segunda-feira, 24 de julho de 2023

Encontro no inverno com António Lobo Antunes, Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade

António Lobo Antunes



ENCONTRO NO INVERNO COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES


Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa
— dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.

 

Eugénio de Andrade, Foz do Douro, 18-01-2000

Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Com as aves aprende-se a morrer”. Esse verso precário, tão breve, condensa na sua órbita um arquivo de tantas hipóteses e variantes de leitura e uma experiência tão completa que não pode senão tornar-se um verso difícil. Mas, ao mesmo tempo, somos inteiramente vencidos pelo paradoxo: o poema de que esse verso faz parte é cruelmente explícito, diz-nos mais do que qualquer interpretação ou comentário podem reaver – como se tivesse, por trás, a luz fria do mito. Entre o canto do poeta e a inevitabilidade do fim, foi esse o talismã obstinado que Eugénio de Andrade escolheu para confiar à palavra escrita o encontro com António Lobo Antunes.

O momento não era para menos. Eugénio está a receber o amigo na clausura da sua intimidade, guiando-o pelos múltiplos níveis do átrio da sua consciência. Para nos aproximarmos responsavelmente do poema, talvez seja prudente partirmos da suposição de que esse verso abre a cena de um embate mano a mano, uma dança em pleno inverno: Eugénio e António, os dois de armas na mão, procurando vencer nas planícies mais consumadas (e ao mesmo tempo mais dissidentes) da deterioração física e cognitiva, do silêncio e da morte, da noite e da paixão.

O poema concebido nessa ocasião, 18 de janeiro de 2000, e que acima transcrevi, tornou-se depois epígrafe de Não entres tão depressa nessa noite escura, romance publicado por António Lobo Antunes nesse mesmo ano. Os dois textos acomodam-se, portanto, numa responsabilidade de transparência mútua. Quando festejaram os 80 anos de Eugénio, Lobo Antunes, em homenagem ao amigo, foi ao Porto para ler publicamente o poema. Como me parece que o poema e o romance delimitam os contornos de um entretecimento vital entre as duas poéticas, e assim respondem um ao outro, tentarei nas próximas páginas descrever a atmosfera desse encontro. […]

Aí, precisamente aí, vem o poema oferecer-nos, com cuidadosa elegância, uma chave para adentrar no romance de que constitui – afinal, como poderia ser outra coisa? – uma espécie de pórtico. Do burburinho de Maria Clara ouvem-se ressonâncias idílicas, Lícidas ao longe. Ao contrário do de Pessoa, do de Ruy Belo, do de Herberto, diante da eminência da morte o triunfo de Eugénio abre-se à claridade do dia total. Como em qualquer outro confronto literário, o que está em questão é o âgon e não pode deixar de haver um vencedor: e se o sentido e a estética da “bela morte” são íntimos de Eugénio, não o são de Lobo Antunes, nem das suas conceções médicas. E aliás, como se depreende da crónica em que homenageou o amigo poeta, já doente, intitulada “O coração do dia”, o prosador tem ampla consciência disso:

Censuro-me não o visitar agora: é que não suporto vê-lo acabar assim, reduzido a um pobre fantasma titubeante. A ele, que tanto prezava a beleza e a sua própria beleza […]

a doença resolveu destruí-lo no que mais lhe importava, tornando-o um Rimbaud desfigurado, dependente, trágico […]. Ao Eugénio prefiro lembrá-lo como o conheci: orgulhoso, altivo, falando-me de jacarandás e frésias, amando

e era verdade

o «repouso no coração do lume». (ANTUNES, 2006, p. 230).

 

Penso que Não entres tão depressa nessa noite escura e o poema “Encontro no inverno com António Lobo Antunes” se enraízam perfeitamente um ao outro quando evocam esse momento da experiência humana em que a linguagem com que nos recriamos dia após dia confina com a noite – e, porque é isso que no limite os une, acomodam-se na necessidade de confrontar a finitude de cada um e, nesse esforço, ambos se encarregam de nos abrir as portas para a imaginação criadora que nos reinstala na infância. […]


O primeiro verso do poema de Eugénio de Andrade tem uma luz branca e uniforme, que emana das próprias aves. Enquanto isso, o título do romance, que consiste, evidentemente, numa adaptação livre do emblemático lamento de Dylan Thomas, intromete-nos entre duas esferas de luminosidade contrastante. Ouvimos alguém que pede, ou roga, a alguém que não entre, ou pelo menos entre mais lentamente, e mais silenciosamente, nessa noite evidente, inevitável e determinante para a composição do texto. No admirável estudo que dedicou a essa obra, Maria Alzira Seixo admite, aliás, que pode ser “o próprio texto a noite escura.” (2002, p. 387).

Talvez aí encontremos um espaço de compatibilidade entre eles.

Continuemos, por isso, a ouvir o poema: “Também o frio de janeiro enredado nos ramos não ensina outra coisa”. Esse segundo verso prediz, ao mesmo tempo que assume, uma inquietação visivelmente distinta do anterior; repare-se no modo como reage ao tempo suspensivo do verso de abertura: nada, na mudez insidiosa dos ramos das árvores, está de acordo com a transitividade do silêncio do verso anterior. Nem com a transparência da conceção de morte, oposta à voragem das sombras nos ramos. Dir-se-á, numa primeira análise, que constitui um comentário desse primeiro verso, prolongando-o numa continuidade de sentido. Parece-me, no entanto, que quando se concentra numa observação de foro meteorológico e numa referência aos ritmos sazonais, substitui, assim, o caráter concêntrico, vitalista, do qual as aves são um emblema e um símbolo de ascensão.

As consequências dessa disparidade são significativas. Talvez se possa interpretar esses versos como se segue. As aves esotéricas de Eugénio, captadas em pleno voo, são provas de uma imersão substantiva no mundo. Eugénio fornece-nos aves que questionam a própria existência; delas a poesia surge, delas se retorna à origem do mundo que revela sempre que o gesto se torna concreto. Um mundo onde o homem realiza a sua existência por meio da indagação permanente. Mas o “tu” a quem o poema se dirige, o “tu” que profere o segundo verso, vai comunicar apenas aquilo que vê de um ponto exterior: os ramos despidos, a densidade do frio, a atmosfera de apagamento que sobressai desse cenário. Esse frio de janeiro não é imanente como as aves do primeiro verso são imanentes: tem mais a ver com qualquer coisa abstrata, alguma coisa como as cegonhas e arvéloas dos livros de Lobo Antunes, que insistem sempre no poder curativo de uma forma de autenticidade perdida.

Daí que eu leia o modo como esse dístico nos impõe uma espécie de conflito entre dois modos diversamente organizados de apreensão do tempo e de aceitação da finitude: entre a aceitação de que a morte é uma forma suprema de beleza e uma heideggeriana possibilidade de realização da liberdade, e uma voz, cheia de raiva, de desespero, de “comovida urina e dos líquidos obscuros”, que recusa essa noite escura.

Procurar os olhos onde o azul se refugiara” não é o mesmo que procurar os olhos que se refugiaram no azul, equivalente mais preciso da imagem em que Lobo Antunes delimita e concentra a sua persona, esse retrato simultaneamente físico e psíquico que todos os antunianos têm na memória:

(e digo isto ao espelho)

Não sou um senhor de idade que conservou o coração menino. Sou um menino cujo envelope se gastou. (ANTUNES, 2008a, p. 45).

 

É como se o poeta, num simples encontro, tivesse intuído a angústia com que o amigo se aterrorizava com a sombra do fim, batendo-se incansavelmente, livro após livro, por gestos de frases, momentâneos fulgores, simulações de rostos, de tal modo que nas suas vozes o passado modela constantemente a percepção do presente. Sobre o abismo, a mancha esbatida da luz confinou com a temporalidade e com a clareira da criação. “Bom dia, Eugénio” – é como Lobo Antunes, do fundo da noite mais escura da alma saúda o amigo mais íntimo do sol. A busca (ou, direi, recoleção?) da infância é naturalmente o argumento da segunda estrofe do poema do encontro entre esses dois escritores reclusos. Em Eugénio, a inocência corresponde à presença da infância autêntica, essa infância de sol azul (como a poética de Sophia de Mello Breyner vem até aqui como uma onda no mar…) em que a brancura insuperável do linho era suficiente para afastar os seres da sombra.

