quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

tal como catedrais, Cesariny




No livro Manual de prestidigitação, Mário Cesariny iniciou sua busca pela “definição de uma Arte poética” (1986, p. 306), conforme anotou Maria de Fátima Marinho Saraiva. Como anuncia o título da publicação, Cesariny produz um “manual” de ilusionismo, um instrumento que permitiria ao leitor acessar e reproduzir o processo de criação poética, o qual depende do trabalho manual, de digitação, comparado à ilusão, ao engano e ao fascínio. Nesse livro, encontram-se diversos poemas que fazem referência direta ao universo teatral e que revelam a relação entre poesia e espetáculo na obra do surrealista. Em diversas composições, como “cena para final de um terceiro acto”, “o prestidigitador organiza um espetáculo”, ou “coro dos maus oficiais de serviço na corte de epaminondas, imperador”, somos conduzidos por pequenos fragmentos de um espetáculo de ilusionismo no qual as palavras enunciadas adquirem um poder performático e genesíaco.
No “manual” que nos é apresentado, concedendo ao leitor o acesso a seus “truques”, algo que jamais é revelado por um prestidigitador, o autor vê-se desabrigado de sua posição de proprietário da obra, detentor de sentido e verdade plenos. No poema “tal como catedrais”, com o “deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores”, constata-se que “uma obra está completa”. A afirmação é válida tanto como uma referência à sua própria poesia quanto como uma declaração de que ele também “deita a língua de fora” a outros autores. Assim, o desejo do “Autor” de reencontrar sua Obra no mundo mostra-se uma “esperança cínica e conservadora”, uma vez que “outros obreiros” dela se apropriarão para construírem suas próprias obras.

tal como catedrais

Consumada a Obra fica o esqueleto da mesma
e as inerentes avarias centrais
entre céu e terra à espera do descanso
Consumada a Obra ficamos          tu e eu
pensando frases como:                  como é possível?
                                                            o que foi que fizemos?
ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
Onde está a camisola?

Sim realmente
onde está a camisola?    Ola
palavra espanhola que quer dizer-nos: Onda
coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras tantos anos
não quem possa dar descanso a estas senhoras?

O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia
frase entre todas triste, a atentar na significação

Sim consumada a Obra sobram rimas
pois ela é independente do obreiro
no deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores
é que se se uma obra está completa

Fiquemos tristes       abraça-me       nós fizemos tão pouco
e ela vai pelo mar fora cavando a sua avaria!

(O mundo é redondo
talvez a reencontremos...

Esperança cínica e conservadora...)

TU MEU ÚNICO AMOR MEU AMOR
MEU MÚLTIPLO AMOR MEU!

Sim, sim, de facto
Efectivamente
mas o dia arrefece
e pálidos pálidos estamos

(CESARINY, 2008, pp. 150-151).

Começo por um poema que retrata uma cena final, localizada num momento posterior à “consumação” de uma “Obra”. Exaurido e “pálido”, o poeta, arquiteto ou engenheiro dessa empreitada foi abandonado por sua criação, ser “independente do obreiro”. Lançando sobre a atividade terminada um olhar retroativo, o sujeito do poema interroga um “tu” com o qual teria “consumado a obra”: “o que foi que fizemos?”. O encontro de “tu e eu” como ponto de partida para a criação da Obra mostra que esse processo não se de forma solitária, pelo contrário. Equivale a um encontro erótico que se confirma também amoroso na penúltima estrofe. Logo, a consumação da Obra é a de um matrimônio, encontro fértil e criativo entre “tu e eu”: amado e amador, mas também o lido e o escrito, leitor e escritor. O momento dessa conjunção é a cena que não vemos no poema. O sujeito tampouco parece saber como se deu o ato, como percebemos na interrogação “como é possível?”, ou ainda na constatação de que “fizemos tão pouco”.
Tal afirmação reforça a ideia exposta de forma simplória na abertura do poema de que “[c]onsumada a Obra fica o esqueleto da mesma / e as inerentes avarias centrais”. Apoiando-nos na comparação arquitetónica expressa pelo título, podemos pensar como essa afirmação inicial vai na contramão do que se espera de uma obra concluída: paredes, janelas, teto, telhados e portas bem traçados e executados não o esqueleto da obra ou uma declaração do obreiro a respeito das “inerentes avarias centrais” da construção. No entanto, a obra de Cesariny aceita sua condição de terminada, não de concluída. Ao admitir que o que fica desta é “o esqueleto da mesma”, reconhece que o único traço de autoria que resta é o projeto inicial sobre o qual se ergue. Da mesma forma, confessar a existência de “inerentes avarias centrais” é aceitar a iminência da ruína daquilo que propõe, entregando a obra à própria sorte.
A separação entre obreiro e Obra se reflete no isolamento dos construtores “tu e eu” frente a ela, algo que se realiza visualmente no poema, percebido pelo deslocamento das referências aos dois à direita nos quarto, quinto e sexto versos da primeira estrofe do poema:

