quinta-feira, 20 de julho de 2023

Biblioteca Verde, Carlos Drummond de Andrade

 


BIBLIOTECA VERDE

– Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados em percalina verde.
– Meu filho, é livro demais para uma criança.
– Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
– Quando crescer eu compro. Agora não.
– Papai, me compra agora. É em percalina verde,
só 24 volumes. Compra, compra, compra.
– Fica quieto, menino, eu vou comprar.

– Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
– Está bem, Coronel, ordens são ordens.

Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde.

Sou o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.)
Ninguém mais aqui possui a coleção das Obras Célebres.

Tenho de ler tudo. Antes de ler,
que bom passar a mão no som da percalina,
esse cristal de fluida transparência: verde, verde...
Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa, Apolo nu, Vênus nua...

 

Nossa Senhora, tem disso nos livros?!...
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!

Espermacete cai na cama, queima a perna, o sono.
Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca
antes que pegue fogo na casa.

Vai dormir, menino, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.
Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

Mas leio, leio. Em filosofias tropeço e caio,
cavalgo de novo meu verde livro,
em cavalarias me perco, medievo;
em contos, poemas me vejo viver.
Como te devoro, verde pastagem!...
Ou antes carruagem de fugir de mim
e me trazer de volta à casa
a qualquer hora num fechar de páginas?

Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.

 

Carlos Drummond de Andrade, Boitempo II: menino antigo, 1973

 

 

“Iniciação literária”: a viagem do menino leitor

[…]

As experiências no Grêmio Literário e na escola fortalecem, paulatinamente, o leitor Drummond e alimentam o futuro escritor. Foi por essa idade que o menino-leitor fez um pedido ao coronel Carlos de Paula Andrade: que lhe comprasse a “Biblioteca Internacional de Obras Célebres, uma coleção de volumes, publicada pela “Sociedade Internacional” com sede e consultores, praticamente, pelo mundo inteiro e “no Brasil, José Veríssimo, João Ribeiro e Lindolfo Collor” (CANÇADO, 2003, p. 2003). O poema “Biblioteca Verde” (OC, 2002, p. 990- 992), seis estrofes, é o registro desse momento.

Na primeira estrofe, temos a insistência de Carlito para adquirir a Biblioteca Internacional de Obras Célebres. E o pai lhe diz “Meu filho, é livro demais para uma criança”. No entanto, ele já tem uma resposta pronta: “Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo”. Ou seja, nada ficará perdido, porque à medida que eu crescer, ainda continuarei lendo. Mas o coronel, que via Carlito ainda “pequeno” para aquele tipo de leitura responde-lhe: “Quando crescer eu compro. Agora não”. Mas o filho não se dá por vencido e continua a insistir: “Compra, compra, compra”. O pai se dá, então, por derrotado e diz: “Fica quieto, menino, eu vou comprar”. Ser leitor é ser insistente.

Na segunda estrofe, o coronel liga para o Rio de Janeiro e com toda imponência compra os tão pedidos livros: “Me mande urgente sua Biblioteca / bem acondicionada, não quero defeito”. E do outro lado da linha alguém, servilmente, responde: “Está bem, Coronel, ordens são ordens”. O verso denota com precisão as relações hierárquicas entre o comprador (coronel) e o vendedor dos produtos. Na modernidade, para integrar-se à sociedade é preciso responder a ela modelando-se a suas regras.

Na terceira, os livros chegam “cheirando a papel novo” e o menino sente-se o mais rico “destas redondezas”, porque agora é detentor de uma pequena fortuna. O sentimento não é de orgulho, mas de inveja de si mesmo, porque “Ninguém mais aqui possui a coleção / das Obras Célebres”, por isso mesmo ele precisa “ler tudo”. Mas antes, o menino se delicia passando a mão no livro, cujo material é percalina, um “cristal / de fluida transparência: verde, verde”. O sentimento é de carinho e de ternura apodera-se desse leitor.

