“Há
uma coisa que nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente
sem argumentos a minha esperança”.
Miguel Torga, Diário IV, 1985
Chaves, 11 de setembro de 1975
LAMENTO
Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura,
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?
Ah, Camões, que não sou, afortunado!
Também desiludido
Mas ainda lembrado da epopeia!
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!...
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente...
Miguel Torga, Antologia
Poética, Diário XII, 1977, Coimbra, pp. 447-448
Questionário sobre o poema "Lamento", de Miguel Torga.
1. Faça o levantamento
dos vocábulos ligados à navegação marítima e justifique por que se lhe faz
referência.
2. Justifique o título.
3. Tendo em atenção a data de produção do poema, explicite a razão para a ocorrência das frases exclamativa
e interrogativas na primeira estrofe.
4. Explicite que
conceito de poeta está expresso na primeira estrofe.
5. Refira o que se pretende significar com os símbolos “colmeia” e “corcel”.
6. De que precisa a
Pátria?
Cenários de
resposta:
1. Os
vocábulos ligados à navegação marítima - rumo, rosa-dos-ventos, brumoso, nitidez, gávea, Camões, epopeia,
praia do Ocidente – dão conta do estado anti-heroico e sem rumo que se
vivia em Portugal, no pós-25 de abril de 1974.
2. O poeta explicita tristemente a dor, a amargura e
desalento de o país não estar bem.
3. A exclamação inicial dá conta da sua perplexidade
perante o estado de crise, decadência e indefinição do país, no pós-25 de abril. Por esta razão, o
sujeito poético interroga-se sobre o rumo que Portugal deverá seguir.
4. A tónica de desalento faz com que Torga acredite mais na
Literatura do que na sua literatura (“minha voz parada”). No texto, o sujeito
poético menciona o poeta-adivinho, aquele que é clarividente (que “veja com
nitidez”) num país decadente, em estado de insanidade (“loucura”). Portanto,
temos um poeta empenhado civicamente, que tem uma missão a cumprir na inversão
da situação que o preocupa.
5. Colmeia pode
ser entendida como referência ao povo trabalhador; corcel, por sua
vez, será o povo lutador.
6. Segundo a leitura do poema, a Pátria precisaria, por exemplo, de ser revitalizada através dos valores de trabalho e de luta associados ao povo.
Nota: sabemos
que em 1974, no
As malhas identitárias tecidas pela
História
A revolução de Abril semeou inicialmente algumas
breves ilusões em Torga (1999: 1297) mas depois diversos aspetos desencadearam
a desilusão, a sensação de que os ideias de liberdade e igualdade pelos quais
lutou foram traídos, através do seu pungente “lamento”: ”Pátria sem rumo, minha
voz parada / Diante do futuro! / Em que rosa-dos-ventos há um caminho /
Português?// […] Ah, meu povo traído, / Mansa colmeia / A que ninguém colhe o
mel!.../ Ah, meu pobre corcel/ […] A choutar nesta praia do Ocidente”
(1999:1311).
Neste caso, é com a voz da pátria que ninguém ouve que
o poeta se identifica, perante a perspetiva de um futuro incerto e nebuloso
face à inércia de um povo, incapaz de encontrar o caminho certo para
desenvolver o país, como foi feito pelos antepassados. Por conseguinte, os
portugueses, essa “mansa colmeia”, parecem condenados à mediocridade e ao
abandono na cauda da Europa.
O diarista revela-nos a sua preocupação com a
instabilidade do país, com a pobreza cultural, agravada pelo longo período
ditatorial e pela inércia dos governantes que, de modo demagógico, prometem
melhorar a situação, sem que tal suceda.
A mesma nostalgia e preocupação habitam o poema
“Pátria”, escrito a 28/4/1977, que esboça o retrato do país, ao longo de oito
séculos de existência, exaltando-lhe os êxitos e constatando o desmoronar do
império:
Foste um mundo no mundo, / E és agora / O resto que de
ti / Já não posso perder: / A terra, o mar e o céu / Que todo eu / Sei
conhecer. // Foste um sonho redondo, / E és agora / Um palmo de amargura /
Retornada. / Amargura que em mim / Também nunca tem fim, / Por ter sido comigo
baptizada. // Foste um destino aberto, / E és agora / Um destino fechado. / Destino
igual ao meu, amortalhado / Nesta luz de incerteza / E de certeza / Que vem do
sol presente e do passado. (1999:1335).
Neste
caso, a aliança entre a pátria e o poeta é de novo evidente, já que em ambos
habita a amargura, uma espécie de antinomia entre um passado glorioso e um
presente decadente e, além do mais, partilham o mesmo “destino amortalhado”. A
mesma ideia de uma condenação eminente espelha-se, um mês depois, ao desabafar:
“Á medida que o tempo passa mais agónicas são as horas. A saúde piora, a pátria
desintegra-se, a solidão aumenta” (1999:1336).
Do ponto de vista cultural, constata-se a crítica à
perda da autenticidade, à imitação do estrangeiro, sendo condenado na literatura
o francesismo e a imitação de outros modelos estrangeiros. Além disso, essa
tendência, paralela à mediocridade reflete-se também na arquitetura e em todas
as artes em geral.
