sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O mistério das cousas, onde está ele? (Alberto Caeiro)


 

XXXIX

O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

 

Alberto Caeiro, «O Guardador de Rebanhos», in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Explicite a relação que se estabelece entre o desenvolvimento do tema e a estrutura estrófica do poema.

2. Refira um dos efeitos de sentido produzidos pelas interrogações presentes na primeira estrofe.

3. Interprete as referências aos «poetas» (v. 11) e aos «filósofos» (v. 12).

4. Tendo em conta, nomeadamente, os versos catorze e quinze, explique como se constrói a aprendizagem do «eu».

5. Comente a importância do último verso enquanto conclusão do texto.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. O poema organiza-se em três momentos, correspondendo globalmente cada um deles a uma estrofe, cujo subtema ou mote é enunciado nos versos de abertura.

Assim, o poema inicia-se com a identificação de um problema («O mistério das cousas, onde está ele?»), glosado na primeira estrofe.

Os dois versos iniciais da segunda estrofe («Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum.») enunciam o argumento que desconstrói esse problema, argumento que é expandido ao longo desta estrofe medial.

O primeiro verso da terceira estrofe («Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: ‑») anuncia a conclusão, formulada como um resumo do raciocínio precedente.

2. As interrogações (vv. 1-5) produzem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- conferem vivacidade ao discurso poético, destacando cada um dos elementos da cadeia do raciocínio;

- suscitam o interesse pelo problema apresentado;

- marcam mudanças de enfoque na argumentação (reduzindo ao absurdo o problema colocado ou questionando a existência de um saber com capacidade de o resolver);

-

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.

3. Os «poetas» e os «filósofos», sujeitos da busca de sentido oculto para as «cousas», são mencionados como pontos de comparação relativamente à estranheza das «cousas» sem «sentido oculto nenhum». É que nem os «poetas» nem os «filósofos» conseguem atingir, pelos seus «sonhos» ou pelos seus «pensamentos», a simples existência das «cousas». Com efeito, ambos procuram «compreender» aquilo que, para Caeiro, apenas tem «existência».

4. O verso catorze remata o discurso sobre a estranheza de as «cousas» «não terem sentido oculto nenhum», mencionando o facto de não haver «nada que compreender» como a maior de todas as «estranhezas». O sentido desta afirmação clarifica-se no verso seguinte («Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -»), ou seja, o saber que as «cousas» não ocultam mistérios corresponde a uma aprendizagem do «eu», construída através da simples apreensão dos sentidos, sem interferência da compreensão intelectual.

5. O verso «As cousas são o único sentido oculto das cousas.» encerra a questão da «significação» das «cousas», que se coloca ao longo do poema, dando resposta definitiva à interrogação lançada no primeiro verso.

A negação da existência de «sentido oculto» nas «cousas», inscrita nos versos 8-9, surge reformulada neste verso, que convoca outros temas do texto, nomeadamente, a estranheza da coincidência entre o ser e o parecer das «cousas» (v. 13) e a sua simples existência sem «significação» (v. 16).

Deste modo, o verso «As cousas são o único sentido oculto das cousas.» quer dizer que o «sentido oculto» das «cousas» reside no existir, sem «significação», das «cousas» em si mesmas, tal como se apresentam aos sentidos. 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, Recurso


*** 


II - Comente o texto, desenvolvendo, de forma especial, os seguintes aspetos:

- classificação do discurso;

- descrição da estrutura externa e interna do texto;

- marcas morfossintáticas, semânticas e estilísticas relevantes;

- interpretação: perspetivas filosóficas assumidas pelo sujeito de enunciação;

- relações com outros textos de Caeiro e do Ortónimo seus conhecidos.

 

Tópicos de correção:

Classificação do discurso e descrição da sua estrutura:

- texto literário;

- género lírico;

- estrutura externa:

- mancha irregular;

- três estrofes irregulares;

- verso livre;

- estrutura interna: divisão em três partes;

- formulação de questões;

- resposta do sujeito lírico;

- síntese confirmativa.


Marcas morfossintáticas, semânticas e estilísticas relevantes:

- interrogações;

- pronomes;

- formas verbais;

- repetições;

- pobreza lexical;

- palavras-chave;

- imagens e comparações bem conseguidas.

 

Perspetivas filosóficas assumidas pelo sujeito de enunciação:

- aceitação do mundo tal qual ele é;

- recusa da metafísica;

- fenomenalismo;

- sensorialismo.

 

Relações com a restante obra de Caeiro e com o Ortónimo:

- em especial de semelhança:

· por exemplo, os poemas IX e X de O Guardador de Rebanhos;

· Caeiro, poeta ingénuo, do real objectivo, que vive de impressões, mormente visuais;

- em especial de diferença:

· por exemplo, "Ela canta, pobre ceifeira";

· o Ortónimo, poeta racionalista, da "dor de pensar", que vive pela imaginação. 

Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 12.° ano, 1991, 2.ª Fase


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