Na quarta estrofe, é o início de uma aventura: conhecer o “Templo de Tebas. Osíris, Medusa/Apolo nu, Vênus nua...”. O espanto é grande diante da nudez: “Senhora, tem disso nos livros?”. Não sabíamos, e não tínhamos como saber, que o menino que se espantava com o nu naquele momento, em meados dos anos 70 escreveria um tipo de poesia que escandalizaria leitores “tradicionais”, que pareciam desconhecer ou não vivenciar “o amor erótico”. O livro O Amor natural (1992) revelou as poesias eróticas que Drummond manteve ocultas durante anos e só aceitou publicar após a sua morte, pois tinha receio do julgamento alheio e de ser chamado de “velho bandalho”. Era tanto material a ser lido, que começa a incomodar a própria família: “A mãe se queixa: Não dorme este menino. / O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!”. As leituras do menino leitor alteravam o cotidiano do clã dos Andrades.

Assim como o poeta lutou com as palavras, o menino lutou para ler sua Biblioteca “Mas leio, leio. Em filosofias /tropeço e caio, cavalgo de novo...”. Às vezes lia, não compreendia, mas permanecia firme diante de seu propósito. Só de uma coisa o menino tinha certeza “Tudo que sei é ela quem me ensina”. Nas palavras de Vicent Jouve [...] “É possível que a leitura – não exatamente a leitura, mas a cerimônia da leitura que a criança celebra com tanto gosto – seja um rito de introdução à intimidade. Ela é, ao mesmo tempo, seu meio, sua paródia, seu exercício real embora difícil” (JOUVE, 2002, p. 139-140). Esse ritual, no início, pode ser espinhoso, mas o hábito o torna prazeroso.

A Biblioteca era habilmente adaptada às necessidades dos leitores, com trechos e fragmentos da literatura e do pensamento filosófico, religioso e científico, seja “dos tempos antigos, medievais ou modernos”, a “Biblioteca acabava por ser uma compilação redonda e confiável da cultura humana” (idem, ibidem). Ela é sinônimo de liberdade, de conhecimento e de democratização do saber. Quanto mais contato com as bibliotecas, mais possibilidades de as crianças se interessarem pelos livros.

Além do pai, o irmão Altivo, estudante de direito, também foi grande incentivador de Carlos – “Feliz o menino ou adolescente que pode contar com a ajuda de alguém mais velho para caminhar entre os sonhos confusos da imaginação literária” (ANDRADE, 2003, p. 1218). Para ele mandou revistas, jornais, livros e o oportunizou a conhecer muitos escritores, dentre eles Fialho d’ Almeida (1857-1911) e Eça de Queirós (1845-1900). “Passar de Fialho a Eça foi um salto de vara curta: fiquei freguês do segundo, e, pela graça de Deus, cheguei cedinho a Machado de Assis. Deste não me separei nunca [...]” (idem, ibidem). Segundo Drummond, o irmão foi o responsável por conduzi-lo ao “país da literatura” [...] “A literatura vivia em mim, não existia lá fora” (idem, ibidem). A declaração do poeta nos revela que ele concebia a literatura como um conjunto de obras lidas que transformaram sua vida. Era uma experiência interna que ocorria entre ele, na condição de leitor, e o livro.

De leitor de revistas à Biblioteca Internacional: estamos diante de um leitor múltiplo, eclético. Sua entrada no “tamanho universo” da “Biblioteca Internacional ainda hoje tem, de cara, um efeito alucinatório, paralisante, próprio da chamada de submissão ao mundo duro, severo, impessoal da chamada “literatura sapiencial” que abre a coleção [...]” (CANÇADO, 1993, p. 47). O contato com tantas obras estrangeiras não tornou o menino um leitor deslumbrado com a cultura do colonizador. Pelo contrário. A obra drummondiana enaltece seu país e seu povo.

