sábado, 11 de janeiro de 2020

A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen



A VESTE DOS FARISEUS

Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus

O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

Foi cuspido e foi julgado
No centro duma cidade
Insultos o perseguiram
E morreu desfigurado

O templo rasgou seus véus
E Pilatos seus vestidos
Rasgaram seu coração
Maria Mãe de João
João Filho de Maria

A treva caiu dos céus
Sobre a terra em pleno dia

Nem uma nódoa se via
Na veste dos Fariseus

Sophia de Mello Breyner Andresen, Grades
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1970



O nome do poema faz referência ao antigo agrupamento religioso hebraico da época pós-exílica232 de Jerusalém, os fariseus. Nesse período da história, havia diversos grupos judaicos que divergiam em relação à doutrina religiosa, mas eles buscavam manter entre si alguns traços essenciais de sua crença. Os fariseus são uma vertente judaica que preza os rituais e os dogmas da Torá, livro sagrado do Judaísmo. Vincula-se a esse grupo a formação das sinagogas e, em 1 a.C., eram as lideranças desses templos religiosos. Estavam também associados ao ensino e ao culto do Judaísmo.
Para eles, seguir os ensinamentos sagrados já seria o suficiente para a salvação do homem. Nesse sentido, não criam, à época de Cristo, em um salvador como o messias, conforme observa Schubert.233 Assim, o grupo é reconhecido pela busca da pureza dos preceitos judaicos e, em razão disso, são vistos como fortes opositores ao Cristianismo. Dessa maneira, encontramos na Bíblia passagens em que os Fariseus desconfiam das atitudes de Jesus:
1. Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para a sua cidade. 2. Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: "Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados." 3. Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: "Este homem blasfema." 4. Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes: "Por que pensais mal em vossos corações? 5. Que é mais fácil dizer: Teus pecados te são perdoados, ou: Levanta-te e anda? 6. Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te – disse ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa."234

“Escribas” são referencias aos Fariseus, pois muitos deles em suas origens tinham a profissão ligada à escrita dos manuscritos sagrados. Eles acreditavam que Jesus blasfemava ao falar com pecadores, como doentes, prostitutas e arrecadadores de impostos. Ainda segundo versículo catorze do 12.º capítulo do evangelho de Mateus, os fariseus tramam a morte de Jesus:
9. Partindo dali, Jesus entrou na sinagoga. 10. Encontrava-se lá um homem que tinha a mão seca. Alguém perguntou a Jesus: É permitido curar no dia de sábado? Isto para poder acusá-lo. 11. Jesus respondeu-lhe: Há alguém entre vós que, tendo uma única ovelha e se esta cair num poço no dia de sábado, não a irá procurar e retirar? 12. Não vale o homem muito mais que uma ovelha? É permitido, pois, fazer o bem no dia de sábado. 13. Disse, então, àquele homem: Estende a mão. Ele a estendeu e ela tornou-se sã como a outra. 14. Os fariseus saíram dali e deliberaram sobre os meios de o matar.235

De acordo com a Bíblia, os fariseus não toleravam as ações de misericórdia e compaixão de Jesus que transgrediam as leis de Moisés pregadas por eles. Para Jesus, o grupo de fariseus era visto como uma “geração adúltera e perversa”, os quais sempre insistem que o filho de Deus prove suas palavras, mostrando-lhes um milagre. Jesus ainda aconselhava a seus apóstolos a resguardarem-se da doutrina dos fariseus.
Entre a tensão que havia na pregação de Jesus e a busca pelo cumprimento das leis dos fariseus, encontramos não necessariamente uma disputa, mas, sim, a manutenção da força ideológica que as leis mosaicas tinham naquela época. Jesus, de facto, representava uma ruptura com os costumes e, assim, temos a oposição de muitos fariseus à sua missão, conforme apresenta a Bíblia.
Nesse sentido, podemos recuperar no poema “A veste dos fariseus” uma visão negativa desse grupo, pautada na ideia de hipocrisia, traição e busca pelo poder. O texto, que apresenta cinco estrofes formadas por versos em redondilha maior, mantém a voz poética descrevendo a cena da Paixão de Cristo, trazendo “um Cristo sem poder / Sem espada e sem riqueza” que é perseguido pela polícia “Guiada por Fariseus”. Em referência à cena bíblica de sua negação, o Cristo do poema é também negado por seus amigos antes do amanhecer. Como relata o texto sagrado, Jesus, após ser denunciado por seu discípulo Judas, é perseguido pelo exército romano e, em razão disso, Pedro, seu outro apóstolo, nega-o três vezes quando questionado.
No poema, Jesus é perseguido pela polícia, a qual é orientada pelos fariseus. É interessante observar que o termo “polícia” aparece como uma marca do tempo atual, pois Cristo é condenado e castigado pelo exército romano, não havia referência à polícia naquele momento histórico. A noção de força e poderio suscitada pela imagem da “polícia” se opõe à figura indefesa de Jesus “sem espada e sem riqueza”. Acima dessa oposição, está a influência dos fariseus que controlam ideologicamente a polícia que persegue o suposto messias, ressaltando o poder desse grupo judaico.
Na estrofe seguinte, é inserida uma segunda entidade histórica: a imagem de Pôncio Pilatos236 é trazida também a partir da noção do poder:
O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

