
luz, na noite “muito escura”, acorda no sujeito um desejo de aproximação do
outro, de identificação, pela humanidade que partilham na noite cósmica;
- a perceção da
luz suscita no Eu sentimentos de curiosidade e de atração pelo outro
desconhecido, mas idêntico na sua humanidade;
- ...
4. A interrogação intensifica a expressão
do desinteresse pela existência do outro, que o apagar da luz provoca no
sujeito e poderá transferir para o leitor a responsabilidade de problematizar a
consciência humana da realidade, a partir da experiência relatada no poema.
5. O sujeito poético atribui estatuto de
realidade apenas ao que é percecionado como coisa vista. Por um movimento
reflexivo iniciado no verso 7 (“Mas agora só me importa a luz da janela
dele.”), o sujeito identifica a luz como o único elemento percecionado, objetivo,
da realidade representada: “ A luz é a realidade imediata para mim. / Eu nunca
passo para além da realidade imediata. / Para além da realidade imediata não há
nada.” (vv. 9-11). Não sendo visíveis “do lado de cá, a uma grande distância”
(v. 15). “O homem e a família dele” – apesar de “reais do lado de lá da janela”
(v. 14) – não pertencem à “realidade imediata” para o Eu; correspondem a uma
ficção construída, que o apagar da luz rasura da sua consciência.
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
Sem comentários:
Enviar um comentário