Ora, Eugénio é o amigo mais íntimo do sol, como bem o sabe o criador da Julieta de A ordem natural das coisas (1992). Mais significativo se torna, por isso, esse passo se o relacionarmos com algumas passagens de “Se eu fosse Deus parava o sol sobre Lisboa”, crônica antuniana (incluída em Quarto livro de crónicas, de 2011) que parte de um verso de Fernando Assis Pacheco para nos levar num itinerário sobre a angústia da existência. Em certo sentido, parece-me estarem aí resumidos e esclarecidos os pontos fractais da ressonância entre os dois autores:

Oxalá o sol continue parado sobre Lisboa, parado sobre mim e eu embalsamado nele. Vestido dele. Afogado nele. Se eu fosse Deus. Se eu fosse Deus era uma carga de trabalhos, não lhe invejo a sorte. Ontem jantar em casa da minha mãe, com os meus irmãos. Valha-me isso. Umas noites saio dali mais em paz, outras numa guerra imensa comigo, levando todo o passado às costas, que alegra e dói. Nada mudou e tudo mudou: como eu gostava de ser pragmático em lugar de viver numa nuvem cujos limites, aliás, distingo mal. (ANTUNES, 2011, p. 74-75).

 

Os últimos três versos do poema parecem entoar uma despedida. A princípio, não me custa acreditar que seja a despedida desse “tu” que se deixa, enfim, fundir na tessitura contínua da noite. Mas como pode despedir-se alguém que a todo o momento se confunde na aurora como se entoasse um cantar de amigos e num impulso que se ergue triunfalmente até à haste mais alta? Que é o que agora acontece: o caminho de ascensão será feito pelos choupos brancos, significante suspeitíssimo na poética de Eugénio – os choupos que em “As mãos e os frutos”, recorde-se, correspondem aos próprios olhos do poeta, “carregados de sombra e rasos de água”. É falso, portanto, que amanhã já não seja o poeta a ver o amigo subir às árvores da infância – esses choupos que as mãos despem, ao subir, ecoam em si o próprio viril e auroral canto do poeta.

O resplendor das mãos imperecível” ganha, assim, os sentidos de uma imagem lapidar – no brilho, na serenidade com que lida com o fim e dá lustro ao momento do coroar de glória. Esse verso não exprime uma recusa ao fim, rumo a qualquer forma de eternidade, mas uma aceitação de que a morte, muito simplesmente, faz parte da bagagem quotidiana e da unidade do ser. De certo modo, morrer corresponde a adquirir o brilho duro, inviolável, das estátuas. E por isso aplico sobre esse poema de Eugénio, tentando extrair-lhe o impulso essencial, o juízo admirável de Eduardo Prado Coelho, a propósito de Sophia:

Daí que haja […] uma espécie de integração da morte convertida em mero lugar de passagem no percurso irreprimível da vida. A morte é preparada em cada instante da vida. Na medida em que o visível se debruça sempre para o lado de lá do invisível, a morte aflora em cada instante de intensificação do real, é um tecer incessante que se entrelaça em nós. (COELHO, 2012, p. 121).

Na sequência do que ficou dito, vou sugerir, primeiro, que o verso participa de uma atmosfera grega, a partir da qual é plausível admitir, sem alusões descabidas, que o verso possa ser sumariamente lido como a celebração da bela morte que Eugénio compõe no seu canto. A sua figuração, nesse caso, deixa-nos sumariamente suspensos, atentos a uma tensão cognitiva, uma espécie de cristalização, tão límpida quanto obscura: não são as mãos imperecíveis, mas imperecível é o seu brilho através dos tempos.

Mas convenhamos: a decidibilidade não é um fator absoluto nem no idioleto de Eugénio, nem em Lobo Antunes, que nunca dispensam um elemento enigmático. Muito menos se o motivo for o das mãos, seminal para qualquer uma dessas poéticas. Daí que o verso se anime, especialmente, de um desejo de futuro: instiga-nos a tentar dizer o mundo numa só frase – como se a missão do poeta fosse a de erguer orficamente uma cosmogonia.

A persistência e a conjugação enfática desse verso no romance de Lobo Antunes tornam-se de novo palpáveis se procurarmos rastrear o seu efeito no setting polifônico erguido por Lobo Antunes em torno da voz de Maria Clara de Não entres tão depressa nessa noite escura. Maria Clara, a protagonista desse livro assumidamente genesíaco, e o ser autobiograficamente mais completo e a imagem mais unificadoramente próxima de si que o autor nos concedeu, (atendendo ao que Lobo Antunes sobre ela nos diz), vive entre o impacto da realidade e a hipótese do sonho. O pai está doente e, entre internamentos e intervenções cirúrgicas, a morte afigura-se incontornável. Toda a ação se desencadeia a partir dessa angústia e do esforço de restituição dos segredos pessoais e familiares de Maria Clara. Institui-se uma ideia de passagem, mas o final do livro é deliberadamente inacabado; mesmo que tudo possa apontar para esse desfecho, não saberemos se o pai da adolescente morre ou não.

Quando tentamos decompor e interpretar a simbiose em que esses textos estruturalmente já coexistem, as dificuldades agravam-se. Mas esse é um ponto importante e creio que temos aí a base da dependência essencial entre os dois textos, ou melhor, da dependência do romance sobre o poema que o antecede.

Segundo o juízo de Óscar Lopes, a alegria que Eugénio nos provoca é a alegria de uma esperança impensável. Ora, a verdade exaltada do “resplendor de um brilho imperecível” invoca precisamente essa cláusula. Se aceitarmos que a vida que flui nesse poema é uma forma de vida breve, formulação de modo nenhum excessiva se atendermos ao espírito grego que a guia e que a exalta, a intimidade com Homero é máxima nessa ambição simultaneamente telúrica e cósmica do poeta. Como nos explica Vernant sobre essa modalidade da morte entre os antigos heróis gregos: “Sua memória é sempre viva: ela inspira a visão direta do passado que é o privilégio do aedo. Nada pode atingir a bela morte.” (VERNANT, 1978, p. 62).

Como vimos, há uma questão de base a delimitar as correspondências entre o texto e o romance: a ascensão gradativa e contínua de uma linguagem que se torna progressivamente um instrumento de revelação da plenitude solícita dos versos de Eugénio embate violentamente nos espelhos impiedosos e na consistência de detrito das ficções antunianas. Por isso, bloqueamos numa limitação crítica clara. Daí que a concordância vascular que se estabelece entre o poema e o romance de que é paratexto tem aqui os seus desafios mais amargos. De fato, as topologias de que procedem – o cristal transparente de Eugénio opõe-se, quase ponto por ponto, à densidade ironista do romancista – nem sempre compactuam. O inverno, notação simbólica para o anoitecer da vida, não está exatamente no mesmo plano de nessa noite escura, afeta à deterioração e à passagem do tempo, que o dêitico torna uma experiência intensiva. Como a crítica tem profusamente demonstrado, a noite, a insônia, a doença e a deterioração são eixos simbólicos cuja importância na gramática antuniana nunca pode ser sobreavaliada. Ainda assim, a reciprocidade da resposta é indesmentível: afinal, a sua maneira, ambos respondem ao avançar inexorável da noite do mundo.

Tentemos avançar um pouco mais, sem nos intimidarmos perante a impossibilidade da paráfrase. Como sabemos, o encontro entre Eugénio de Andrade e António Lobo Antunes ocorre no limiar da luz, na passagem da claridade para a noite. O autor do romance, na voz de Maria Clara, vai, aliás, submeter a densidade e a textura dessa noite (expressas pelo epíteto “escura”, supostamente desnecessário, e pela ação, porque se trata de alguém que está a entrar) a uma espécie de prova empírica. Mas a realidade do postulado de Eugénio é por si só suficiente: o espírito grego que é o seu torna o agente e a ação absolutamente coincidentes.

