segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Visita: Fui ver o mar, Miguel Torga


Despair (1869),  Jean-Joseph Perraud


VISITA

 

Fui ver o mar.

Homem de polo a polo, vou

De vez em quando olhá-lo, enraizar

Em água este Marão1 que sou.

 

Da penedia triste

Pus-me a olhar aquele fundo

Dentro do qual existe

O coração do mundo.

 

E vi, horas a fio,

A sua angústia ser

Uma espécie de rio

Que não sabe correr.

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999

___________

1 Marão: serra do Norte de Portugal.

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- traços caracterizadores do sujeito poético;

- importância das referências ao ato de ver;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- valor simbólico de «mar»;

[- inserção do poema «Visita» no universo poético de Miguel Torga.]

 

 

Explicitação de cenários de resposta

 

Traços caracterizadores do sujeito poético

O sujeito poético é:

- marcado pelas imagens da sua «Visita» ao «mar»;

- consciente da sua condição integralmente humana, da sua pertença ao mundo como um todo («Homem de polo a polo»);

- definido pela relação com a montanha («este Marão que sou»), mas também desejoso de se «enraizar» na água do mar;

- dotado da capacidade de decifrar o sentido oculto das coisas, refletindo sobre a condição humana (cf. 2.ª e 3.ª estrofes);

- contemplativo e melancólico;

- …

 

Importância das referências ao ato de ver

A presença recorrente, no poema, de referências ao ato de ver (cf. vv. 1, 2-3, 6 e 9) evidencia a centralidade desta linha temática e a diversidade de modos de realização do processo de visão. Assim:

- «Fui ver o mar» denota o exercício de uma visão meramente percetiva;

- «vou/ De vez em quando olhá-lo» dá conta da repetida necessidade de efetivar o ato de ver o «mar»;

- «Pus-me a olhar» implica uma atitude contemplativa, prolongada, indiciando, por isso, a passagem progressiva da visão externa para uma visão interior;

- «E vi, horas a fio» apresenta-se como a conclusão de um longo processo meditativo, em que o «eu» acede à revelação (visão interior);

- …

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:

- metáforas, umas marcando a dupla identidade do «eu» - a terra («este Marão que sou» - v. 4) e o mar (onde o «eu» pretende enraizar-se)-, outras representando a natureza do mar («aquele fundo» que encerra «0 coração do mundo», «rio/ Que não sabe correr» - vv. 6, 8 e 11-12);

- personificação («penedia triste», «A sua angústia ser» - vv. 5 e 10), pondo em evidência os sentimentos de tristeza e de «angústia» que a contemplação do «mar» desperta no sujeito poético;

- comparação («uma espécie de rio»), pela qual o conceito de «mar» se define em função do de «rio» (logo, da serra a que este se liga);

- imagem paradoxal («rio/ Que não sabe correr» - vv. 11-12), revelando a perplexidade do homem da serra relativamente ao mar e figurando a própria incapacidade humana;

- …

 

Relativamente a aspetos formais, temos, por exemplo:

- regularidade estrófica (três quadras);

- rima cruzada (ABAB / CDCD / EFEF);

- oscilação da métrica, com exceção da terceira estrofe, a qual apresenta em todos os versos seis silabas métricas;

- …

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Valor simbólico de «mar»

O «mar» representa simbolicamente:

- um lugar de origem, quer enquanto espaço líquido de enraizamento do «eu»/ «Marão» («vou/[...] enraizar/ Em água este Marão que sou»), quer enquanto sede do «coração do mundo»;

- o enigma da existência humana («aquele fundo/ Dentro do qual existe/ O coração do mundo»);

- a angústia inerente à condição do homem («Uma espécie de rio/ Que não sabe correr»);

- …

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2001, 2ª fase)

 

Inserção do poema «Visita» no universo poético de Miguel Torga:

- as imagens ligadas à terra;

- o tema da ânsia interior (desespero humanista da incapacidade humana);

- a identificação com a terra onde nasceu e com a qual mantém raízes (sentimento telúrico);

- a solidão, o isolamento.

 

Miguel Torga, Arquivo RTP, 1995-01-17
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/biografia-do-escritor-miguel-torga/

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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 



CARREIRO, José. “Visita: Fui ver o mar, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 19-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/visita-fui-ver-o-mar-miguel-torga.html



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