A relação dos Fariseus e de Pôncio Pilatos é explicitada nessa estrofe, mostrando, por um lado, o poder da coerção – efetuada pelo exército e governo romano – e por outro o poder da ideologia – alusão aos fariseus, que seriam os mentores religiosos dos judeus. Assim, o poder é associado à injustiça – “O poder lavou as mãos / Daquele sangue inocente” – e à busca incessante por sua manutenção implícita na figura dos fariseus, que têm seu poder questionado com a vinda de um homem que se declara filho de Deus. Somente a morte de Cristo poderia assegurar que o poder da religião e da lei se reintegrasse.
Se Pôncio Pilatos lava as mãos em relação à crucificação do homem que se apresenta como filho de Deus, os fariseus tampouco aparecem explicitamente como culpados ou responsáveis pelo que se passa. Essa ideia aparece nos versos finais do poema: “Nem uma nódoa se via / Na veste dos Fariseus”. Suas túnicas não estavam manchadas pelo sangue do homem que condenaram injustamente. Não há culpa assumida. Esse aspecto é ressaltado em Grades, pois a imagem da ausência de mancha aparece destacada na estrutura do texto pelo dístico final. Em Livro Sexto238, do qual o poema é extraído, os dois dísticos finais aparecem unidos em uma quadra que encerra o texto.
Nesse sentido, o poema alude a aspectos ligados à corrupção moral, à mentira e, em especial, à injustiça e à busca constante pela manutenção do poder. Pela simbólica construção por meio dos fariseus, temos a denúncia de um tempo marcado pela não integridade ética e pela não compaixão. Sophia Andresen, assim, delata por sua poética a manipulação de opiniões e a inverdade entre os homens e aqueles que têm o poder.
Em Grades, a autora busca, por meio da poesia, denunciar a corrupção e a injustiça mascaradas no âmbito político de civilizações importantes para o desenvolvimento do Ocidente, como Roma, pela grandeza de seu império e pela importância do Direito romano, que é base para a elaboração do Direito de diversas nações ocidentais, e Jerusalém, pelo Cristianismo. Além dessas sociedades, Sophia Andresen também traz o universo de Portugal, pois essa nação se consolida historicamente como importante para o mundo ocidental a partir das grandes navegações entre os séculos XV e XVI e a reorganização mundial decorrente delas.

Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen, Nathália Nahas. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015

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232 Esse período compreende, aproximadamente, os anos de 333 a.C. a 70 d.C., iniciado com a conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande. Após a sua morte, em 323 a.C., seu império foi dividido entre seus generais e governantes. Os exílios do povo judeu ocorrem entre os anos 586 e 333 a.C., na Babilônia e na Pérsia. Havia ainda uma grande comunidade de judeus que partiram para o Egito nesse período.
233 SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos da época Neotestamentária. 2.ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 32.
234 Evangelho de São Mateus, capítulo 9. In: Bíblia Sagrada. Versão Eletrônica.
235 Ibidem, capítulo 12.
236 Pôncio Pilatos foi prefeito romano da província da Judeia do ano 26 ao 36 d.C. Entre seus encargos de prefeito, estavam as atividades administrativas e econômicas do território, mas era sua função também assegurar a ordem na cidade, sendo sua responsabilidade o aspecto judicial. Ele é mencionado nos evangelhos por ter mandado executar Jesus de Nazaré, que se proclamava filho de Deus, por uma proposição do sinédrio local, ou seja, o grupo de autoridades judaicas da província. Pilatos é representado por sua suposta ação de lavar as mãos quando decide executar Jesus, o que simboliza sua não responsabilidade pela condenação, a qual recairia sobre o povo judeu. Informações extraídas de: CARTER, Warren. Pontius Pilate: portraits of a Roman Governor. Estados Unidos da América: Liturgical Press, 2003 e Evangelho de Mateus. Português. In: Bíblia Sagrada.

238 Segundo consta na Obra Poética, edição de Carlos Mendes de Sousa, 2011, p. 434

 

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CARREIRO, José. “A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen”. Portugal, Folha de Poesia, 11-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-veste-dos-fariseus-sophia-m-b-andresen.html


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sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Lucius Sergius Catilina num poema de Sophia Andresen

Lucius Sergius Catilina
(Roma, 108 a.C. — Pistoia, 62 a.C.)


CATILINA

Eu sou o solitário e nunca minto
Rasguei toda a vaidade tira a tira
E a caminho sem medo e sem mentira
À luz crepuscular do meu instinto

De tudo desligado livre sinto
Cada coisa vibrar como uma lira
Eu - coisa sem nome em que respira
Toda a inquietação dum deus extinto

Sou a seta lançada em pleno espaço
E tenho de cumprir o meu impulso
Sou aquele que venho e logo passo

E o coração batendo no meu pulso
Despedaçou a forma do meu braço
Pra além do nó de angústia mais convulso

Sophia de Mello Breyner Andresen, Grades
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1970

Cícero denuncia Catilina, Afresco de Cesare Maccari, que representa o senado romano reunido na Cúria Hostília.
Palazzo Madama, Roma

No soneto “Catilina” temos a alusão explícita a Lucius Sergius Catilina, um militar e senador da Roma Antiga que ficou conhecido por sua tentativa de derrubar a República romana e o poder oligárquico do Senado no ano de 63 a. C. O poema traz a voz poética em primeira pessoa que se define pela solidão e pela verdade.
Vaidade e mentiras fazem parte de cenários políticos de distintas épocas, em que a busca pela manutenção do poder confunde-se com o fazer político. É nesse limiar que a voz poética insere o governador romano. Nascido em 108 a. C., Catilina pertencia a uma família patrícia que estava empobrecida, o que o levava a afirmar-se como um político que falava em nome do povo, colocando-se contra a elite romana. Sua importância histórica advém da relação política que estabeleceu com Marcus Tulius Cícero, importante político romano muito conhecido por seus discursos. Entre eles, estão as Catilinárias, conjunto de ideias que colocam Catilina como um possível conspirador contra o governo romano.
Sua carreira militar era consolidada: em 68 a. C., era pretor e, posteriormente, em 67 a. C., tornou-se governador da África (atual região da Tunísia), quando tentou a candidatura para cônsul. Pairavam, contudo, dúvidas sobre seu bom caráter, uma vez que seu nome aparecia envolvido no assassinato de membros de sua família, incluindo a esposa e o próprio filho, mesmo que nada fosse comprovado. Ele teria ainda cometido um sacrilégio aos deuses romanos por manter um caso extraconjugal com uma Virgem Vestal220, que seria meia-irmã da esposa de Cícero. Essa acusação, porém, não foi levada adiante, pois diversos cônsules, entre eles Catulo, testemunharam a seu favor.
Entretanto, seu nome volta a ser alvo de acusações em 65 a. C., quando surgem alegações de financiamento ilegal de ganhos, por meio de extorsão, em sua província. Mesmo absolvido dessa e de outras questões, seu passado fica marcado e as chances de se tornar cônsul eram poucas. Catilina, então, decide buscar o cargo por meio de uma conspiração ajudado por quatro jovens nobres endividados. O plano baseava-se no assassinato de dois cônsules recém-eleitos, Cotta e Torquato.
Sua participação nessa conspiração não é algo unânime entre os historiadores da época. A conspiração, se realmente existiu, não foi levada adiante. O evento, porém, tornou Catilina célebre em razão das Catilinárias, conjunto de discursos elaborados por Cícero então cônsul contrário ao militar, cuja imagem era descrita de forma amedrontadora, diabólica e manipuladora. Não é possível, porém, saber se essa noção é real, assim como sua astúcia para estratégias políticas.221
Apesar disso, convém notar que Catilina tinha carisma o suficiente, ou motivos, para manter aliados devotos. Ademais, sua pobreza e frustrações políticas o teriam inspirado a apresentar um posicionamento contrário às injustiças do sistema no qual estava inserido, o que era relevante em uma república como a romana, onde a riqueza tornava-se progressivamente desigual em razão dos desvios de poder e da má gestão.
São discutíveis tanto o caráter de Catilina como sua participação política, pois não existem depoimentos remanescentes de seu ponto de vista. O que nos resta é o depoimento de Cícero apresentado nas Catilinárias, baseadas na vituperação feitas por seu autor. Além disso, Catilina é tematizado também nos textos de Salústio222 (86-34 a.C.), um dos principais historiadores e escritores da literatura latina.
Foi questor223 no Senado romano e tinha o apoio de Júlio César. Nos textos de Salústio, Catilina também é descrito como alguém sagaz, mas de natureza cruel.224 De facto, o que se sabe sobre Lucius Sergius Catilina é apresentado pelos olhos e pelos interesses de pessoas que não aceitavam os desejos do exercício político dele. Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês do final do século XIX, observou que Catilina é a melhor representação de personalidades históricas cuja memória é posse mais de seus conquistadores do que de si mesmo.225
Nesse sentido, Lucius Sergius Catilina configura-se como uma imagem histórica contraditória. Por um lado, podemos relacioná-la à busca incessante a qualquer custo pelo poder. Por outro, é possível associá-lo à luta contra a injustiça e os abusos de poder que definiam a esfera política e social da Roma Antiga. Entre os extremos, ele dá nome ao segundo poema de Grades, um soneto decassílabo cuja voz poética fala de alguém que caminha “sem medo e sem mentira”, descoberto de vaidade.
Em seu poema, Sophia Andresen assume um dos lados contraditórios da história de Catilina: a pessoa que corajosamente se opôs ao poder da elite romana, falando em nome do povo, buscando romper o regime de injustiça do poder. Entretanto, a sua outra face o traidor que conspira contra seu governo é evocada por Camões em Os Lusíadas, no Quarto Canto:
Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros doa antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes
Sertório, Coriolano e Catilina são três personalidades romanas conhecidas pela oposição ao governo de Roma que foram condenadas por traição. Essa estrofe faz parte do conjunto de estrofes no qual Vasco da Gama conta a história da Batalha de Aljubarrota227, que ocorrera em Portugal em agosto de 1385. Portugueses e o reino de Castela brigavam pelo domínio das terras lusitanas. O Exército português era comandado pelo condestável Nuno Álvares Pereira, e seus irmãos, Diogo e Pedro Álvares Pereira228, lutaram contra Portugal pelas tropas castelhanas. Em vista disso, os versos que se referem aos traidores da pátria usam a imagem de Catilina como ilustração.
Distanciando-se dessa visão, em Grades temos Catilina não como traidor, mas, sim, como alguém íntegro. A voz poética define-se, logo na primeira estrofe, como alguém determinado e verdadeiro, que traça o seu itinerário “à luz crepuscular” do seu instinto. Quando ele se apresenta como “solitário”, podemos pensar como o único político romano daquele contexto que assumia uma posição contrária à aristocracia romana que comandava o império. Da vaidade ele se despe, rasgando-como a túnica que os romanos vestiam. Essa imagem remete à ideia da nudez, da transparência, a qual se aproxima da verdade.
O soneto, que apresenta o esquema rímico fixo ABBA nos quartetos, CDC e DCD nos tercetos, traz a imagem de Catilina rasgando sua vaidade, o que se relaciona com as descrições históricas do momento em que é acusado por Cícero de traição, em 8 de novembro de 63 a. C., segundo as quais ele teria se defendido sozinho, deixando Roma posteriormente, uma vez que não contava com o apoio dos demais senadores. Nesse momento, ele se junta às suas tropas na região de Etrúria. Temos, assim, a visão do indivíduo que está isolado, defendendo-se de acusações sobre mentir. A vaidade rasgada pode ser lida pela ideia das palavras que o acusam desfazendo seu caráter e seu ego.
É possível compreender essa imagem pela ideia da defesa que Catilina faz de si mesmo. A exposição de seus propósitos, de suas intenções e de suas pretensões, no momento em que é acusado, deixa-o “nu”, ou seja, suscetível e desprotegido, por isso sua túnica aparece rasgada tira a tira. Ademais, a expressão “tira a tira” também nos remete à noção de algo que ocorre paulatinamente, pois Catilina tem um percurso de insucessos na sua trajetória política, que culmina com sua morte, logo após ser condenado por Cícero. De tentativas fracassadas de eleger-se como cônsul, restou a ele a fama de desertor de sua nação, acusações por ele negadas, “sem medo e sem mentira”.
O poema continua com uma imagem muito significativa: “De tudo desligado livre sinto / Cada coisa vibrar como uma lira”. Retomando a sua túnica rasgada tira a tira, podemos compreender que Catilina está livre, pois se desliga de todas as ambições e pretensões de poder que poderia ter como político na Roma antiga. Desliga-se também do cenário de corrupção e de busca do poder que formam o Império Romano, uma vez que rasga aos poucos sua vaidade. É possível ainda pensar que a liberdade vem pela sua morte, que o afasta de um sistema movido pelo poder e pelo orgulho.
A lira é um instrumento de larga difusão na Antiguidade e pode simbolizar a harmonia. Nesse sentido, após estar livre das corrupções morais do poder ou após sua morte, Catilina pode unir-se de maneira harmoniosa às coisas do mundo, sentindo-as vibrar. Essa imagem alude à ideia de religação a qual abordamos anteriormente. É interessante notar também que a lira é um dos atributos de Apolo, o deus grego que possui flechas letais, o qual pode se relacionar com o “deus extinto” trazido no último verso da estrofe. Esse deus é “Realizador do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não visava a suprimir as pulsões humanas, mas orientá-las no sentido de uma espiritualização progressiva, mercê do desenvolvimento da consciência”229, ideia que se aproxima da imagem de um homem que lutou contra a corrupção do poder.
A ideia de libertação torna Catilina “coisa sem nome”, o que pode ser lido pelo viés do orgulho e do poder. O nome presentifica e identifica o ser, individualizando-o. O “não nome” é a não existência. Nesse contexto, podemos pensar novamente na ideia da morte de Catilina, talvez não a física, mas, sim, a morte de seus ideais e desejos de poder e de mudança. Não ser nomeado é não estar presente, é estar ausente desse cenário de corrupção do poder. Mas ainda que tenha abandonado a “batalha” contra o poder, vibra nessa “coisa sem nome” a “inquietação de um deus extinto”, que podemos ler como Apolo, um deus grego assimilado pela cultura romana.
É interessante notar que a figura desse deus grego é também ambígua como a de Catilina. Em um primeiro momento, nos cantos homéricos, ele é descrito como um deus vingador, lunar, de arco e flechas mortíferas. Em um segundo momento, talvez em razão do sincretismo natural do desenvolvimento da cultura grega, ele passa a ser visto como um deus solar, simbolizando a inspiração, o equilíbrio, a colheita sadia, entre outros amplos atributos, conforme analisa Junito Brandão.230
A voz poética define-se ainda como “a seta lançada em pleno espaço” no início da terceira estrofe do poema. A seta pode ser lida a partir de duas ideias: primeiramente, temos a ideia da direção certeira da flecha, isto é, da determinação. Catilina pode ser visto como imagem daquele que estava determinado a obter o poder e falar pelo povo. Seu rumo é cumprir o seu impulso, estabelecer aquilo em que acredita. Mas, para tanto, é preciso também alterar as estruturas fixas já existentes. Por isso, a flecha também pode ser vista por seu movimento que rompe e que penetra. Catilina representa no poema aquele que modifica ou que buscou modificar uma organização política pouco justa com seu povo. A estrutura da aristocracia romana que controlava o império pode ser lida como uma alusão às estruturas militares que comandavam Portugal. Estruturas fixadas em seu poder, assentadas no desejo de exercer o poder, identificando-se a ele, e não ao seu povo.
A flecha é também instrumento da luta e da caça, podendo simbolizar a morte. Nesse sentido, é possível ler a metáfora da seta como alguém que busca seus objetivos de mudança, lutando por eles e caçando aqueles que são obstáculos. Além disso, é um dos símbolos de Apolo, podendo se relacionar com a imagem lunar do deus de flechas que matam, o que representa a vingança e também o poder. Entretanto, como o poema mantém-se em um viés mais positivo sobre Catilina, podemos pensar no movimento da flecha e no seu efeito como símbolos de luta pelos ideais de mudança do contexto corrompido romano por aquele que busca cumprir seu impulso acredita, o que é reforçado pela imagem de Apolo e seu propósito de equilíbrio.
A imagem de Catilina é retomada por Sophia Andresen em um contexto no qual um homem mantinha-se como ditador da pátria. Qualquer pessoa em uma situação como essa que se colocasse contra os ideais do governo era acusada de desertora, assim como fora Catilina. A tentativa de enfrentar o poder político, de questioná-lo e de resistir a ele pode ser lida na figura do romano, mas pode ser vista também na tentativa de escritores e pensadores portugueses que buscavam, da maneira que fosse possível, expor seu descontentamento e seu desejo de ver em Portugal um governo livre da opressão e da manipulação. Catilina é um símbolo daquele que busca romper uma estrutura de governo que se identifica com o poder, que governa para si e para seus interesses.
Portanto, mesmo que historicamente Lucius Sergius Catilina seja descrito de forma contraditória, associado muitas vezes à injustiça, imoralidade e corrupção, não é essa a imagem recuperada por Sophia Andresen em seu poema publicado originalmente em Dia do Mar. “Catilina” suscita a busca pela justiça, pelo rompimento com estruturas de poder que não permitem a verdade e a integridade. Há a determinação em buscar incessantemente aquilo em que se acredita: a mudança. Essa busca é vital, mas é dilacerante também: “E o coração batendo no meu pulso / Despedaçou a forma do meu braço”. Em um contexto político de corrupção e injustiça, a busca pela mudança tem seu preço. Para Catilina, o preço foi a sua honra e sua vida.
O tema da injustiça é também apresentado por Sophia Andresen em Grades por meio de outra evocação simbólica do poder político na história no poema “A veste dos Fariseus”.

Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen, Nathália Nahas. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015
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220 As Virgens Vestais eram sacerdotisas que cultuavam a deusa romana Vesta. Durante o sacerdócio exclusivamente feminino, cerca de 30 anos, as mulheres deveriam manter-se virgens e castas.
221 Essa ideia é afirmada por Michael Grant justamente pelo fato de termos acesso a informações sobre Catilina em obras que se opunham a ele. In: CICERO, Marcus Tulius. Selected Political Speeches. Trad. e comentários Michael Grant. Reino Unido: Penguin Books, 1969.
222 Convém notar que, no texto de Salústio, no qual ele descreve o discurso de César sobre Catilina e sua conspiração, temos a ideia de que aquele buscou poupar a vida deste, uma vez que sua morte significaria para o povo de Roma vingança, e não justiça, como gostaria Cícero. Em razão disso, Catão, outro senador que defendia a morte de Catilina, especulou que Júlio César também pudesse ser parte da conspiração.
223 Questor é um cargo político da antiga Roma ligado ao trabalho com as questões financeiras, lidando diretamente com as arrecadações públicas.
224 TINGAY, Graham. Júlio César. Madrid: Ediciones Akal, 1994. Coleção Historia del Mundo para Jovenes, p. 18. Título original:  Julius Caesar (em inglês). Cambrigde: Cambridge University Press, 1991.
225 Henrik Ibsen (1828-1906) elabora sua primeira peça, Catilina, inspirado pelas Catilinárias e discursos de Salústio. O dramaturgo norueguês é reconhecido por suas peças inspiradas na filosofia e nas denúncias contra uma sociedade assentada no conformismo, na injustiça e na mediocridade. Catilina é escrita em 1848-49, mas encenada pela primeira vez muitos anos depois, em 1881. (GOOSE, E., 1926)
227 Informações extraídas do documento “A Batalha de Aljubarrota”, da Fundação Batalha de Aljubarrota. Disponível em: http://www.fundacao-aljubarrota.pt/. Acesso em: 01 dez 2014.
228 Ibidem.
229 BRANDÃO, Mitologia Grega. Petropolis: Vozes, 1987, p. 85.
230 BRANDÃO, 1987, pp. 85-87.



 
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CARREIRO, José. “Lucius Sergius Catilina num poema de Sophia Andresen”. Portugal, Folha de Poesia, 10-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/lucius-sergius-catilina.html


quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Porque os outros não têm, no ritmo do meu tatear, a aspereza do teu rosto, Pedro Paulo Câmara


Porque os outros não têm, no ritmo do meu tatear, a aspereza do teu rosto.
Porque os outros não se encaixam em mim quando o frio bate à portada.
Porque os outros não se engasgam enquanto dormem e me colocam de sobreaviso.
Porque os outros não me fazem estremecer ao de leve quando a eles me recosto. 
Porque os outros não soletram palavras sérias em conversa demorada.
Porque os outros não sabem onde mora cada meu sentimento e cada sorriso.

Porque não é o teu cheiro que resiste na almofada quente quando outros se levantam.
Porque não é o teu rugido que se impõe para chamar à noite o meu nome.
Porque não é o teu toque que passeia por entre os meus pelos ouriçados.
Porque não é o teu suor que saboreio quando outros porta fora se ausentam.  
Porque não é o teu segredar que ouço pronunciar cada alcunha, mimo, e cada cognome.
Porque não é o teu andar que sinto ao meu lado quando contemplo sonhos passados. 

Saliências, Pedro Paulo Câmara
Lisboa, Pastelaria Studios Editora, 2013

***

A ilha, os outros, tu e eu

 

Quatro frações que de tão intimamente comungadas se confundem.

As ilhas em cada um de nós. Ou outros que povoam cada nosso soturno íntimo.

O pedaço oceânico reclama cada fôlego como espólio seu

E as vontades estendem-se voluntariosas até que praias desertas se inundem

De olhos que perscrutam o horizonte colossal, sorumbático, longínquo.

 

Hesitam em mim anelos de vindimar o teu nome.

Oscilam em mim anélitos de ceifar a voz dos outros.

Titubeiam em mim anseios de degolar o grito da ilha.

Porém, se a esperança vive e subsiste,

Todas as poeiras e tempestades, todas as areias e terramotos não vencem.

Moras em mim. Alimentas-te de mim. Rendi-me a ti.

 

Há notas que me emocionam, páginas que me chocam, palavras que me contagiam.

Há toques que me amedrontam.

E existes tu.

 

O teu toque intimida-me.

Os outros cobiçam-me.

A ilha aprova-me.

 

Sem vós não existo.

 

Saliências, Pedro Paulo Câmara

Lisboa, Pastelaria Studios Editora, 2013

 



PEDRO PAULO CÂMARA (1980)
Entrevista

Correio dos Açores: Quando foi que te apercebeste que a poesia entrara na tua vida? Como surgiu a motivação para seres escritor e se alguém te influenciou?
Pedro Câmara: Apercebi-me que a poesia tinha entrado na minha vida bastante cedo, pois quando ainda era pequeno li alguns textos manuscritos que a minha avó possuía, organizados nuns velhos livrinhos rectangulares amarrados com cordel e que ainda hoje preservo. A minha avó materna tinha uma compilação de escritos tradicionais, nomeadamente de poemas de cariz popular, cantigas tradicionais, entre outros, que me influenciaram sobejamente, podendo, assim, dizer, que a pessoa que mais me influenciou neste sentido foi ela.

Que achas da poesia em si?
O que mais aprecio na poesia é o facto de não ser estanque e de ser plurissignificativa. Cada leitor oferece a sua própria interpretação e roupagem às palavras que lê. Aquilo que leio e vejo num poema poderá não ser o mesmo que outro leitor leia ou veja, o que permite que a poesia possa apresentar mil cenários diferentes. Ou seja, para mim poesia é ser o que quero ser, sem que os outros saibam o que sou realmente… Tudo é poesia. Basta estar disponível.

O que pretendes transmitir pela poesia?
Sou um afortunado se conseguir fazer desabrochar uma centelha de emoção naqueles que lerem o que escrevo. Através da poesia desejo despertar emoções, sejam elas de que natureza forem. Não me importo de gerar controvérsia, não me importo que surjam sorrisos ou nasçam lágrimas, ou cresça uma saudade extrema ou um grito de raiva rubra. Quero é que nasçam, pois acredito que a poesia se alimenta disso mesmo, da capacidade de fazer brotar e insurgir sentimentos e emoções em seres alheios ao autor.

Onde vais buscar a inspiração? Escreves todos os dias?
É mais fácil iniciar a resposta pela segunda questão. Não escrevo todos os dias e quando o faço nem sempre escrevo poesia. Todavia, tudo aquilo que me envolve, desde o marulhar do mar ao grito do cagarro, é provocador e inspirador. Assim, não vou buscar inspiração, a inspiração é que vem até mim. Ela pode surgir a qualquer instante, de uma frase proferida por um amigo ou aluno, de um cruzar de rua vendo a azáfama da cidade, de um milhafre pousado numa árvore solitária e de tantas outras formas. É por isso que carrego sempre um pequeno caderno, companheiro de jornada, que me acompanha para todo o lado.

Para ti, quais os maiores nomes da poesia nos Açores?
Felizmente são muitos. Tal como acontece com as nossas planícies que são férteis e luxuriosas, também a literatura nos Açores é abundante e tem nomes que dão ou deram cartas na literatura nacional e internacional. Responder a esta questão sem referir os incontornáveis Antero de Quental, reflexo de um pensamento sublime, e Natália Correia, senhora de uma poesia mordaz e desinibida, seria um lapso tremendo. Contudo, creio que o arquipélago viu nascer ao longo dos anos diversos escritores de qualidade invejável, tanto na área da prosa como na poesia.