Consumada a Obra ficamos       tu e eu
pensando frases como:       como é possível?
                                                 o que foi que fizemos?
(CESARINY, 2008, p. 150).

A partir do oitavo verso “Onde está a camisola?” –, uma mudança no alinhamento dos versos do poema, com um recuo progressivo à esquerda, indicando a introdução da reflexão antes reservada a um espaço circunscrito ao “tu e eu” como um caminho de desenvolvimento do poema como um todo, algo que é reforçado, ainda, pela repetição da mesma interrogação, porém realocada à posição convencional do verso:

ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
            Onde está a camisola?

Sim realmente
Onde está a camisola?    Ola
(CESARINY, 2008, p. 150).

Como é possível perceber, o poema evoca diferentes vozes seja pela inserção de pequenos fragmentos discursivos que rompem a progressão temática no interior de cada estrofe, seja pelos ecos de citações provenientes da cultura portuguesa, como veremos adiante. Tal multiplicidade de discursos com a qual o poema é tecido reflete a própria discussão nele desenvolvida a respeito da condição das palavras, atravessando “fronteiras há tantos anos”, revelando uma consciência acerca de seu tempo histórico e da historicidade do discurso poético. As citações são retiradas tanto de seu cânone literário como é o caso do poema de Fernando Pessoa “Tenho das estrelas” –, quanto da tradição popular – representada pelo trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia” ou, ainda, pelo apelo ao imaginário marítimo português, percebido na referência ao lugar de deriva das obras (“e ela vai pelo mar fora cavando sua avaria”) e na comparação das obras com navios. Como observaremos ao longo deste trabalho, a metáfora da obra, ou do poema, como navio ou jangada no mar é recorrente no trabalho de Mário Cesariny, encontrando-se nos poemas “O navio de espelhos”, de A cidade queimada (1965), “Pena capital”, de Pena capital (1957), poema que analisaremos no terceiro capítulo, e no poema II do Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano (1952). Da mesma forma, podemos observar a curiosa escolha de palavras de Cesariny para se referir à sua adesão ao surrealismo: “[é]ramos umas pessoas zangadas no meio do mar alto e havia um naufrágio nós escolhemos a mesma jangada” (CESARINY apud SARAIVA, 1986, p. 66).

Em ABC of Reading, Ezra Pound desenvolve a ideia de que a poesia seria “a mais concentrada forma de expressão verbal” (POUND, 1991, p. 36, tradução minha)7, querendo com isto dizer que as palavras dos poemas estão em um estado limite de saturação de significados. Nesse sentido, afirma que

O bom escritor escolhe suas palavras por seu ‘significado’, mas esse significado não é algo tão predeterminado e limitado como os movimentos do rei ou do peão sobre um tabuleiro de xadrez. O significado surge com raízes, com associações, com o como e quando a palavra é comumente utilizada, ou onde foi utilizada brilhante ou memoravelmente (POUND, 1991, p. 36, grifo meu)8.