Por isso, inquieta-o a perda de genuinidade e a
descaracterização que afetam algumas paisagens que a importação de modas
estrangeiras adultera, substituindo a arquitetura rural tradicional. Tal facto
é visível numa anotação datada de 22/12/1975, onde afirma que não resistimos à
avalanche emigratória devido à falta de casticismo, segurança anímica e
“imunidade cultural”, por isso “degradados na própria inocência, somos hoje um
mostruário de tintas e a vergonha dos olhos” (1999:1314).
Por outro lado, num registo datado de 30/5/1982, Torga
refere a proliferação de grupos culturais pelo país, que parecem norteados por
uma certa ânsia de procurar as raízes. Todavia, este interesse, segundo o
autor, reduz-se a um ilusório renascimento, visto que: “Perdido o sentido da
História, toda a reidentificação coletiva não passa de um tropismo obstinado da
memória” (1999:1461).
Por seu turno, o diarista revela alguma preocupação e
desconfiança devido à entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia,
receando que o nosso país, como refere em 1991: “receba diariamente ordens
alheias de cultura e cultivo, e seja obrigatoriamente transformado num
eucaliptal” (1999:1718). É, então, ainda na sequência desta preocupação que o
autor se opõe à regionalização que, segundo ele, provocaria uma desintegração
da identidade nacional, mutilando-a. (1999:1722-1731).
É novamente o receio da perda da identidade, da
liberdade, da individualidade histórica e cultural que emerge, quando o autor
ergue a sua voz contra o tratado de Maastricht, afirmando:
Tenho por certo que Maastricht há-se ser uma nódoa
indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história,
ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre
usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa-nova das regras
comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. (1999:1740)
Esta
posição é ainda reiterada no discurso de agradecimento do prémio “Figura do
Ano” (8/7/92), onde considera Maastricht como uma irresponsabilidade da Europa
e uma traição à nossa identidade (1999:1745); no discurso de agradecimento do
Prémio Montaigne (1999:1752) e também quando o Tratado entra em vigor (1999:1778).
A Europa é representada como um elemento cilindrador da nossa cultura e
identidade, transparecendo o receio da alienação económica e cultural, movida
pelos interesses económicos niveladores. Emerge a oposição entre um Portugal
vulnerável, subserviente, e a Europa poderosa e dominadora.
Neste último volume (o XVI), constatamos que as notas
motivadas pelas digressões ao ar livre, a desvendar novos horizontes, pelas
estradas de Portugal e do mundo, são radicalmente substituídas pelo cenário do
seu escritório. Condenado à imobilidade, Torga refugia-se numa mais profunda interioridade
e reflexividade, perspetivando o mundo em constante mudança, entre quatro
paredes. Porém, o seu interesse pelo exterior não diminui. Aliás, como já havia
escrito: “O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha
de papel onde escrevo” (1999:1280). E, nesta esteira, surge-nos um outro
conceito de “pátria” ainda não referido, e que ultrapassa a territorial. À
semelhança do que já preconizara Fernando Pessoa, também Torga considera como
sua pátria a Língua Portuguesa, como explicita numa passagem datada de
14/11/1966:
Pessoa sabia: a língua é uma pátria. A pátria dum
escritor, pelo menos. Pátria que não herda passivamente de qualquer
providencial Afonso Henriques, mas activa e penosamente constrói dia a dia,
unindo no tempo o seu corpo disperso. [….]
Sim, a língua é uma pátria, e como consola lembrá-lo em
certas horas! Enche o coração de paz a certeza de que nenhuma marginalidade
margina os cultores da palavra, centros geográficos da nação, queiram ou não os
imperadores do silêncio. (1999:1094-1095)
Deste
modo, o amor à terra portuguesa expande-se à língua, materializando-se neste Diário
através da escrita autêntica, mas depurada e, muito particularmente, da
poesia. Será pois esta a última “pátria” onde a identidade se projeta.
Nesta esteira, no Diário, a análise do “eu” não
se sobrepõe à análise da realidade circundante, ambas se fundem e se
interpenetram. Isto porque a escrita de Torga, como acto primordial, ontológico
que é, germina nas fragas profundas do seu ser, autêntica e única (pois quanto
mais autêntica, mais universal). O seu vasto conhecimento da terra, da cultura
da História, da literatura nacional e mundial é apenas um “meio” e nunca um
fim.
Gago, Dora Nunes. “Avivo no teu rosto, o rosto que me deste”: espelhos da
identidade nacional no Diário de Miguel Torga. Moderna Sprak, Upsala,
Sweden 106(1).2012. pp. 65-84.
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também gostar de:
- “A poética torguiana”,
Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia,
09-08-2013
- “A Criação do Mundo (1937-1981),
Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de
apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
CARREIRO,
José. “Lamento (Pátria sem rumo), Miguel Torga”. Portugal, Folha de
Poesia, 26-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/lamento-patria-sem-rumo-miguel-torga.html
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