quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Retrato de uma princesa desconhecida, Sophia Andresen

Luís Lima Barreto diz o poema "Retrato de uma princesa desconhecida", de Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro/disco Ao longe os barcos de flores, poesia portuguesa do século XX, escolhida por Gastão Cruz. Publicado, por Assírio e Alvim, Lisboa (2004). Na imagem: "Princesa Santa Joana", pintura atribuída a Nuno Gonçalves.


Retrato de uma princesa desconhecida

 

Para que ela tivesse um pescoço tão fino

Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule

Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos

Para que a sua espinha fosse tão direita

E ela usasse a cabeça tão erguida

Com uma tão simples claridade sobre a testa

Foram necessárias sucessivas gerações de escravos

De corpo dobrado e grossas mãos pacientes

Servindo sucessivas gerações de príncipes

Ainda um pouco toscos e grosseiros

Ávidos cruéis e fraudulentos

 

Foi um imenso desperdiçar de gente

Para que ela fosse aquela perfeição

Solitária exilada sem destino

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

DUAL, 1.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 2.ª ed., 1977, Lisboa, Moraes Editores • 3.ª ed., 1986, Lisboa, Edições Salamandra • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Eduardo Lourenço

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No poema intitulado Retrato de uma Princesa Desconhecida o tema da escravidão não é ambíguo porque há uma nítida oposição entre o esplendor da princesa retratada e a paciência da mão de obra escrava. Além de oposição, há uma relação de necessidade, porque nunca uma princesa pode ser tão bela e tão isenta de sofrimento e de desgaste se não se realiza o trabalho exaustivo e repetido dos escravos que sustentam uma sociedade hierarquizada, na qual as classes privilegiadas vivem de ócio e de requinte. 

“Sophia de Mello Breyner: uma leitura de Grades”, Helena Conceição Langrouva. Brotéria/Cultura e Informação, 114 (2), 1982. Reprodução do artigo disponível em https://triplov.com/sophia/grades.html

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[No poema “Retrato de uma princesa desconhecida”,] o recurso à repetição do advérbio de intensidade “tão” e a sonoridade sibilante do [s] nas “sucessivas gerações de escravos” e nas “sucessivas gerações de príncipes” (grifos nossos) demarcam, formalmente, a continuidade temporal dessa beleza “solitária exilada” que só existe a um custo tão alto que faz dela inutilidade absurda em um mundo de injustiças sociais, onde escravos de “corpo dobrado” se veem submetidos a príncipes “ávidos cruéis e fraudulentos” (já nesse verso, a sonoridade aberta marca o desgosto com os príncipes). Ademais, todo o paralelismo dos versos iniciais enfatiza a finalidade de tanto sofrimento: beleza “perfeita”, mas – em contrapartida imprevista – vã, que não é beleza alcançada pela naturalidade da plenitude do real. E é uma princesa desconhecida porque, feito conto de fadas, sintetiza qualquer princesa e qualquer beleza dessa mesma ordem da injustiça. Uma beleza que não recebe sequer apreciação, já que tão alheia dos homens que sustentaram sua existência, é uma beleza que apenas rompe com o real e se configura como beleza dividida. 

O testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aproximações entre ética e estética, Samuel Pereira. Goiânia, UFG-FL, 2022



Questionário sobre a leitura do poema “Retrato de uma princesa desconhecida”, de Sophia Andresen.

1. Refira dois dos efeitos de sentido gerados pela oposição entre «espinha […] tão direita» (verso 4) e «corpo dobrado» (verso 8).

2. Explicite a relação que se estabelece entre as «sucessivas gerações de escravos» (verso 7) e as «sucessivas gerações de príncipes» (verso 9).

3. Interprete o verso 12: «Foi um imenso desperdiçar de gente».

4. Analise o valor expressivo da anáfora presente nos versos 1 a 4 e retomada no verso 13.

 

Cenários de resposta:

1. A oposição entre «espinha [...] tão direita» (v. 4) e «corpo dobrado» (v. 8) produz os seguintes efeitos de sentido:

assinala, simbolicamente, o contraste entre a princesa e os escravos;

sublinha a elegância e a altivez da princesa, face ao corpo dos escravos dobrado pela obediência e pela resignação;

sugere características associadas, respetivamente, aos privilégios da nobreza e à dura vida de trabalho dos escravos.

 

2. Entre as «sucessivas gerações de escravos» (v. 7) e as «sucessivas gerações de príncipes» (v. 9), existe uma relação de:

poder, pois os escravos, ao longo do tempo, servem os príncipes;

oposição, evidenciada pelo contraste entre a avidez e a crueldade dos príncipes e a paciente submissão dos escravos;

analogia, sugerida pela associação entre o adjetivo «grossas» (v. 8), que qualifica as mãos dos escravos, e o adjetivo «grosseiros» (v. 10), que define o carácter dos príncipes.

 

3. O verso 12, «Foi um imenso desperdiçar de gente», sugere que:

o número de escravos que contribuíram para que a princesa fosse «aquela perfeição» (v. 13) foi excessivo («imenso»);

as vidas de «sucessivas gerações de escravos» (v. 7) foram consumidas («desperdiçar de gente»);

«aquela perfeição» (v. 13) da princesa resultou de um esforço que se revela inútil («Solitária exilada sem destino» – v. 14).

 

4. A anáfora presente nos versos 1 a 4 e retomada no verso 13 tem o seguinte valor expressivo:

contribui para acentuar a cadência rítmica dos versos 1 a 4;

introduz uma síntese, no verso 13, dos traços da princesa enumerados na primeira estrofe;

evidencia a finalidade de tantos sacrifícios das sucessivas gerações de escravos;

sublinha que as características da princesa são o resultado de um longo processo histórico e social.

 

(Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa Prova 734 [e respetivos critérios de classificação]| 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2020 11.º Ano de Escolaridade Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho)

 

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CARREIRO, José. “Retrato de uma princesa desconhecida, Sophia Andresen”. Portugal, Folha de Poesia, 15-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/retrato-de-uma-princesa-desconhecida.html


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