Ora, se o gesto pleno, verticalizado, com que a mão desoculta o rumor do silêncio impositivo da morte faz parte por inteiro dos meios de Eugénio de Andrade – e a opção por “resplendor” e pela durabilidade do enunciado são de uma índole pragmática que disso faz eco –, não há como presumir o mesmo em relação aos de Lobo Antunes. Como qualquer leitor rapidamente deduz, se os seus universos se constituem frequentemente de um tempo suspenso, em pretérito imperfeito, não remetem de maneira nenhuma para a conceção de uma Arcádia concreta, onde as palavras e as coisas se entrelaçam numa democracia do ser, numa exaltação da vida que se liberta das contingências da história e da limitação temporal da existência humana.

Muito pelo contrário, nas ficções de Lobo Antunes, a condição da humanidade é opressivamente crepuscular. Essa insistência na finitude do homem é, aliás, o que principalmente se formula no título do romance que aqui analisamos: afinal, a voz que solicita ao outro que não entre tão depressa nessa noite pressupõe um impulso, uma mobilidade, e pressupõe que o tempo conjuntivo, o momento de opção, por inúteis que sejam, são a resposta à inevitabilidade dessa transição. A morte corresponde a um estado terminal – é consequência da doença, da aniquilação irremediável das faculdades vitais. Mas em Eugénio pratica-se outra forma de enraizamento, uma aproximação decisiva, concreta e quotidiana às coisas.

Compreende-se, por isso, que seja essencial retomar o poema assim que dermos o romance por terminado. O poema de Eugénio penetra inteiramente o núcleo mais íntimo do romance e mantém-no, repetidamente, em estado primordial. Envolvendo o romance, como seu guardião, o poema funciona, em síntese, como uma estranha prótese para a consciência de Maria Clara e a violenta intromissão da noite no seu mundo. Essa solicitação, tão inquieta, tão inquietante, que brada a alguém que não entre tão depressa nessa noite desloca-se para a fria lucidez do “Amanhã não serei eu a ver-te”. Essa é instância de uma apreensão outra do tempo, na presença de uma morte firme, cumprida e solucionada, imune ao “[...] processo de presença da não-presença que é intolerável [...]” (COELHO, 2012, p. 122) que se associa ao envelhecimento físico e psíquico do indivíduo.

Lobo Antunes, ele-mesmo, o eremita-da-rua-do-conde-redondo, até pode ter seguido à risca as prescrições de Montaigne quanto ao imperativo de fabricar o núcleo de solidão (a arrière-boutique) em que o homem deve examinar os seus espelhos interiores e assim preservar os créditos básicos da felicidade. Outra coisa são as suas personagens e a sua insônia, os mundos doentes e deteriorados, sem Aquiles ou Antígonas, colapsados de multidões fantasmáticas, de afetos truncados e despojos inúteis, de existências que nunca sobrevivem no contorno do canto.

Por isso, talvez se justifique, nesse ponto, retomamos por alguns instantes a questão da infância e da sua substanciação como refúgio para as desordens do mundo, em direção à “[...] reinvenção da infância imortal de todos os homens.” (LOURENÇO, 1983, p. 164). A obsessão é comum aos dois autores, mas as modalidades diferem em muitos aspetos. Lembremo-nos desse menino aterrorizado que procura a mão da mãe num corredor escuro: é um fantasma antigo e ubíquo na gramática antuniana. Maria Clara não foge à regra. E é no espelho, afinal de contas, que todos nós nos revemos, identicamente aterrorizados pelos limites concretos da temporalidade, e não na transparência arcaica da infância branca desse poema de Eugénio, cuja sintaxe de reconciliação revigorante não depende, como depende nas imagens da infância em Lobo Antunes, de uma Arcádia pré-existente. Procure-se no livro, linha após linha, nos milhares de páginas dos romances e das crónicas: não há heróis em Lobo Antunes, e o apogeu da “bela morte”, quando muito, não passa de um desejo impossível sequer de formular. Heitor já não é uma franquia dessa marca dos deuses a que se chamava destino.

É belo o modo como Eugénio e Lobo Antunes respondem um ao outro. Mas eles são os tigres, o crítico não. Queiramos ou não, chegada a hora de terminar, nada de fundamental foi dito acerca da intimidade que se constitui entre esses dois autores: sobre o modo como coincidem, sobre a textura contínua que os urde na mesma trama – essa malha fina será sempre inacessível à penumbra do nosso olhar e do nosso exame. Eduardo Lourenço, afinal, não mentiu: “[...] qualquer poesia suspende incessantemente o que parece dizer, e o que diz, di-lo numa forma que se não pode fechar sobre si mesma.” (LOURENÇO, 1983, p. 139). Mas quem sabe, em todo o caso, se o poema não é uma forma de sairmos desse romance – ou, talvez, de a leitura principiar sempre de novo?

Por isso ainda talvez se possa dizer que “Frima-te António” – isto é, “aguenta, António!” até que Deus faça o sol parar sobre Lisboa – o corolário da crônica que citamos, é também um dos corolários da transfiguração da noite que o dispositivo de Lobo Antunes vai operar em Não entres tão depressa nessa noite escura.

É que, ao contrário do que se passa com Eugénio de Andrade, o preferido de Apolo, volvendo o perfil orgulhoso de Aquiles até a luz da kalós thánatos, tanto António Lobo Antunes como maior parte de nós, que não sentimos mais a incandescência dos heróis gregos e desejamos partilhar todo o otimismo dos médicos, tentaremos sempre adiar, até ao último instante, a entrada nessa noite escura.

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, E. Os afluentes do silêncio. 9. ed. revista e acrescentada. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1997.

ANDRADE, E. Encontro no Inverno com António Lobo Antunes. In: ANTUNES, A. L. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008 [2000].

ANTUNES, A. L. Terceiro livro de crónicas. 1. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2006.

ANTUNES, A. L. Segundo livro de crónicas. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2007 [2002].

ANTUNES, A. L. Livro de crónicas. 7. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008a [1998].

ANTUNES, A. L. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008b [2000].

ANTUNES, A. L. Quarto livro de crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2011.

COELHO, E. P. A mecânica dos fluidos/A noite do mundo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2012.

HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2007.

LLANSOL, M. G. La nube habitada. Cuentos del mal errante. Disponível em: http://www.fronterad.com/img/nro314/lanube/nube.html. Acesso em: 03 jun. 2019.

LOURENÇO, E. Poesia e Metafísica. Lisboa: Sá da Costa, 1983.LOURENÇO, F. Introdução. In: HOMERO. Ilíada. Lisboa: Cotovia: 2007, p. 7-25.

MANCELOS, J. Notas para o Canto das Aves em Eugénio de Andrade e em três poetas clássicos ingleses. Máthesis, Viseu, n. 17, p. 205-221, 2008. Disponível em: https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/4305/1/notasparaocantodasaves.pdf. Acesso em: 28 fev. 2019.

NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SEIXO, M. A. Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

STEINER, G. Linguagem e silêncio: Ensaios sobre a literatura, a linguagem e o inumano. Lisboa: Gradiva, 2014.

VERNANT, J. P. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso, São Paulo, n. 9, p. 31-62, 1978. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37846/40573. Acesso em: 28 fev. 2019.

 

André Corrêa de Sá, “Dessa extinção que habita a vida: Homero e Eugénio na Foz do Douro” in Revista FronteiraZ (Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP) n.º 22 – julho de 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.23925/1983-4373.2019i22p205-219

 

 

CORAÇÃO DO DIA

(crónica de António Lobo Antunes)

 

O poeta Eugénio de Andrade está muito doente. É meu amigo e não tenho coragem de o visitar. Quando ia à sua casa, no Passeio Alegre, um espaço de cuidadosa brancura diante das palmeiras e do mar, recebia-me com vinho fino, biscoitos, livros, pequenas atenções que me tocavam, conforme me tocava a sua delicadeza, a sua fidalguia. A mesa de mármore para escrever. Nunca me disse mal de ninguém e a vaidade que o habitava, tão ingénua, comovia-me. Em certo sentido conservou-se sempre um camponês da Beira Baixa natal, feito de puerilidade e manha, gerindo ciosamente a sua obra a fingir-se desinteressado, distantíssimo e, no entanto, alerta como um coelho bravo. Escrevemo-nos durante anos, falávamos ao telefone com frequência, a sua ternura com as minhas filhas comovia-me. E, periodicamente, vinham versos, livros, retratos dedicados, o seu rosto a carvão pelo escultor José Rodrigues que, como dizia, «sabe a minha cara de cor». Pediu-me para fazer uma sessão de fotografias com ele: e Dario Gonçalves, pessoa muito querida sua, veio com a máquina. O Eugénio pediu-lhe um momento, desapareceu, e regressou, todo pinoca, para os bonecos. Ele mesmo escolheu os ângulos, as posições: e lá fiquei, sentado, com o Eugénio de pé atrás de mim, a mão espalmada no meu ombro, naquela pose para o Futuro que gostava de assumir. Normalmente falávamos de poesia, pedia-me que lhe lesse o que compunha, discutíamos as correcções que ele encaixava a cada edição nova e que, por vezes, me não agradavam: aceitava as críticas numa humildade de criança apanhada em falta, experimentávamos outras palavras, repetíamos tudo. A sua solicitude e a sua ternura em relação a mim eram infinitas. Já doente e estando eu em Roma para um prémio, o padre e poeta José Tolentino Mendonça, que ele apreciava grandemente e é um dos poucos homens que admiro e respeito, contava-me que o Eugénio o chamava, preocupado que eu estivesse bem. Punha, na camaradagem, um desvelo fraterno, ainda que fosse um homem rugoso, cheio de caprichos, capaz de uma violência fria, insuportável para quem não estimava, e de uma coragem física que, em geral, se não lhe adivinhava. Dele recebi durante anos e anos inúmeras provas de estima. Censuro-me não o visitar agora: é que não suporto vê-lo acabar assim, reduzido a um pobre fantasma titubeante. A ele, que tanto prezava a beleza e a sua própria beleza

   (o Eduardo Lourenço, amigo de ambos

   – E então chegou-nos a Coimbra aquele Rimbaud)

  a doença resolveu destruí-lo no que mais lhe importava, tornando-o um Rimbaud desfigurado, dependente, trágico, o «cesto roto» que Cesário Verde, uma das suas paixões, evocava a respeito de si mesmo, enquanto a tuberculose o «escangalhava»: «Entra-me a chuva, entra-me o vento no corpo escangalhado». Ao Eugénio prefiro lembrá-lo como o conheci: orgulhoso, altivo, falando-me de jacarandás e frésias, amando

   (e era verdade)

  o «repouso no coração do lume». E, depois, havia pequenos actos que o definiam inteiro: uma das ocasiões em que fui ao Porto encontrei um livro de Jorge de Sena, um livro póstumo, horrível, em que Sena atacava companheiros de viagem (Cesariny e Vitorino Nemésio, por exemplo, muito melhores artistas do que ele) de um modo tão vil que me indignou. Referi o livro ao Eugénio. Ele ficou longamente em silêncio e depois tirou o seu exemplar debaixo de um móvel e pouso-o no sofá. Segredou

   – Tinha-o aqui escondido, sabe, porque não queria que pensasse mal do Jorge.

Eu nunca conheci Jorge de Sena e no entanto na boca do Eugénio era sempre o Jorge, tal como, para o Zé Cardoso Pires, Alves Redol era sempre o António, Carlos de Oliveira o Carlos, e tão-pouco conheci Redol ou Oliveira. Mas este acto do Eugénio define-o bem: a defesa intransigente daqueles que amava, a sua preocupação em cuidar-lhes do perfil com um carinho idêntico ao que punha no cuidar do seu. Tinha a paixão da amizade, que poucos lhe mereciam, aliás, e uma rara, permanente fidelidade a ela. Reparo agora que estou a relatar tudo isto no passado, como se o Eugénio tivesse morrido. Talvez porque o homem que continua vivo não é ele. Talvez por pudor meu. Talvez porque o fim de um amigo me seja difícil. Talvez porque me custa não vir abrir-me a porta se tocar à campainha, subir as escadas e dar, nas paredes, com múltiplas representações suas por múltiplos pintores, dúzias de Eugénios de todas as idades, aparências, feitios, de qualidade variável, bons, maus, assim-assim, as dúzias de Eugénios, obsessivamente repetidos de que o encantava rodear-se. No meio de tanto Eugénio imóvel só ele se mexia. Deixava escapar para um, para outro, um soslaiozinho satisfeito, contente de ser vinte, de ser trinta, de ser quarenta, de ser uma multidão de criaturas que formavam uma espécie de guarda de honra à sua volta, à medida que desrolhava o vinho fino, me servia um cálice

 

Eugénio de Andrade visto por Emerenciano (1988)

   – Não posso beber

 me chegava um guardanapo de linho ofuscante, um prato de biscoitos, taças de bombons, anunciava

   – Comprei-os para si

   ocupava a poltrona puxando a manta sobre os joelhos

   – Este frio

   relanceava as árvores, as ondas, gaivotas cinzentas que gritavam, sacudia a mão num gestozinho precioso de prestidigitador e adiantava o peão do rei do início de uma frase. Duas ou três horas depois acompanhava-me à saída como se avançássemos em corredores de palácio. E de certo modo aquele edifício pequeno era de facto um palácio. O seu palácio e ele um velho conde entre cortejos de glórias inventadas e reais. Quanto mais inventadas mais reais. Da rua, as janelas acesas pareciam mostrar uma casa vazia. Antes assim: se topasse alguém nas cortinas não saberia distinguir se era o Eugénio ou uma das suas representações encaixilhadas quem me acenava de cima. Ou então ele só existia quando estávamos juntos. Se não estávamos suponho que não passava de uma das palmeiras do Passeio Alegre, dobrando-se para a direita e para [a] esquerda consoante o vento e os borrifos do mar.

 

António Lobo Antunes, revista Visão, 06-05-2000. Crónica posteriormente publicada no Terceiro Livro de Crónicas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005.

 

 

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“A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html

 

“A água nas trevas”, Mário Santos. Público, 04-11-2000. Disponível em: https://www.publico.pt/2000/11/04/jornal/a-agua-nas-trevas-150827

Não entres tão depressa nessa noite escura de António Lobo Antunes: da escrita romanesca à partitura musical”, Catarina Vaz Warrot. Diacrítica vol.29 n.º 3. Braga, 2015. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0807-89672015000300008&lng=pt&nrm=iso

Não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes”, Pedro Fernandes. Letras in.verso e re.verso – Literatura e entretenimento, 25-06-2015. Disponível em: https://www.blogletras.com/2015/06/nao-entres-tao-depressa-nessa-noite.html

“A moldura literária em Não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes”, Aline Souza. Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 4, núm. 2, julho-dezembro, 2017. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=575967288012

 


domingo, 23 de julho de 2023

Proençaes soem mui bem trobar, D. Dinis

 


Proençaes soem mui bem trobar
e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da frol
e nom em outro, sei eu bem que nom
am tam gram coita no seu coraçom
qual m’eu por mia senhor vejo levar.

Pero que trobam e sabem loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobam quand’a frol sazom
á, e nom ante, se Deus mi perdom,
nom am tal coita qual eu ei sem par.

Ca os que trobam e que s’alegrar
vam eno tempo que tem a color
a frol consigu’e, tanto que se for
aquel tempo, logu’em trobar razom
nom am, nom vivem em qual perdiçom
oj’eu vivo, que pois m’á de matar.

D. Dinis (CV 127, CBN 489)

A Lírica Galego-Portuguesa, 2.ª ed., edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, Lisboa, Comunicação, 1985, p. 286.

 

Notas

soem (verso 1) – costumam.

mais (verso 3) – mas.

frol (verso 3) – flor.

coita (verso 5) – sofrimento amoroso.

levar (verso 6) – suportar; sofrer.

Pero que (verso 7) – embora.

quand’a frol sazom / á (versos 10 e 11) – na estação das flores.

par (verso 12) – igual; semelhante.

Ca (verso 13) – pois; porque.

tanto que se for / aquel tempo, logu’em trobar razom / nom am (versos 15 a 17) – assim que acaba aquele tempo, logo deixam de ter razões para trovar.

 

Análise de uma composição trovadoresca galego-portuguesa

1. Apresentação:

Identificação: «Proençaes soen mui ben trobar»

Género: cantiga de amor e simultaneamente sátira literária

Presença nos cancioneiros: CV 127, CBN 489

Autor: D. Dinis

 

2. Paráfrase da cantiga: (por Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses):

 

Os provençais que bem sabem trovar!
e dizem eles que trovam com amor,
mas os que só na estação da flor
vejo trovar jamais no coração
semelhante tristeza sentirão
qual por minha senhora ando a levar.

Muito bem trovam! Que bem sabem louvar
as suas bem-amadas! Com que ardor
os provençais lhes tecem um louvor!
Mas os que trovam durante a estação
da flor e nunca antes, sei que não
conhecem dor que à minha se compare.

Os que trovam e alegres vejo estar
quando na flor está derramada a cor
e que depois quando a estação se for,
de trovar não mais se lembrarão,
esses, sei eu que nunca morrerão
da desventura que vejo a mim matar.

 

3. Tema/ Assunto: contraposição da sinceridade amorosa peninsular ao artificialismo do amor à maneira provençal.

 

4. Estrutura formal: 3 estrofes uníssonas e «capcaudadas».

10a 10b 10b 10c 10c 10a

 

5. Questionário sobre a cantiga “Proençaes soen mui ben trobar”, de D. Dinis.

5.1. Explicite o contraste que o trovador estabelece, na primeira estrofe, entre a sua prática poética e a dos «Proençaes» (verso 1).

5.2. Analise o valor simbólico atribuído, ao longo do poema, à palavra «frol».

5.3. Refira duas características temáticas que permitem integrar este texto no conjunto das cantigas de amor.

5.4. Neste poema, é possível reconhecer traços de sátira literária.

Comprove esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.

 

Explicitação dos cenários de resposta

5.1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Na primeira estrofe, o trovador estabelece um contraste entre a sua prática poética e a dos «Proençaes» (v. 1) do modo seguinte:

− a prática poética do trovador, ao contrário da dos «Proençaes» (v. 1), não se limita a uma certa estação do ano (como se subentende por «trobam no tempo da frol / e nom em outro» vv. 3-4);

− o trovador considera que os «Proençaes» (v. 1) sofrem muito menos por amor do que ele («nom / am tam gram coita no seu coraçom» vv. 4-5).

5.2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Ao longo do poema, a palavra «frol» adquire um valor simbólico:

− como marca da primavera, literariamente conotada com o amor e com a poesia («tempo da frol» v. 3 , aquele em que os «Proençaes» v. 1 costumam trovar);

− como indício da chegada de uma estação do ano («quand'a frol sazom / á» vv. 10-11) propícia ao sentimento amoroso;

− como sugestão de um ambiente alegre e cheio de cor («eno tempo que tem a color / a frol consigu'» vv. 14-15).

5.3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O texto pode integrar-se no conjunto das cantigas de amor com base nestas características:

− a afirmação do sofrimento por amor, ou coita amorosa, de que padece o sujeito poético («gram coita» v. 5; «tal coita» v. 12);

− a devoção a uma mulher amada, designada por «mia senhor» (v. 6);

− um sentimento tão intenso que leva o sujeito poético a prever a sua morte por amor («em qual perdiçom / oj’eu vivo, que pois m’á de matar» vv. 17-18).

5.4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A presença de traços de sátira literária neste poema pode ser comprovada com base nos aspetos seguintes:

− a expressão «dizem eles» (v. 2) sugere uma desconfiança irónica no que respeita à motivação dos «Proençaes» (v. 1);

− ao longo do poema, a prática poética dos «Proençaes» (v. 1) é desdenhada pelo sujeito poético (por nela reconhecer sinais de artificialismo).

(Questionário disponível no Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.)

 

 

   Poderá também gostar de:

 

Lição n.º 43 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #EstudoEmCasa), sobre "Os provençais que bem sabem trovar" e "Cantiga sua, partindo-se", 2021-04-20.

► Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e538278/portugues-7-e-8-anos

 

“Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html



sábado, 22 de julho de 2023

Os Biombos Nambam, Sophia de Mello Breyner Andresen

Observe a imagem de um biombo Namban, abaixo apresentada. Leia o poema e as notas. 


Maria Helena Mendes Pinto, Biombos Namban, 4.ª ed., MNAA, Lisboa, 1993, p. 49

 

OS BIOMBOS NAMBAM

Os biombos Nambam contam
A história alegre das navegações
Pasmo de povos de repente
Frente a frente

Alvoroço de quem vê
O tão longe tão ao pé

Laca e leque
Kimono camélia
Perfeição esmero
E o sabor do tempero

Cerimónias mesuras
Nipónicas finuras
Malícia perante
Narigudas figuras
Inchados calções

Enquanto no alto
Das mastreações
Fazem pinos dão saltos
Os ágeis acrobatas
Das navegações

Dançam de alegria
Porque o mundo encontrado
É muito mais belo
Do que o imaginado

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, edição de Carlos Mendes de Sousa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015, p. 806.

 

Notas

Biombos Nambam (título) – peças de mobiliário formadas por painéis móveis e articulados, de importância histórica e artística, que retratam a chegada ao porto de Nagasáqui dos namban jin (os bárbaros do sul, como eram designados, no Japão, os portugueses). No poema, manteve-se a grafia utilizada pela autora («Nambam»).

Laca (verso 7) – verniz originário da China e do Japão; material ou objeto revestido por esse verniz.

Kimono (verso 8) – o mesmo que quimono; túnica longa, com mangas largas, usada no Japão.

camélia (verso 8) – flor da cameleira ou da japoneira, semelhante à rosa, também conhecida por rosa-do-japão.

mesuras (verso 11) – vénias em sinal de cortesia.

mastreações (verso 17) – conjunto de mastros de uma embarcação.

 

Questionário

1. Explicite o sentido das palavras «Pasmo» (verso 3) e «Alvoroço» (verso 5), tendo em conta o contexto em que se inserem.

2. Analise o valor expressivo da enumeração presente na terceira estrofe.

3. O primeiro verso da última estrofe contribui para acentuar uma visão festiva das «navegações» (versos 2 e 20).

Justifique esta afirmação, referindo dois aspetos que a comprovem.

4. Observe as imagens, que reproduzem pormenores de dois biombos Namban.

Estabeleça uma relação entre as figuras humanas representadas nas imagens e as características atribuídas, no poema, aos navegadores.

Pormenor da chegada de uma nau portuguesa vinda de Goa

Pormenor do cortejo do capitão-mor

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Tendo em conta o contexto em que se inserem, as palavras «Pasmo» (v. 3) e «Alvoroço» (v. 5) sugerem:

− o espanto motivado pelo primeiro encontro de povos com hábitos e culturas diferentes («Pasmo» v. 3);

− o movimento e a excitação associados ao ambiente descrito no poema («Alvoroço» v. 5).

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Na terceira estrofe, a enumeração:

− remete para o exotismo oriental, através da referência a materiais e a objetos característicos do Japão (por exemplo, «Laca e leque» v. 7), assim como à flora («camélia» v. 8);

− introduz elementos associados às navegações para o Oriente e às relações (diplomáticas, comerciais e culturais) estabelecidas com outros povos («Perfeição esmero» v. 9; «E o sabor do tempero» v. 10);

− gera uma cadência melódica marcada pela aliteração e por um ritmo predominantemente binário («Laca e leque / Kimono camélia» vv. 7-8).

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A afirmação pode ser justificada com base nos aspetos a seguir enunciados:

− no primeiro verso da última estrofe, o sentimento de «alegria» é associado ao ato de dançar, sugerindo um ambiente de celebração, que tem como protagonistas os «ágeis acrobatas / Das navegações» (vv. 19-20);

− a introdução da palavra «alegria», no primeiro verso da última estrofe, reforça o sentido do adjetivo «alegre», que, no segundo verso da primeira estrofe, é usado para qualificar a «história [...] das navegações» (v. 2);

− a dança de «alegria» irrompe da experiência, única e surpreendente, de encontrar um «mundo» (v. 22) que supera, pela sua beleza, a própria imaginação.

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A relação entre as figuras humanas representadas nas imagens e as características atribuídas, no poema, aos navegadores pode ser estabelecida com base nos aspetos seguintes:

− os traços fisionómicos que se salientam na representação visual dos portugueses podem ser associados à sua descrição como «Narigudas figuras» (v. 14);

− no vestuário, tal como é representado nas imagens, destaca-se a forma arredondada das calças, que, no poema, encontra correspondência em «Inchados calções» (v. 15);

− a posição dos corpos dos marinheiros, no pormenor da chegada da nau portuguesa, sugere movimentos de agilidade acrobática («Fazem pinos dão saltos / Os ágeis acrobatas» vv. 18-19).