Todas essas obras contribuíram para criação de um leitor maduro e arguto, pronto para sair pelo mundo, como observamos em “Iniciação Literária” (OC, 2002, p. 989):

 

Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios...Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
Mas por que me deram para livro escolar
a Cultura dos Campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares
– soja – fumo – alfafa – batata doce – mandioca –
pastos de cria – pastos de engorda.
Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto
condenando este Assis a ler a sua obra.

 

Quando o matemático Arquimedes encontrou a solução para um dos problemas que resolvia, gritou: “eureka”. Quando o menino leitor descobre o mundo maravilhoso da arte de ler, ele diz: “Leituras. Leituras”. E compara sua descoberta às da personagem Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar pelo mundo em oitenta dias, de Júlio Verne.

Todavia, o prazer da leitura torna-se um desprazer, pois ao menino foi dado um livro de Assis Brasil, onde “O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares / – soja – fumo – alfafa – batata doce – mandioca – / pastos de cria – pastos de engorda”. O diálogo com outros autores, a intertextualidade, que trabalhamos no terceiro capítulo, é parte do poema. Na primeira estrofe, o poeta faz uma referência ao escritor francês Júlio Verne (1828-1905) e sua obra A volta ao mundo em oitenta dias (1872). Na segunda, o homenageado é o escritor brasileiro Francisco de Assis Almeida Brasil (1932) e a obra Cultura dos campos (1977).

O sujeito lírico questiona por que lhe foi dado o “livro escolar / a Cultura dos Campos de Assis Brasil?”, cujo assunto é desestimulante para sua idade e que o afastava da obra minando seu interesse em continuar lendo. Ler por obrigação é o modo mais rápido de criar não leitores.

Quanto à leitura de um poema, Ítalo Moriconi (1992) afirma que ele sempre está aberto à interpretação do leitor. Acrescenta que “Toda leitura, sendo ato de amor pelo poema é, também, ato de posse sobre ele” (p. 18). Nesse sentido, acabamos por cometer um ato de traição. Contudo, antes de ser “vitimado por uma traição, o poema é que é infiel por natureza, pois não abre mão de estar disponível para o exercício de infinitos e anônimos atos de amor” (idem, p. 18-19). Esse é o único caso que a exclusividade absoluta seria limitadora, triste e reducionista.

Em outras palavras, o ato de ler é uma relação puramente dialógica com seu leitor. Ler é ser capaz de criar sentidos e significados. Esse significado, o menino Drummond encontrou em Júlio Verne, mas não o encontrou em Assis Brasil.

Esse distanciamento de Carlito com a obra indicada para a leitura fez com que ele chegasse a uma resolução: “Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto / condenando este Assis a ler a sua obra”. Ou seja, Assis Brasil lerá sua própria obra, enquanto ele, Carlos, lerá aquilo que para ele faz sentido, assume significado, como é o caso de Júlio Verne. Sem significado, não há prazer em ler. A vontade de ser rei também se fez presente em outro poema “Para Sempre” (OC, 2002, p.491) - “Fosse eu rei do mundo /Baixava uma lei: / Mãe não morre nunca / Mãe ficará sempre / Junto de seu filho”. Ler o que não se gosta e ter as mães para sempre são dois desígnios que poderiam perdurar em qualquer circunstância.

Essa reação é de um leitor maduro, que cedo despertou para a leitura, que leu aquilo que lhe interessava. Não estava disposto, assim, a ler um livro que para ele não fazia o mínimo sentido. Até porque “Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular” (idem, ibidem). É preciso se identificar com o que se lê, caso contrário, a leitura tornase um desprazer.

Ler significa entendimento e questionamento de si e do mundo. A leitura sempre esteve presente na vida do menino Carlos Drummond de Andrade. O poder aquisitivo de sua família permitiu que tivesse acesso não só a livros e a jornais, mas a revistas, como a Tico-Tico e a Fon-Fon. Participou de um grêmio literário e na mocidade, integrou um grupo, Estrelas, de rapazes que também desenvolveram o gosto pela leitura. Iniciou lendo o mundo através das imagens e registrou-as em forma de poesia, de contos e crônicas. