Luís Lima Barreto diz o poema "Retrato de uma princesa desconhecida", de Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro/disco Ao longe os barcos de flores, poesia portuguesa do século XX, escolhida por Gastão Cruz. Publicado, por Assírio e Alvim, Lisboa (2004). Na imagem: "Princesa Santa Joana", pintura atribuída a Nuno Gonçalves.
Retrato de uma princesa desconhecida
Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
Sophia de
Mello Breyner Andresen
DUAL, 1.ª ed.,
1972, Lisboa, Moraes Editores • 2.ª ed., 1977, Lisboa, Moraes Editores • 3.ª
ed., 1986, Lisboa, Edições Salamandra • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa,
Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014,
prefácio de Eduardo Lourenço
***
No poema intitulado Retrato de uma Princesa Desconhecida o tema da escravidão não é ambíguo porque há uma nítida oposição entre o esplendor da princesa retratada e a paciência da mão de obra escrava. Além de oposição, há uma relação de necessidade, porque nunca uma princesa pode ser tão bela e tão isenta de sofrimento e de desgaste se não se realiza o trabalho exaustivo e repetido dos escravos que sustentam uma sociedade hierarquizada, na qual as classes privilegiadas vivem de ócio e de requinte.
“Sophia de
Mello Breyner: uma leitura de Grades”, Helena Conceição Langrouva.
Brotéria/Cultura e Informação, 114 (2), 1982. Reprodução do artigo disponível
em https://triplov.com/sophia/grades.html
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[No poema “Retrato de uma princesa desconhecida”,] o recurso à repetição do advérbio de intensidade “tão” e a sonoridade sibilante do [s] nas “sucessivas gerações de escravos” e nas “sucessivas gerações de príncipes” (grifos nossos) demarcam, formalmente, a continuidade temporal dessa beleza “solitária exilada” que só existe a um custo tão alto que faz dela inutilidade absurda em um mundo de injustiças sociais, onde escravos de “corpo dobrado” se veem submetidos a príncipes “ávidos cruéis e fraudulentos” (já nesse verso, a sonoridade aberta marca o desgosto com os príncipes). Ademais, todo o paralelismo dos versos iniciais enfatiza a finalidade de tanto sofrimento: beleza “perfeita”, mas – em contrapartida imprevista – vã, que não é beleza alcançada pela naturalidade da plenitude do real. E é uma princesa desconhecida porque, feito conto de fadas, sintetiza qualquer princesa e qualquer beleza dessa mesma ordem da injustiça. Uma beleza que não recebe sequer apreciação, já que tão alheia dos homens que sustentaram sua existência, é uma beleza que apenas rompe com o real e se configura como beleza dividida.
O testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen:
aproximações entre ética e estética, Samuel Pereira. Goiânia, UFG-FL,
2022
Questionário
sobre a leitura do poema “Retrato de uma princesa desconhecida”, de Sophia
Andresen.
1. Refira dois dos efeitos de
sentido gerados pela oposição entre «espinha […] tão direita» (verso 4) e
«corpo dobrado» (verso 8).
2. Explicite a relação que se
estabelece entre as «sucessivas gerações de escravos» (verso 7) e as
«sucessivas gerações de príncipes» (verso 9).
3. Interprete o verso 12:
«Foi um imenso desperdiçar de gente».
4. Analise o valor expressivo
da anáfora presente nos versos 1 a 4 e retomada no verso 13.
Cenários de
resposta:
1. A oposição entre «espinha [...] tão
direita» (v. 4) e «corpo dobrado» (v. 8) produz os seguintes efeitos de
sentido:
−
assinala, simbolicamente, o contraste entre a princesa e os escravos;
−
sublinha a elegância e a altivez da princesa, face ao corpo dos escravos
dobrado pela obediência e pela resignação;
−
sugere características associadas, respetivamente, aos privilégios da
nobreza e à dura vida de trabalho dos escravos.
2. Entre as «sucessivas gerações de
escravos» (v. 7) e as «sucessivas gerações de príncipes» (v. 9), existe uma
relação de:
−
poder, pois os escravos, ao longo do tempo, servem os príncipes;
−
oposição, evidenciada pelo contraste entre a avidez e a crueldade dos
príncipes e a paciente submissão dos escravos;
−
analogia, sugerida pela associação entre o adjetivo «grossas» (v. 8),
que qualifica as mãos dos escravos, e o adjetivo «grosseiros» (v. 10), que
define o carácter dos príncipes.
3. O verso 12, «Foi um imenso
desperdiçar de gente», sugere que:
−
o número de escravos que contribuíram para que a princesa fosse «aquela
perfeição» (v. 13) foi excessivo («imenso»);
−
as vidas de «sucessivas gerações de escravos» (v. 7) foram consumidas
(«desperdiçar de gente»);
−
«aquela perfeição» (v. 13) da princesa resultou de um esforço que se
revela inútil («Solitária exilada sem destino» – v. 14).
4. A anáfora presente nos versos 1 a 4
e retomada no verso 13 tem o seguinte valor expressivo:
−
contribui para acentuar a cadência rítmica dos versos 1 a 4;
−
introduz uma síntese, no verso 13, dos traços da princesa enumerados na
primeira estrofe;
−
evidencia a finalidade de tantos sacrifícios das sucessivas gerações de
escravos;
−
sublinha que as características da princesa são o resultado de um longo
processo histórico e social.
(Fonte: Exame Final
Nacional de Literatura Portuguesa Prova 734 [e respetivos critérios de classificação]| 2.ª Fase | Ensino Secundário |
2020 11.º Ano de Escolaridade Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho)
Poderá
também gostar de:
CARREIRO, José. “Retrato
de uma princesa desconhecida, Sophia Andresen”. Portugal, Folha de
Poesia, 15-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/retrato-de-uma-princesa-desconhecida.html
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