Qual foi o melhor poema que já escreveste?
O meu melhor poema ainda está por escrever. Porém,  para  não  escapar  totalmente  à  questão, embora seja difícil escolher um único poema, escolho um, não por considerá-lo o melhor, mas talvez pela reação que normalmente provoca quando os leitores se deparam com ele pela primeira vez, intitulado: “A Ilha abre as pernas ao mundo”, presente no Saliências.

Os poemas de que mais gostas são os preferidos dos teus leitores?
Não. Cada leitor encontra em cada poema algo diferente. E cada leitor busca algo diferente, também, em cada poema. O que acontece é que, regra geral, passo a amar mais os meus poemas quando os ouço na voz de alguém que não eu. Creio, até, que os redescubro, e neles encontro coisas que nem eu sabia lá estarem.

Preferes poemas líricos, sociais, românticos sensoriais ou os políticos?
Escrevo vários tipos de poemas, mas ultimamente os que mais me aprazem são os poemas de cariz social e político, pelas várias temáticas que proporcionam, por nos obrigarem a estar despertos para a realidade e por serem, por norma, densos, apimentados e cáusticos. Na verdade, tudo tem o seu tempo e há dias, momentos e gentes que provocam outro tipo de poesia.

Consideras que a nossa sociedade ainda valoriza a poesia?
Ah sim, claro que sim! Como não poderia valorizar se a põe em prática todos os dias? O dia-a-dia frenético de cada ser humano é ritmo e poesia. A poesia não é, exceptuando um grupo de leitores ávidos, a primeira opção de compra dos leitores, sei bem disso, mas sim, acredito que a poesia é valorizada e prezada. No entanto, é necessário promover mais o gosto pela escrita e pela leitura, bem como divulgar (ainda mais) os poetas, os que agora começam a afirmar-se e as velhas glórias inspiradoras.

Com que idade escreveste a tua primeira poesia?
Não consigo precisar, mas sei que, enquanto adolescente, escrevi e escrevi muito. Tenho consciência que, inicialmente, preocupei-me mais em ler e memorizar alguns poemas.

Qual o livro mais marcante que já leste até hoje?
As velas ardem até ao fim, de Sandór Marai, é verdadeiramente sublime e penetrante. Intimidador, até.

Qual é a sensação quando te deparas com alguém a ler um livro escrito por ti?
Fico imensamente feliz e estranhamente embaraçado. Já vi várias pessoas conhecidas com o meu livro, alunos e desconhecidos, alguns até estrangeiros que procuram produto açoriano. Consigo lembrar-me de uma situação, num consultório médico, onde na sala de espera, enquanto aguardávamos pela consulta, vi um senhor que estava a ler o meu romance “Cinzas de Sabrina”. Apesar de não conhecer o dito indivíduo, senti uma enorme alegria ao ver que o meu livro, neste caso o romance histórico publicado em 2014, circula e capta a atenção dos leitores. Tenho, inclusivamente, sido contactado várias vezes pelas redes sociais por pessoas que ouviram falar no meu livro, perguntado onde o podem adquirir e outras, que postam fotografias,  identificando-me,  dando,  também  assim, a conhecer os meus livros a outras pessoas. Todo este reconhecimento, para além de me deixar mui- to agradado, impele-me e motiva-me a continuar a escrever e a partilhar as minhas palavras com os leitores.

O que sentes quando encontras os teus livros à venda numa livraria?
É sempre uma emoção significativa quando encontro um dos meus livros numa livraria, principalmente quando os vejo, como já aconteceu, ao lado de Vitorino Nemésio ou Onésimo.

Quando estás a escrever um livro, partilhas com alguém o seu conteúdo para te aconselhar, por exemplo um amigo ou familiar?
Sim, partilho os meus escritos com alguns amigos chegados e com familiares. Tento auscultar as primeiras impressões e proceder a ajustes que possam aconselhar. Sou um afortunado por estar rodeado de pessoas com sensibilidade.

É difícil conseguir publicar um livro?
Existe um número cada vez maior de editoras, mas isso não é sinónimo de que exista uma maior facilidade para edição de um livro. O mercado, cada vez mais agressivo, faz com que a publicação de uma obra seja, em alguns casos, muito dispendiosa para o autor, o que provoca, muitas vezes, com que os criadores se retraiam e acabem por deixar os seus manuscritos guardados na gaveta. Na verdade, isso só acontece porque existem muitas gráficas disfarçadas de editoras. Logo, a haver disponibilidade financeira, é fácil publicar. Assim, quantidade nem sempre implica qualidade.

Escrever e publicar livros alterou o teu rumo de vida?
Sim, sem dúvida. Hoje sinto-me mais realiza- do porque cumpri este sonho e também porque me abriu novas portas, possibilitou-me novas experiências. Conheci outras realidades, outros autores e outros artistas, muito devido ao facto de já ter publicado. Posso, por exemplo, referir as três edições do Azores Fringe Festival nas quais tive o prazer de participar. Sem publicar, não seria esta pessoa que agora sou. Não enriqueci financeiramente, mas emocionalmente, psicologicamente, sou muito mais rico.

