Miguel Torga, Arquivo RTP, 1995-01-17 https://arquivos.rtp.pt/conteudos/biografia-do-escritor-miguel-torga/ |
VISITA
Fui ver o mar.
Homem de polo a polo, vou
De vez em quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão1 que sou.
Da penedia triste
Pus-me a olhar aquele fundo
Dentro do qual existe
O coração do mundo.
E vi, horas a fio,
A sua angústia ser
Uma espécie de rio
Que não sabe correr.
Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª
ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999
___________
1
Marão: serra do Norte de Portugal.
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento
dos seguintes tópicos:
-
traços caracterizadores do sujeito poético;
-
importância das referências ao ato de ver;
-
aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;
-
valor simbólico de «mar»;
[- inserção do poema
«Visita» no universo poético de Miguel Torga.]
Explicitação
de cenários de resposta
Traços
caracterizadores do sujeito poético
O sujeito poético
é:
-
marcado pelas imagens da sua «Visita» ao «mar»;
-
consciente da sua condição integralmente humana, da sua pertença ao mundo como
um todo («Homem de polo a polo»);
-
definido pela relação com a montanha («este Marão que sou»), mas também
desejoso de se «enraizar» na água do mar;
-
dotado da capacidade de decifrar o sentido oculto das coisas, refletindo sobre
a condição humana (cf. 2.ª e 3.ª estrofes);
-
contemplativo e melancólico;
-
…
Importância das
referências ao ato de ver
A presença
recorrente, no poema, de referências ao ato de ver (cf. vv. 1, 2-3, 6 e 9)
evidencia a centralidade desta linha temática e a diversidade de modos de
realização do processo de visão. Assim:
-
«Fui ver o mar» denota o exercício de uma visão meramente percetiva;
-
«vou/ De vez em quando olhá-lo» dá conta da repetida necessidade de efetivar o
ato de ver o «mar»;
-
«Pus-me a olhar» implica uma atitude contemplativa, prolongada, indiciando, por
isso, a passagem progressiva da visão externa para uma visão interior;
-
«E vi, horas a fio» apresenta-se como a conclusão de um longo processo
meditativo, em que o «eu» acede à revelação (visão interior);
-
…
Aspetos formais
e recursos estilísticos relevantes
De entre os recursos
estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:
-
metáforas, umas marcando a dupla identidade do «eu» - a terra («este Marão que
sou» - v. 4) e o mar (onde o «eu» pretende enraizar-se)-, outras representando
a natureza do mar («aquele fundo» que encerra «0 coração do mundo», «rio/ Que
não sabe correr» - vv. 6, 8 e 11-12);
-
personificação («penedia triste», «A sua angústia ser» - vv. 5 e 10), pondo em
evidência os sentimentos de tristeza e de «angústia» que a contemplação do
«mar» desperta no sujeito poético;
-
comparação («uma espécie de rio»), pela qual o conceito de «mar» se define em
função do de «rio» (logo, da serra a que este se liga);
-
imagem paradoxal («rio/ Que não sabe correr» - vv. 11-12), revelando a
perplexidade do homem da serra relativamente ao mar e figurando a própria
incapacidade humana;
-
…
Relativamente a aspetos
formais, temos, por exemplo:
-
regularidade estrófica (três quadras);
-
rima cruzada (ABAB / CDCD / EFEF);
-
oscilação da métrica, com exceção da terceira estrofe, a qual apresenta em
todos os versos seis silabas métricas;
-
…
Nota
- Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico
do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos,
englobando obrigatoriamente recursos estilísticos e aspetos formais.
Valor simbólico
de «mar»
O «mar» representa
simbolicamente:
-
um lugar de origem, quer enquanto espaço líquido de enraizamento do «eu»/
«Marão» («vou/[...] enraizar/ Em água este Marão que sou»), quer enquanto sede
do «coração do mundo»;
-
o enigma da existência humana («aquele fundo/ Dentro do qual existe/ O coração
do mundo»);
-
a angústia inerente à condição do homem («Uma espécie de rio/ Que não sabe
correr»);
- …
(Fonte: Exame
Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de
29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e
respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2001,
2ª fase)
Inserção do poema «Visita» no
universo poético de Miguel Torga:
- as imagens ligadas à terra;
- o tema da ânsia interior (desespero humanista da
incapacidade humana);
- a identificação com a terra onde nasceu e com a qual
mantém raízes (sentimento telúrico);
- a solidão, o isolamento.
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- “A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013
- “A Criação do Mundo (1937-1981),
Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de apoio ao
estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
CARREIRO,
José. “Visita: Fui ver o mar, Miguel Torga”. Portugal, Folha de
Poesia, 19-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/visita-fui-ver-o-mar-miguel-torga.html
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