Podemos perceber como o poema de Cesariny acima parece dialogar com o conceito de Pound a respeito da saturação da linguagem de diversas formas, tanto no tocante à temática do poema quanto em sua própria estrutura. Retomando os conceitos de “esqueleto” e de “inerentes avarias”, podemos nos aproximar da tese de Pound pelo viés do leitor, alguém que deve ser capaz de construir, sobre esse esqueleto, um acabamento, bem como remendar e reparar as “avarias centrais”. Enquanto leitores de sua obra, cabe a nós um esforço interpretativo e construtivo sobre o esqueleto da Obra sobre a qual fala o poeta. Como afirma Pound, certas palavras “provavelmente lançarão sobre a tela mental do leitor a imagem de uma década passada” (POUND, 1991, p. 37)9 e, continua, “são infinitas as qualidades que algumas pessoas conseguem associar a uma dada palavra ou tipo de palavra, e a maioria delas varia de indivíduo para indivíduo” (POUND, 1991, p. 37)10. Cesariny faz o mesmo enquanto herdeiro de uma tradição que se inscreve também na sua língua. Nesse sentido, falar é citar, uma vez que as palavras, coitadas, estão “a atravessar fronteiras tantos anos”.
No entanto, é inerente ao trabalho poético a escolha das palavras, como bem lembra Pound. Assim, podemos perceber como algumas referências marcantes convocadas em “tal como catedrais” emergem como um trabalho de citação, que deve ser pensado enquanto tal, ou seja, enquanto processo e ato, como o pensou, também, Antoine Compagnon. Em O trabalho da citação (1996), Compagnon aborda o conceito de working paper”, ou “trabalho em processo”, afirmando que é preciso distinguir o sentido da citação do ato da citação. O crítico afirma que “o sentido vem por acréscimo, ele é o suplemento do trabalho; [é] preciso distingui-lo do ato e da produção para não ignorar estes últimos, para não confundir o sentido da citação (de enunciado) com o ato de citar (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p. 46). No poema de Cesariny, podemos perceber como o esforço de apagamento e rasura das vozes que emergem no dizer do sujeito poético transformam-se na própria “Obra”, uma vez que, ao mesmo tempo que causam o apagamento daquela que se diz consumada no início do poema, criam uma nova cena, a de um momento posterior à escrita, fazendo com que a “Obra” sobre a qual se fala simultaneamente seja e não seja a obra que nos fala.
Se, para Compagnon, “[o] texto, o fenômeno ou o trabalho de citação, é o produto da força pelo deslocamento” (1996, p. 48), torna-se necessário pensarmos as citações do poema de Cesariny a partir dos processos de deslocamento e desapropriação, a começar pelo jogo com o poema de Fernando Pessoa “Tenho das estrelas”. Nesse sentido, podemos perceber como  esses  processos  sobre  os  discursos  canônicos  se  dão  através  da  construção  do argumento defendido por Cesariny a respeito do cansaço das palavras a partir da transformação de versos do poema de Pessoa, reproduzido abaixo11, nos versos cesarinyanos “coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras tanto ano / não quem possa dar descanso a estas senhoras?”.

Tenho das estrelas
Luzindo tanto tempo,
tanto tempo...
Tenho delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são.
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
(PESSOA, 1985, pp. 148-149).

O poema acima, tal qual o de Mário Cesariny, parece relacionar aquilo que é dado como eterno e imutável ao cansaço e à fadiga consequentes da travessia temporal, ao mesmo tempo que apresenta como alternativa à existência “para as coisas que são” uma espécie de redenção. Nesse sentido, constitui uma crítica a respeito da longevidade e eternidade das estrelas quando comparadas à sua própria condição mortal, percebida pelo “dó” que sente dos astros. O sentimento de pena o podemos sentir através da constatação da diferença da nossa própria condição quando comparada à do outro: podemos “ter dó” na medida em que nos distanciamos e diferenciamos do outro. Encontramos, nos poemas apresentados, a “crítica à eternidade em que consiste essencialmente a modernidade” (2013, p. 35), como resume Octavio Paz, uma vez que afirmam sua permanência e sobrevivência através da transformação, como percebemos principalmente no poema de Mário Cesariny.
Parece haver, assim, uma manifestação da consciência histórica dos poetas, representada pelo desejo de pôr “uma outra espécie de fim”, percebido não como uma morte, mas como uma atribuição de nova finalidade às estrelas que brilham desde tempos imemoriais. Ao apropriar-se do poema de Fernando Pessoa, Cesariny mostra que o brilhar das estrelas não é por ele percebido como estático, apesar de apontar a permanência dos astros, agora “palavras”. Tal como catedrais e obras, as palavras e as estrelas, apesar de longevas e perenes, estão expostas aos efeitos do tempo, ao desgaste físico e a sucessivas transformações. Cabe àqueles “bons poetas” sobre os quais fala Pound escolher conscientemente as palavras que foram usadas “brilhante ou memoravelmente”, cujos significados surgem “com raízes, com associações”. Por esse motivo, Cesariny opera a troca entre “estrelas” e “palavras”, apropriando-se do poema de Pessoa e transformando a metáfora por demais “carregada” pela fala daquele poeta. É como se o surrealista percebesse que o brilho que emana das estrelas atravessa distâncias temporais e espaciais, ou que elas “vão pelo mar fora cavando sua avaria”, e, mesmo após a sua morte, continua a chegar até o nosso tempo e olhar. Assim, deslocar o discurso pessoano equivale a apontar para as próprias estrelas um espelho de circo, que distorcesse a luz que delas mesmas emana. A partir dessa nova luz, poderíamos perceber as estrelas de outra forma.
Assim, “tal como catedrais” desfaz a metáfora da longevidade das estrelas e toca direta e literalmente no problema da saturação da linguagem, transformando “estrelas” em “palavras”. Ao citar Fernando Pessoa para abordar sua travessia temporal, Cesariny reforça a ideia da transitoriedade inscrita em “Tenho das estrelas”. A transformação de “estrelas” em “palavras”, bem como a substituição do “dó” sentido pelo eu-lírico pessoano pela expressão “coitadas das palavras”, a qual ecoa o irônico “Coitado do Álvaro de Campos”12, provocam certo efeito humorístico no poema de Cesariny para além da aparente melancolia evocada pelo poema pessoano. O deslocamento da poética de Pessoa e a apropriação radical dos elementos de sua (ou de qualquer outra) poética ressoam, ainda, na afirmação de que a obra “é independente do obreiro”.
O poeta que consuma a obra, em “tal como catedrais”, reconhece como “esperança cínica e conservadora” a pretensão de reencontrá-la no mundo, uma vez que é na independência daquilo que constrói que se verifica sua completude. O reencontro com a Obra é impossível, pois as únicas coisas que dela restam após consumada seriam o esqueleto, ou o projeto inicial proposto pelo criador, e as “inerentes avarias centrais”. A partir daí, será tomada por outros “obreiros” que deitam “a língua de fora, no grande manguito aos Autores”, da mesma forma que Cesariny o fez frente à tradição que o constituiu, confirmando que a Obra mesmo quando consumada não está concluída fez-se “tão pouco”.
A censura de Cesariny sobre o poema de Pessoa implica um movimento complexo. Ao negar o metafórico “estrelas”, Cesariny atua sobre ele agora percebido de outra maneira pelos leitores de um e de outro e, além de introduzir em “tal como catedrais” a ideia de cansaço do que é eterno, como também se em “Tenho das estrelas”, indica o reconhecimento da transitoriedade de seu momento presente, que é uma “esperança cínica e conservadora” querer reencontrar a “sua” Obra no mundo, pois esta pode ser, como aconteceu com o poema de Pessoa, transformada por outro “obreiro”. Dessa forma, a experiência do presente não é consequência de uma cronologia linear que liga passado, presente e futuro, mas está fundamentalmente ligada a uma concepção moderna de transmissão da cultura. Como afirma Luciano Gatti,

[s]endo uma tarefa do presente constituir uma relação produtiva com o passado, a experiência não é assim um tempo pleno que se desenrola do passado ao futuro, formando uma continuidade. Ela é, isso sim, uma descontinuidade, uma atividade que tem que ser reiterada a cada momento, uma retomada que não ocorre automaticamente. Tal contato está sempre sujeito ao perigo e ao risco envolvidos no processo de transmissão da cultura (GATTI, 2009, p. 173).

