XXXIX
O
mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas
não terem sentido oculto nenhum.
É mais
estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
Alberto
Caeiro, «O Guardador de Rebanhos», in Poesia, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2001
I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas
respostas ao questionário.
1.
Explicite a relação que se estabelece entre o desenvolvimento do tema e
a estrutura estrófica do poema.
2.
Refira um dos efeitos de sentido produzidos pelas interrogações
presentes na primeira estrofe.
3.
Interprete as referências aos «poetas» (v. 11) e aos «filósofos» (v.
12).
4.
Tendo em conta, nomeadamente, os versos catorze e quinze, explique como
se constrói a aprendizagem do «eu».
5.
Comente a importância do último verso enquanto conclusão do texto.
Explicitação de cenários de resposta
1. O poema organiza-se em três
momentos, correspondendo globalmente cada um deles a uma estrofe, cujo subtema
ou mote é enunciado nos versos de abertura.
Assim, o poema
inicia-se com a identificação de um problema («O mistério das cousas, onde está
ele?»), glosado na primeira estrofe.
Os dois versos iniciais
da segunda estrofe («Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não
terem sentido oculto nenhum.») enunciam o argumento que desconstrói esse
problema, argumento que é expandido ao longo desta estrofe medial.
O primeiro verso da
terceira estrofe («Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: ‑») anuncia
a conclusão, formulada como um resumo do raciocínio precedente.
2. As interrogações (vv. 1-5)
produzem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:
- conferem vivacidade ao
discurso poético, destacando cada um dos elementos da cadeia do raciocínio;
- suscitam o interesse
pelo problema apresentado;
- marcam mudanças de
enfoque na argumentação (reduzindo ao absurdo o problema colocado ou
questionando a existência de um saber com capacidade de o resolver);
- …
Nota - Recorda-se que o
enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.
3. Os «poetas» e os «filósofos»,
sujeitos da busca de sentido oculto para as «cousas», são mencionados como
pontos de comparação relativamente à estranheza das «cousas» sem
«sentido oculto nenhum». É que nem os «poetas» nem os «filósofos» conseguem
atingir, pelos seus «sonhos» ou pelos seus «pensamentos», a simples existência
das «cousas». Com efeito, ambos procuram «compreender» aquilo que, para Caeiro,
apenas tem «existência».
4. O verso
catorze remata o discurso sobre a estranheza de as «cousas» «não terem sentido
oculto nenhum», mencionando o facto de não haver «nada que compreender» como a
maior de todas as «estranhezas». O sentido desta afirmação clarifica-se no
verso seguinte («Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -»), ou
seja, o saber que as «cousas» não ocultam mistérios corresponde a uma
aprendizagem do «eu», construída através da simples apreensão dos sentidos, sem
interferência da compreensão intelectual.
5. O verso «As cousas são o único sentido oculto das
cousas.» encerra a questão da «significação» das «cousas», que se coloca ao
longo do poema, dando resposta definitiva à interrogação lançada no primeiro
verso.
A negação da existência
de «sentido oculto» nas «cousas», inscrita nos versos 8-9, surge reformulada
neste verso, que convoca outros temas do texto, nomeadamente, a estranheza da
coincidência entre o ser e o parecer das «cousas» (v. 13) e a sua simples
existência sem «significação» (v. 16).
Deste modo, o verso «As cousas são o único sentido oculto das cousas.» quer dizer que o «sentido oculto» das «cousas» reside no existir, sem «significação», das «cousas» em si mesmas, tal como se apresentam aos sentidos.
***
II - Comente o texto, desenvolvendo, de forma especial, os seguintes aspetos:
- classificação do discurso;
- descrição da estrutura externa e
interna do texto;
- marcas morfossintáticas,
semânticas e estilísticas relevantes;
- interpretação: perspetivas
filosóficas assumidas pelo sujeito de enunciação;
- relações com outros textos de
Caeiro e do Ortónimo seus conhecidos.
Tópicos de
correção:
Classificação do discurso e descrição da
sua estrutura:
- texto literário;
- género lírico;
- estrutura externa:
- mancha irregular;
- três estrofes
irregulares;
- verso livre;
- estrutura interna:
divisão em três partes;
- formulação de questões;
- resposta do sujeito
lírico;
- síntese confirmativa.
Marcas morfossintáticas, semânticas e
estilísticas relevantes:
- interrogações;
- pronomes;
- formas verbais;
- repetições;
- pobreza lexical;
- palavras-chave;
- imagens e comparações
bem conseguidas.
Perspetivas filosóficas assumidas pelo
sujeito de enunciação:
- aceitação do mundo tal qual ele é;
- recusa da metafísica;
- fenomenalismo;
- sensorialismo.
Relações com a restante obra de Caeiro e
com o Ortónimo:
- em especial de
semelhança:
· por exemplo, os poemas IX
e X de O Guardador de Rebanhos;
· Caeiro, poeta ingénuo, do
real objectivo, que vive de impressões, mormente visuais;
- em especial de
diferença:
· por exemplo, "Ela
canta, pobre ceifeira";
· o Ortónimo, poeta racionalista, da "dor de pensar", que vive pela imaginação.
Prova Escrita de
Literatura Portuguesa, 12.° ano, 1991, 2.ª Fase
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
Sem comentários:
Enviar um comentário