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.

  

Poderá também gostar de:

 

Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17


sexta-feira, 21 de julho de 2023

A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade


 

 

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

 

Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo, 1945

 

Questionário sobre o poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade

1. Publicado na obra A rosa do povo (1945) e escrito em um momento histórico conturbado - ditadura Vargas no Brasil e Segunda Guerra Mundial -, o poema "A flor e a náusea" deixa transparecer o sentimento do eu lírico em relação a esse contexto. Com base nas três primeiras estrofes, responda:

1.1. Como se caracteriza o ambiente e o tempo em que vive o eu lírico? Justifique sua resposta com palavras, expressões e versos do texto.

1.2. Quais são os desejos do eu lírico nesse contexto? Justifique sua resposta com versos do texto

2. Nas estrofes de 4 a 7, o eu lírico fala sobre si mesmo.

2.1. O que se sabe do eu lírico por meio desses versos?

2.2. Levante hipóteses: Essas características permitem associar o eu lírico a quem?

3. As três últimas estrofes falam sobre o nascimento de uma flor.

3.1. Levante hipóteses: Por que esse acontecimento é tratado como fora do comum no contexto do poema?

3.2. Como o eu lírico descreve a flor que nasceu? O que há de inesperado nessa descrição?

3.3. Quais sentimentos essa flor desperta no eu lírico? Justifique sua resposta com versos do poema

3.4. Releia o poema e conclua: Qual sentido maior se pode atribuir ao nascimento dessa flor, levando em consideração todo o contexto de produção do poema? Indique o verso que resume essa ideia.

(Fonte: https://atividadesdeportugueseliteratura.blogspot.com/2019/08/a-flor-e-nausea-interpretacao-com.html)





Textos de apoio sobre o poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade

O poema A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade, poeta moderno brasileiro, faz parte da coletânea intitulada A rosa do povo, publicada em 1945. A obra insere-se no que os críticos consideram a fase social do poeta, a qual a entendem como uma obra de maturidade. Drummond apresenta uma expressão carregada de ironia e cinismo ao longo da obra, reflexo de um ambiente histórico denso que incorpora conflitos e paradoxos; nela, consciente de suas limitações, o poeta lança-se à incerteza do mundo e de si mesmo.

O poema A flor e a náusea é um exemplo do conflito de forças polarizadas que lutam por uma síntese, submergindo na interioridade como uma maneira de redescobrir o mundo. A angústia presente neste poema reflete com maestria a densidade do lirismo drummondiano, assim, vemos nele a existência aprisionada na solidão que recai sobre o indivíduo; seu ego fragmentado é vítima de um mundo também despedaçado, cercado de relações reificadas, a qual o poeta sintomatiza em tédio e enjoo. No entanto, outra forma se faz notar, crescendo, um encontro com a forma autêntica, escondida pela exterioridade, na paradoxal revelação de uma forma feia, em meio ao tumulto do mundo. A autenticidade aqui é encontrada na forma de uma flor. […]

A náusea, tão conhecida na literatura sartreana como sinônimo da liberdade que promove a abertura ao cru da existência, é substituída em Drummond pela incapacidade de reconhecer-se nas representações de seu tempo: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos./ Sob a pele das palavras há cifras e códigos.” (Idem, p.13). E adiante a condenação do mundo reificado: “Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem.” (Ibidem).

“Encontro e diálogo no poema A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade: interfaces com a filosofia de Martin Buber”, Fabrício Costa. In: Em curso, v. 5, 2018, ISSN 2359-5841 http://dx.doi.org/10.4322/2359-5841.20180507




Em A rosa do povo, livro de poemas de 1945, Carlos Drummond de Andrade – autor nascido em 1902, na cidade de Itabira, Minas Gerais – apresenta, de maneira bastante aguçada, duas vertentes temáticas principais que se fazem presente nos textos que compõem a coletânea: o engajamento social e a adoção de uma visão exacerbadamente metapoética, a partir das quais o autor reflete sobre a natureza da poesia, bem como sobre sua forma. Assim, sob o prisma de tais traços, Drummond permite uma rica variedade temática à obra, além de conceder poemas em que se podem perceber traços formais múltiplos.

Levando tais aspectos em consideração – sobretudo o que se refere à perspectiva revolucionária adotada pelo autor –, percebe-se nos poemas a presença de um forte lirismo – cujo surgimento deu-se num momento do século XX em que o mundo passou por radicais transformações culturais, históricas e sociais, impulsionadas pela Segunda Guerra Mundial – responsável por provocar no público a reflexão proposta por Drummond, que convida seu leitor a se questionar sobre o mundo e, principalmente, sobre estar no mundo.

Exemplo disso é o poema “A flor e a náusea”, cuja natureza formal – responsável pela força expressiva do poema – é estruturada a partir de versos livres, que se destacam pelo fato de serem compostos de frases curtas e diretas, com predomínio de uma frase por verso.

No que diz respeito à temática de “A flor e a náusea”, o poema apresenta a revolta do sujeito poético perante o mundo em que vive. Essa inquietação pode ser percebida, por exemplo, no mal-estar sentido por esse indivíduo quando ele reconhece tal contexto e percebe, em si, o desejo de vomitar sobre tudo o que lhe incomoda e perturba – daí a presença do vocábulo “náusea” no título da poesia em questão, o qual apresenta um oximoro: é dessa revolta que brota uma flor que, apesar de feia, é capaz de furar o asfalto.

Logo, a partir de tais considerações, pode-se constatar que Drummond causa um grande impacto em seu leitor ao aproximar, no pontapé inicial do poema, duas palavras semanticamente distintas: “flor” e “náusea”, ou seja, o nascer e a perfeição unidos ao nojo e à destruição.

Partindo para a leitura do poema, percebe-se que, no início da primeira estrofe, já é possível notar uma construção bastante rica de sentido, a partir da qual são enumerados aspectos abstratos e concretos, gerais e particulares. Exemplo disso, o fato de serem a classe social e as roupas os fatores responsáveis por prender o sujeito poético ao mundo em que vive e, simultaneamente, o caracterizar de maneira econômica e abrangente.

Também é percebida, nessa altura do texto, a relação do indivíduo com sua classe profissional. Ou seja, o poeta, enquanto profissional, possui o dever de restaurar seu vínculo com a sociedade sem abstrair-se de sua identidade de poeta, uma vez que sua participação social se dá por meio da própria poesia, da linguagem poética.

Há nessa estrofe, ainda, a presença de uma antítese formada na relação das cores – branco e cinzento – escolhidas pelo autor para descrever o contraste entre o sujeito poético e o lugar em que se encontra e, assim, ressaltar a indiferença e o isolamento desse indivíduo no sombrio mundo que o cerca. Por meio de outra figura estilística, a paranomásia, o poeta aproxima as palavras “mercadorias” – representação do concreto – e “melancolias” – representação do abstrato, do psicológico –, de modo a ressaltar, por meio desse jogo de palavras, o desgosto que o sujeito poético sente pelo mundo capitalista e consumista em que vive.

No primeiro verso da segunda estrofe, por sua vez, o poeta diz que os olhos que contemplam o relógio da torre encontram-se sujos e, partir de tal afirmação, sugere o deslocamento de uma característica dos objetos “torre” e “relógio” para os olhos, que parecem contaminados diante da sujeira do ambiente. Vale ressaltar, ainda, que tal como a rua é poluída e cinzenta, também são sujos a torre e o relógio que nela se encontram. O autor utiliza adjetivos de cunho negativo para caracterizar, nessa estrofe, o tempo que se estava vivendo, o qual, para esse indivíduo desolado, é um tempo “de fezes”, um tempo “pobre”.

Na terceira estrofe do poema, vê-se que, para os habitantes desse mundo perturbado, que se encontram doentes, há pouca esperança – há apenas o sol como consolo, e como consolo apenas. As pessoas, metaforizadas na imagem dos muros, são surdas e, na tentativa descontente de comunicar-se, o poeta ressalta o profundo sentimento de solidão que toma conta do sujeito poético e faz emergir, ainda, a indiferença das pessoas para com ele.

No segundo verso dessa estrofe, por sua vez, há uma referência ao momento histórico vivido no Brasil, em que, sob um regime de ditadura, as pessoas viam-se em um momento de proibições e, por isso, escondiam, na linguagem, múltiplos sentidos e significações.

Na quarta estrofe, o sujeito faz uma série de considerações, tais como a reflexão feita por esse indivíduo acerca de si próprio e das relações que trava no âmbito social. Nesse processo de reavaliar sua existência, é tomado por uma forte sensação de perda, inutilidade e frustração ao notar que a incomunicabilidade faz com que as relações entre os homens se revelem dilaceradas.

Faz-se presente na quarta estrofe, ainda, uma forte e importante crítica à falta de liberdade com a qual esses indivíduos precisam lidar nesse período. Esse registro pode ser notado no fim dessa estrofe, quando o fato é agravado pela conformação construída através da metonímia do sétimo verso: “e soletram o mundo, sabendo que o perdem”.

No verso de abertura da quinta estrofe, por sua vez, o poeta nota que, independentemente da época ou do lugar, a desordem é um traço ordinário das relações sociais. Além disso, pode-se notar que, nessa estrofe, é revelada a consciência de culpa do sujeito poético quanto aos “crimes” que cometera, tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos outros indivíduos, seus semelhantes, seja por meio de atitudes, ou, ainda, por meio da omissão, uma vez que esse sujeito considera-se, dada a sua condição de artista, responsável pela edificação do cotidiano. Além disso, o poeta se incrimina por nutrir-se de uma “ração diária de erro” (quinto verso) nas esferas individual e coletiva e, assim, pecar quanto à falta de consciência perante a injustiça social que assola seu país.

No que diz respeito ao plano sintático dos dois últimos versos dessa estrofe, nota-se o paralelismo, que, no contexto dessa construção, remete às notícias falsas trazidas pelos jornais, responsáveis, entre outras coisas, pela alienação da população.

A sétima estrofe do poema inicia-se com o verso “Uma flor nasceu na rua!”, que pode ser considerado o ápice do poema, ou seja, seu clímax. O fato de esse mesmo verso ser pontuado com uma exclamação dá aos leitores a sensação de que o sujeito poético, sempre com a emoção controlada, mesmo diante da revolta e do inconformismo, nessa passagem exclama sua exaltação, enchendo a “rua cinzenta” com seu grito.

A imagem dessa flor contrasta com os “[...] bondes, ônibus, rio de aço do tráfego” (segundo verso), elementos que representam o progresso, a tecnologia e, em certa instância, os responsáveis pela perda da sensibilidade e do lirismo bastante observada nos tempos modernos.

Essa flor, além disso, é capaz de iludir a opressão, representada, no poema, pela polícia, utilizada pelos opressores para manter o status quo; logo, a flor, ao romper o asfalto, possui a força de uma revolução. Assim, ela simboliza a esperança que, ainda tímida, se ergue contra a alienação e a desumanização oriundas do sistema capitalista, da guerra e da ditadura.

Na oitava estrofe, em que é reforçado o caráter simbólico desse elemento, o sujeito poético garante que se trata, de fato, de uma flor, mesmo que essa não possa ser percebida por sua cor, tampouco por suas pétalas, que não se abrem.

Pode-se notar, ainda, a ênfase que é dada, nas estrofes finais do poema, à feiura da flor, característica que aparece tanto na oitava quanto na nona estrofe do texto. A necessidade de enfatizar esse aspecto explica- -se graças ao fato de a flor representar uma revolução que não ocorre de maneira pacífica e bela. Pelo contrário, a revolução simbolizada na figura da flor ocorre de maneira dura e requer muita luta e muitos confrontos.

Na última estrofe do poema, portanto, vê-se o êxito do sujeito poético em superar a náusea com a ajuda da flor, que, mesmo sendo uma forma insegura, possui uma força incontrolável: a força da revolução.

“A perspectiva revolucionária e a metapoética em A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade”, Bárbara Duarte Baioco. In: Primeiros ensaios de literatura : das trovas ao testemunho [recurso eletrónico] / organizado por Isabela Dantas, Andréia Delmaschio e Wallysson Soares. – Vitória, ES : Edifes, 2021.

 



quinta-feira, 20 de julho de 2023

Biblioteca Verde, Carlos Drummond de Andrade

 


BIBLIOTECA VERDE

– Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados em percalina verde.
– Meu filho, é livro demais para uma criança.
– Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
– Quando crescer eu compro. Agora não.
– Papai, me compra agora. É em percalina verde,
só 24 volumes. Compra, compra, compra.
– Fica quieto, menino, eu vou comprar.

– Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
– Está bem, Coronel, ordens são ordens.

Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde.

Sou o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.)
Ninguém mais aqui possui a coleção das Obras Célebres.

Tenho de ler tudo. Antes de ler,
que bom passar a mão no som da percalina,
esse cristal de fluida transparência: verde, verde...
Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa, Apolo nu, Vênus nua...

 

Nossa Senhora, tem disso nos livros?!...
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!

Espermacete cai na cama, queima a perna, o sono.
Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca
antes que pegue fogo na casa.

Vai dormir, menino, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.
Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

Mas leio, leio. Em filosofias tropeço e caio,
cavalgo de novo meu verde livro,
em cavalarias me perco, medievo;
em contos, poemas me vejo viver.
Como te devoro, verde pastagem!...
Ou antes carruagem de fugir de mim
e me trazer de volta à casa
a qualquer hora num fechar de páginas?

Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.

 

Carlos Drummond de Andrade, Boitempo II: menino antigo, 1973

 

 

“Iniciação literária”: a viagem do menino leitor

[…]

As experiências no Grêmio Literário e na escola fortalecem, paulatinamente, o leitor Drummond e alimentam o futuro escritor. Foi por essa idade que o menino-leitor fez um pedido ao coronel Carlos de Paula Andrade: que lhe comprasse a “Biblioteca Internacional de Obras Célebres, uma coleção de volumes, publicada pela “Sociedade Internacional” com sede e consultores, praticamente, pelo mundo inteiro e “no Brasil, José Veríssimo, João Ribeiro e Lindolfo Collor” (CANÇADO, 2003, p. 2003). O poema “Biblioteca Verde” (OC, 2002, p. 990- 992), seis estrofes, é o registro desse momento.

Na primeira estrofe, temos a insistência de Carlito para adquirir a Biblioteca Internacional de Obras Célebres. E o pai lhe diz “Meu filho, é livro demais para uma criança”. No entanto, ele já tem uma resposta pronta: “Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo”. Ou seja, nada ficará perdido, porque à medida que eu crescer, ainda continuarei lendo. Mas o coronel, que via Carlito ainda “pequeno” para aquele tipo de leitura responde-lhe: “Quando crescer eu compro. Agora não”. Mas o filho não se dá por vencido e continua a insistir: “Compra, compra, compra”. O pai se dá, então, por derrotado e diz: “Fica quieto, menino, eu vou comprar”. Ser leitor é ser insistente.

Na segunda estrofe, o coronel liga para o Rio de Janeiro e com toda imponência compra os tão pedidos livros: “Me mande urgente sua Biblioteca / bem acondicionada, não quero defeito”. E do outro lado da linha alguém, servilmente, responde: “Está bem, Coronel, ordens são ordens”. O verso denota com precisão as relações hierárquicas entre o comprador (coronel) e o vendedor dos produtos. Na modernidade, para integrar-se à sociedade é preciso responder a ela modelando-se a suas regras.

Na terceira, os livros chegam “cheirando a papel novo” e o menino sente-se o mais rico “destas redondezas”, porque agora é detentor de uma pequena fortuna. O sentimento não é de orgulho, mas de inveja de si mesmo, porque “Ninguém mais aqui possui a coleção / das Obras Célebres”, por isso mesmo ele precisa “ler tudo”. Mas antes, o menino se delicia passando a mão no livro, cujo material é percalina, um “cristal / de fluida transparência: verde, verde”. O sentimento é de carinho e de ternura apodera-se desse leitor.

Na quarta estrofe, é o início de uma aventura: conhecer o “Templo de Tebas. Osíris, Medusa/Apolo nu, Vênus nua...”. O espanto é grande diante da nudez: “Senhora, tem disso nos livros?”. Não sabíamos, e não tínhamos como saber, que o menino que se espantava com o nu naquele momento, em meados dos anos 70 escreveria um tipo de poesia que escandalizaria leitores “tradicionais”, que pareciam desconhecer ou não vivenciar “o amor erótico”. O livro O Amor natural (1992) revelou as poesias eróticas que Drummond manteve ocultas durante anos e só aceitou publicar após a sua morte, pois tinha receio do julgamento alheio e de ser chamado de “velho bandalho”. Era tanto material a ser lido, que começa a incomodar a própria família: “A mãe se queixa: Não dorme este menino. / O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!”. As leituras do menino leitor alteravam o cotidiano do clã dos Andrades.

Assim como o poeta lutou com as palavras, o menino lutou para ler sua Biblioteca “Mas leio, leio. Em filosofias /tropeço e caio, cavalgo de novo...”. Às vezes lia, não compreendia, mas permanecia firme diante de seu propósito. Só de uma coisa o menino tinha certeza “Tudo que sei é ela quem me ensina”. Nas palavras de Vicent Jouve [...] “É possível que a leitura – não exatamente a leitura, mas a cerimônia da leitura que a criança celebra com tanto gosto – seja um rito de introdução à intimidade. Ela é, ao mesmo tempo, seu meio, sua paródia, seu exercício real embora difícil” (JOUVE, 2002, p. 139-140). Esse ritual, no início, pode ser espinhoso, mas o hábito o torna prazeroso.

A Biblioteca era habilmente adaptada às necessidades dos leitores, com trechos e fragmentos da literatura e do pensamento filosófico, religioso e científico, seja “dos tempos antigos, medievais ou modernos”, a “Biblioteca acabava por ser uma compilação redonda e confiável da cultura humana” (idem, ibidem). Ela é sinônimo de liberdade, de conhecimento e de democratização do saber. Quanto mais contato com as bibliotecas, mais possibilidades de as crianças se interessarem pelos livros.

Além do pai, o irmão Altivo, estudante de direito, também foi grande incentivador de Carlos – “Feliz o menino ou adolescente que pode contar com a ajuda de alguém mais velho para caminhar entre os sonhos confusos da imaginação literária” (ANDRADE, 2003, p. 1218). Para ele mandou revistas, jornais, livros e o oportunizou a conhecer muitos escritores, dentre eles Fialho d’ Almeida (1857-1911) e Eça de Queirós (1845-1900). “Passar de Fialho a Eça foi um salto de vara curta: fiquei freguês do segundo, e, pela graça de Deus, cheguei cedinho a Machado de Assis. Deste não me separei nunca [...]” (idem, ibidem). Segundo Drummond, o irmão foi o responsável por conduzi-lo ao “país da literatura” [...] “A literatura vivia em mim, não existia lá fora” (idem, ibidem). A declaração do poeta nos revela que ele concebia a literatura como um conjunto de obras lidas que transformaram sua vida. Era uma experiência interna que ocorria entre ele, na condição de leitor, e o livro.

De leitor de revistas à Biblioteca Internacional: estamos diante de um leitor múltiplo, eclético. Sua entrada no “tamanho universo” da “Biblioteca Internacional ainda hoje tem, de cara, um efeito alucinatório, paralisante, próprio da chamada de submissão ao mundo duro, severo, impessoal da chamada “literatura sapiencial” que abre a coleção [...]” (CANÇADO, 1993, p. 47). O contato com tantas obras estrangeiras não tornou o menino um leitor deslumbrado com a cultura do colonizador. Pelo contrário. A obra drummondiana enaltece seu país e seu povo.

Todas essas obras contribuíram para criação de um leitor maduro e arguto, pronto para sair pelo mundo, como observamos em “Iniciação Literária” (OC, 2002, p. 989):

 

Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios...Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
Mas por que me deram para livro escolar
a Cultura dos Campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares
– soja – fumo – alfafa – batata doce – mandioca –
pastos de cria – pastos de engorda.
Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto
condenando este Assis a ler a sua obra.

 

Quando o matemático Arquimedes encontrou a solução para um dos problemas que resolvia, gritou: “eureka”. Quando o menino leitor descobre o mundo maravilhoso da arte de ler, ele diz: “Leituras. Leituras”. E compara sua descoberta às da personagem Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar pelo mundo em oitenta dias, de Júlio Verne.

Todavia, o prazer da leitura torna-se um desprazer, pois ao menino foi dado um livro de Assis Brasil, onde “O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares / – soja – fumo – alfafa – batata doce – mandioca – / pastos de cria – pastos de engorda”. O diálogo com outros autores, a intertextualidade, que trabalhamos no terceiro capítulo, é parte do poema. Na primeira estrofe, o poeta faz uma referência ao escritor francês Júlio Verne (1828-1905) e sua obra A volta ao mundo em oitenta dias (1872). Na segunda, o homenageado é o escritor brasileiro Francisco de Assis Almeida Brasil (1932) e a obra Cultura dos campos (1977).

O sujeito lírico questiona por que lhe foi dado o “livro escolar / a Cultura dos Campos de Assis Brasil?”, cujo assunto é desestimulante para sua idade e que o afastava da obra minando seu interesse em continuar lendo. Ler por obrigação é o modo mais rápido de criar não leitores.

Quanto à leitura de um poema, Ítalo Moriconi (1992) afirma que ele sempre está aberto à interpretação do leitor. Acrescenta que “Toda leitura, sendo ato de amor pelo poema é, também, ato de posse sobre ele” (p. 18). Nesse sentido, acabamos por cometer um ato de traição. Contudo, antes de ser “vitimado por uma traição, o poema é que é infiel por natureza, pois não abre mão de estar disponível para o exercício de infinitos e anônimos atos de amor” (idem, p. 18-19). Esse é o único caso que a exclusividade absoluta seria limitadora, triste e reducionista.

Em outras palavras, o ato de ler é uma relação puramente dialógica com seu leitor. Ler é ser capaz de criar sentidos e significados. Esse significado, o menino Drummond encontrou em Júlio Verne, mas não o encontrou em Assis Brasil.

Esse distanciamento de Carlito com a obra indicada para a leitura fez com que ele chegasse a uma resolução: “Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto / condenando este Assis a ler a sua obra”. Ou seja, Assis Brasil lerá sua própria obra, enquanto ele, Carlos, lerá aquilo que para ele faz sentido, assume significado, como é o caso de Júlio Verne. Sem significado, não há prazer em ler. A vontade de ser rei também se fez presente em outro poema “Para Sempre” (OC, 2002, p.491) - “Fosse eu rei do mundo /Baixava uma lei: / Mãe não morre nunca / Mãe ficará sempre / Junto de seu filho”. Ler o que não se gosta e ter as mães para sempre são dois desígnios que poderiam perdurar em qualquer circunstância.

Essa reação é de um leitor maduro, que cedo despertou para a leitura, que leu aquilo que lhe interessava. Não estava disposto, assim, a ler um livro que para ele não fazia o mínimo sentido. Até porque “Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular” (idem, ibidem). É preciso se identificar com o que se lê, caso contrário, a leitura tornase um desprazer.

Ler significa entendimento e questionamento de si e do mundo. A leitura sempre esteve presente na vida do menino Carlos Drummond de Andrade. O poder aquisitivo de sua família permitiu que tivesse acesso não só a livros e a jornais, mas a revistas, como a Tico-Tico e a Fon-Fon. Participou de um grêmio literário e na mocidade, integrou um grupo, Estrelas, de rapazes que também desenvolveram o gosto pela leitura. Iniciou lendo o mundo através das imagens e registrou-as em forma de poesia, de contos e crônicas. Foi um leitor solitário, astucioso e inteligente. Cedo leu os franceses, os ingleses, os portugueses, os brasileiros, leu por prazer e leu por obrigação.

O facto de se opor a um movimento elitista, como o Parnasianismo, não diminuiu sua admiração por Olavo Bilac (1865-1918), ou mesmo pelos simbolistas, tais como Alberto Moreira (1857-1937) e Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Todas essas leituras certamente contribuíram para o seu processo de escrita, logo é primordial entender como o poeta leu e foi lido.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.