Publicarás algum livro este ano?
Confesso que tenho alguns manuscritos que já estão terminados e penso que talvez no final do ano, ou início do próximo publique algo, mas desta feita no campo da poesia. Existe também produção na aérea da prosa, mas essa demorará mais algum tempo até ver a luz do dia.  

“A literatura nos Açores é abundante e tem nomes que dão ou deram cartas no país e no estrangeiro”, Pedro Paulo Câmara entrevistado por António Pedro Costa, Correio dos Açores, 2015-10-18.
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A ave que passa

Georges Braque, “A Bird Passing Through a Cloud”, 1957

XLIII

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

7-5-1914
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10.ª ed. 1993).
  - 66.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, n.º 4. Lisboa: Jan. 1925.



***

Como passar sem deixar rasto (vestígios da morte)? Como ser levado pelo vento e não ser apenas terra perdida desde sempre já na terra? Como passar? Aquilo que o poeta lança ao vento, aquilo que em atrito lhe cede, é o seu distanciar‑se da terra, o voo, o canto, que é como quem diz, o amor, a alegria, a dor. Na sua casa imaterial, feita da matéria e do imaterial que são as palavras, o poeta confunde‑se com a passagem e o desejo de passar. Passagem de palavra em palavra que gera a constelação de figuras (ideias, sensações), o vento do pensamento, imortal, secreto, sem rasto, fecundo.

Silvina Rodrigues Lopes, "Como quem num dia de Verão abre a porta de casa", Colóquio/Letras, n.º 178, set. 2011, p. 9-21.

***

O poema XLIII apresenta uma gradação de planos, que vai da espécie (a ave, o animal) ao plano mais geral, a "Natureza", de onde recua no verso final, novamente para a espécie (ave) até atingir o particular (e ensina-me a passar). É no centro do movimento, no momento em que atinge o plano geral, que há o clímax do poema. Ali, há o porquê justificador dos quatro outros períodos afirmativos e do imperativo que constituem o poema. Todo o pensamento e razão do poema giram em torno de "a Natureza de ontem não é Natureza", ontem que poderia ser tomado numa acepção ampla, alegórica, de uma ordem anterior à atual (uma outra constituição do mundo físico ou um mundo das idéias, por exemplo), não fossem as afirmações tanto de caráter geral, quanto particular, situarem essa temporalidade num agora. Imediatez que é proposta principalmente pelo passar da ave enquanto atualidade de um vôo, não enquanto espécie de ser vivo, que mesmo depois de extinta fica, tal como o animal terrestre, para o paleontólogo. A "natureza" está associada a um agora onde todo recordar é traí-la, pois é lançar sobre a natureza de agora uma outra natureza.

Mario Queiroz, “Idéias de Natureza em Alberto Caeiro”, Revista Terceira Margem, v.10, n. 14 (2006). Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/15176/0




A AVE QUE PASSA

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto (...)*),
que um mar por descobrir ou um céu por rasgar.
Ao longe, no fim das águas, uma linha convexa que a ave nunca alcança;
Lá, onde nasce o firmamento, despeja-se um mar inteiro para tingir o céu de azul e infinidade.
Mas o mar, que é ardiloso, encobre um leito convulso, uma terra que se excede e desponta à superfície em ressaltos de lava arrefecida - nove montanhas do mar que a ave sobrevoa e a distraem da viagem. É então que pica o voo para poder ver que é verdade.
Por entre as coroas de nuvens, descobre que a terra sossegou, que a lava afinal frutificou. Vista de perto, a neblina, as fumarolas, o cheiro a peixe e a enxofre, o verde dos prados a espraiar-se nos taludes, os cedros e as acácias, as águas sorrateiras das caldeiras; mar, céu e terra esborratados em nove pinceladas, moradas temerárias de um povo que se atreve a um mar sem termo.
Mas a ave insiste e mergulha sempre a pique. Há homens descalços na praia. Então ela pousa e desiste do seu voo. Ainda mais perto, nota-lhes a pele curtida, o linguajar enredado como a malha carregada sobre os barcos, o sotaque inusitado e soberano de um povo que é dono do seu querer.
Os homens, esses, não dão por ela.
Prendem garrafas vazias de cerveja com a ponta dos dedos e o que dizem é à vez. Sem deixar de olhar para o mar, talvez não falem do mar; talvez falem de cidades, não de sete mas de mil em qualquer lugar do mundo; e, em cada uma, haverá sempre outra praia, sempre um outro açoriano que lhes devolve o olhar. Não passes, ave, fica, e ensina-me a ficar!**)

João Pinto Coelho, 12-05-2018
my plan magazine, n.º 14, julho-agosto 2018. Revista de bordo da SATA/Azores Airlines disponível em: https://www.sata.pt/sites/default/files/n14_MY-PLAN_2.pdf

*) verso transcrito do poema «XLIII - Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto», de Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”. 1.ª publ. in Athena, no 4. Lisboa: jan. 1925.
**) adaptado do mesmo poema.



 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 




CARREIRO, José. “A ave que passa”. Portugal, Folha de Poesia, 08-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-ave-que-passa.html