Em Os filhos do barro (2013), Octavio Paz afirma que a modernidade é uma tradição, desenvolvendo a ideia de que a “ruptura”, marca da modernidade, tornou-se uma constante. Haveria, assim, um movimento recorrente de interrupção da tradição na modernidade e, por esse interminável movimento de ruptura, a modernidade ela mesma torna-se uma tradição – permanente negação de uma tradição que precede a ruptura que é. Nas palavras de Paz,

desde o princípio do século XIX fala-se da modernidade como uma tradição e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança [...]. A modernidade é uma tradição polémica que desaloja a tradição imperante, seja ela qual for; mas a desaloja para, no instante seguinte, ceder o lugar a outra tradição, que, por sua vez, é mais uma manifestação momentânea da atualidade (PAZ, 2013, p. 15).

O poema de Cesariny que se encontra acima traz ainda outros discursos tradicionais da cultura portuguesa e lusófona, como é o caso da alusão ao imaginário marítimo, introduzido na segunda estrofe. Feita de forma jocosa, a partir do destaque do significante “ola” dentro da palavra “camisola”, Cesariny mostra o quanto as palavras estão saturadas de significados, que surgem das mais inesperadas maneiras. A referência ao mar introduz no poema a reflexão crítica a respeito da historicidade do discurso poético, a qual conduzirá o desenvolvimento do tema do caminho inesperado seguido pela obra poética no mundo, independente do destino que lhe seu autor, ao seguir à deriva, “pelo mar fora cavando a sua avaria”. Ao abordá-lo de forma tão surpreendente e quase despropositada, Cesariny opera uma ruptura na relação que se tem com um dos pilares fundamentais da cultura portuguesa, inúmeras vezes revisitado e reelaborado por outros poetas e artistas do país. No texto “Adeus às armas” (2002), Jorge Fernandes da Silveira, refletindo acerca da impregnação em mais alto grau do imaginário marítimo, afirma que

[a] saturação que, ao longo dos séculos, foi-se inscrevendo na linguagem da Literatura Portuguesa voltada para o mar implica, hoje, a necessidade de uma viagem de reconquista da terra como paisagem e, portanto, como desejo de uma ficção que, enfrentando o “nó” do passado feito na água, movimente em novas empresas o imaginário português (SILVEIRA, 2002, p. 39).

Assim, a referência à tradição parece apontar o reconhecimento desse caráter “concentrado” de suas imagens e palavras-chave. A eleição do espaço marítimo como lugar da deriva das Obras é oportuna, ainda, ao trazer em si a metáfora da tradição ao mesmo tempo que aponta seu desgaste. Mar cultural, símbolo da tradição literária portuguesa aqui transfigurado em espaço por onde seguem as palavras, fatigadas, as “senhoras” a quem é preciso “dar descanso”.
Outro traço da tradição pode ser percebido pela inserção igualmente inesperada do trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia”, deslocado e transformado pelo discurso poético cesarinyano: “frase entre todas triste, a atentar na significação”. Ao apontar para a “significação” da frase, “entre todas triste”, o poeta põe em questão um caráter quase sempre ignorado dos trava-línguas, o sentido, uma vez que são expressões marcadas pelo caráter sonoro e performático, características materiais que se encontram fora do campo dos significados. Porém, ao ser efetivamente escrito no poema, deixa de ser percebido como uma frase cujo valor é puramente sonoro e humorístico, para ganhar o valor de significação, algo que podemos perceber como um traço profundamente irônico e essencialmente crítico da poesia de Cesariny. Nesse movimento de deslocamento do discurso que pertence quase exclusivamente ao campo material (sonoro e performático) para o abstrato (o dos significados), podemos perceber uma crítica a um lirismo exacerbado e a uma solenidade da poesia. Ao mesmo tempo, cria um novo trava-línguas para o leitor, através das repetições da consoante [t] e dos encontros consonantais [tr] ou [fr], o que produz dois efeitos: por um lado reforça a mistura entre os planos material aquele dos sons, da execução, ou da performance sonora e abstrato aquele dos significados –, por outro, ativa a memória de outro trava- línguas, ou seja, a memória cultural associada a “três pratos de trigo para três tigres tristes”, uma vez que se utiliza das mesmas consoantes e encontros consonantais dessa expressão, além de repetir o vocábulo “triste” em seu novo trava-línguas.

“tal como catedrais” explora, portanto, o deslocamento e a desapropriação dos discursos, algo que não é dado apenas no nível do “tema” do poema e de seu marcante caráter metapoético, mas se em sua própria estrutura, uma vez que Cesariny demonstra a partir do que escreve o processo de pilhagem da tradição empreendido também por ele. Na tentativa de definição de uma Arte poética, na escrita de um manual de prestidigitação, o autor instaura um “protocolo de leitura” (SCHOLES, 1991) com o qual pressupõe um trabalho por parte de seu interlocutor, reforçado ainda pelas expressões injuntivas “fiquemos tristes” e “abraça-me”. Nesse sentido, o “tu” interpelado pelo sujeito poético seríamos nós leitores, afetados por seu discurso. Se, para Paz, “o poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores” (1986, p. 227), o mesmo parece se verificar no projeto de definição de uma arte poética cesarinyana. Nela, os leitores surgimos como personagens fundamentais, convocados pelo sujeito poético a sermos seu “ÚNICO AMOR” e passarmos a “MÚLTIPLO AMOR”, o qual, na concepção surrealista, “assume um carácter de gnose” (CORREIA, 1973, p. 62).
No poema a ser analisado na próxima seção, veremos como a busca desse sujeito por um diálogo amoroso com o outro emerge como uma alternativa aos discursos dominantes, dado o contexto do Estado Novo e a cena literária neorrealista. Os últimos, frontalmente criticados por Cesariny, ao falar “‘em nome’ do povo e ‘para o povo’, nem do povo eram lidos nem curavam (ou podiam) (ou saberiam) dar-lhe textos capazes de ilustrar a palavra de ordem de Lénine: ‘Nada é bom demais para os operários.’” (CESARINY, 1985, p. 266). O poema a seguir não deixa de contemplar e movimentar certa gramática neorrealista, representada pelas imagens da “noite”, da “escuridão”, do “emparedamento” e das “muralhas”, conhecidas metáforas para designar o Estado Novo e o fascismo. Da mesma forma, veremos como Cesariny recorre à voz plural de um “nós” comumente utilizado por poetas neorrealistas como forma de cantar “em nome do povo e para o povo”. No entanto, o emparedamento em questão no poema de Cesariny parece tocar diretamente na necessidade do empreendimento de um trabalho poético de transformação da linguagem como forma de diálogo com o outro para resistência no mundo ou re-existência do mundo. No ensaio “Resistência da poesia resistência na poesia” (2012), Rosa Maria Martelo, a respeito do progressivo apagamento do pronome “nós” na poesia de Carlos de Oliveira, referindo-se também a um movimento perceptível nos trabalhos de outros poetas entre eles, Cesariny , aponta que uma passagem da

noção (neo-realista) de escrever ‘no lugar de’, dando voz aos que não a têm, para a noção (modernista) de escrever ‘na intenção de’ [...]. Escrever ‘na intenção de’ era partir do princípio de a poesia ser, em si mesma, um acto de violência e de resistência; era valorizar a condição ontológica propriamente textual e material da escrita e a correlativa emergência de uma subjetivação mais livre (MARTELO, 2012, pp. 39-40).

Nesse sentido, creio ser possível perceber, no poema que se segue, como a retomada do “‘nós’ coral neo-realista” (MARTELO, 2012, p. 39) é feita de maneira a criticar aqueles que acreditam, ainda, na possibilidade de se cantar em nome de, ou no lugar de, um povo, uma vez que aponta repetidamente a própria busca pelo diálogo com o outro, o “nosso dever falar”, para a fundação do canto de liberdade.

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(7) “the most concentrated form of verbal expression” (POUND, 1991, p. 36). Todas as citações de Pound em inglês foram traduzidas por mim [Maria Silva Prado Lessa].
Opto, aqui, pela citação de Pound no original, uma vez que a tradução para o português que tenho em mãos percebe “concentrated” enquanto sinônimo de “condensado”. Observando que antecede a essa passagem a citação “Dichten = condensare”, e que Pound escolhe utilizar “concentrated” em lugar da tradução “mais fiel” (e também mais óbvia e imediata) ao significante latino, “condensed”, acredito que é relevante mantermos a distinção perceptível no original. Descartando, por ultrapassar os limites deste trabalho, a discussão metafísica que poderia ser suscitada por essa distinção, sugiro uma metáfora química que subjazeria às ideias de “condensação” e “concentração”: a condensação é um processo de transformação, como é o caso da transformação de vapor em líquido; a concentração está relacionada ao excesso de determinada substância em um meio ideia certamente mais próxima à tese defendida por Pound a respeito do “excesso” e da “saturação” de significados convocados por determinadas palavras.
(8) “the good writer chooses his words for their “meaning”, but that meaning is not a set, cut-off thing like the move of knight or pawn on a chess-board. It comes up with roots, with associations, with how and where the word is familiarly used, or where it has been used brilliantly or memorably” (POUND, 1991, p. 36)
(9) “will probably throw the image of a past decade upon the reader’s mental screen” (POUND, 1991, p. 37).
(10) “there is no end to the number of qualities which some people can associate with a given word or kind of word, and most of these vary with the individual” (POUND, 1991, p. 37).
(11) Este poema de Pessoa foi citado mais de uma vez por Mário Cesariny, conforme verificamos na seção V do poema “Discurso”, publicado em Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano, de 1952. O primeiro verso do poema é já uma citação de “Tenho dó das estrelas”: “Falta por aqui uma grande razão” (CESARINY, 2007, p. 25).
(12) PESSOA, Fernando. Obra poética: em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 413-415.

Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de Janeiro, 2017.



Poderá gostar de ler algumas cenas da escrita de Mário Cesariny:



CARREIRO, José. “tal como catedrais, Cesariny”. Portugal, Folha de Poesia, 02-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/tal-como-catedrais-cesariny.html



quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Cancioneiro de Natal, David Mourão-Ferreira


Banksy, "A cicatriz de Belém", Cisjordânia, 2019


Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal, 1971


Banksy, Birmingham, 2019



CARREIRO, José. “Cancioneiro de Natal, David Mourão-Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 25-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/cancioneiro-de-natal-david-mourao.html


domingo, 22 de dezembro de 2019

Yehuda Amichai, poeta hebraico lido por Gonçalo M. Tavares






Cultura e sentimentos, uma viagem guiada pelo poeta Amichai

por Gonçalo M. Tavares

Yehuda Amichai (1924-2000), um dos grandes poetas hebraicos. Publicou o primeiro livro em 1955, Agora e Outros Dias, esteve ligado à universidade e foi professor de escola preparatória. A poesia marcou todo o seu percurso. Amichai tem um livro com o título: Agora no Ruído – Poemas. E é isso: a poesia como aquilo que aparece subitamente no meio do ruído, uma forma de luz quando alguém parece ter perdido a visão. Pensar por exemplo em alguém que está perdido e quando escuta certos versos encontra o caminho como se os versos fossem uma espécie de indicações de itinerário.
Há sempre a questão religiosa e militar como pano de fundo, porém é a questão da família que está no centro de grande parte da obra de Amichai:
“a porta da minha casa é
a filha menor da porta do céu”
Nestes versos, vemos esse modo de mudar de escala em poucos segundos e também de mostrar que a única forma de acabar algo é começar no início e com passos pequenos. Não se começa com um único salto diretamente para o fim. A única porta, portanto, a que tens acesso é a da tua casa e é dela, diz Amichai, que deverás fazer uma porta grande, essencial.
Em Amichai, a relação com o pai está sempre a infiltrar-se nos versos:
“(…) quando o meu pai morreu
tiraram-no do seu lugar e o lugar ficou vazio
como um poço no meio da estrada com a tampa de ferro
levantada”
Esta precisão da metáfora quando fala da ausência: um poço, um buraco no meio da estrada: a ausência do pai. Noutro poema, esta precisão de novo:
“toda a noite gritaram os teus sapatos vazios
junto à tua cama”
Uma ausência corporal que é anunciada por objetos.
Há uma ternura certeira e comovente quando se fala de relações familiares:
“Um velho cego põe-se de joelhos
para atar o sapato do seu neto”
A mãe também está presente, claro, nos versos de Amijai:
“A minha mãe era a nave espacial da salvação”
A salvação física, psicológica e religiosa rapidamente colocada num campo muito terreno – é a mãe que salva e não uma religião ou um Messias – e, ao mesmo tempo, vista, essa salvação, como algo de extraordinário, fora das possibilidades normais: a mãe como algo terrestre e não terrestre – uma “nave espacial” – mistura muito frequente na poesia de Amijai.
Diga-se que esta afetividade presente na poesia de Amichai é quase sempre muito corporal:
“apoia a tua cabeça no meu ombro
porque o meu ombro
sabe coisas”
Um ombro sabe coisas, coisas não intelectuais, coisas não racionais. O ombro não sabe matemática nem linguística nem a história de um país. Um ombro sabe o que sabe a sua anatomia e a sua fisiologia. E sabe o essencial: ficar forte ao lado de uma cabeça que está em queda; o ombro não deixa a cabeça do outro desamparada. O ombro ali fica, sólido, como se fosse uma matéria eternamente estável. Está ali ao lado e podes pousar nele, no ombro, a cabeça. O ombro sabe coisas bem mais importantes do que aquelas que se aprendem na escola: o ombro sabe estar calado e ser só um apoio. Ombro, pois, que em determinados momentos se torna mais importante que o cérebro ou o raciocínio.
Há também na poesia do poeta hebraico a sensação de que o dia exterior, as notícias e a realidade dura que andam em circulação fora de casa não são o essencial. O essencial está situado da porta da casa para dentro.
Num poema que se chama “Amor antes de começar o Sabat”, Amichai dá esta imagem bem simples, mas decisiva:
“Dentro do quarto, sujo a tua pele
com dedos do jornal do dia”
Eis dois versos típicos de Amichai: há o exterior, o mundo – e o que se ama dentro de casa. Há nesta passagem, à primeira vista, uma evidência que parece meramente física, como todos, aliás, já tivemos essa experiência: o material, a tinta dos jornais, suja os dedos, eis o concreto. Mas se olharmos com mais atenção para estes dois versos veremos que já não parece ser apenas a tinta que suja a pele do corpo amado, mas as próprias notícias, o próprio conteúdo que a tinta escrevera no papel. Como se o século e os seus acontecimentos perturbassem o toque amoroso, o sujassem.
Yehuda Amichai, grandíssimo poeta hebraico, que todos devemos ler para conhecer melhor essa parte do mundo.

“Cultura e sentimentos, uma viagem guiada pelo poeta Amichai”, Gonçalo M. Tavares, UP Magazine # 146 (rubrica “Bagagem de Mão – Cidades & Homens” da revista de bordo da TAP Air Portugal) 2019-12-01. Disponível em http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/cultura-e-sentimentos-uma-viagem-guiada-pelo-poeta-amichai/




CARREIRO, José. “Yehuda Amichai, poeta hebraico lido por Gonçalo M. Tavares”. Portugal, Folha de Poesia, 22-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/cidades-homens-yehuda-amichai-poeta.html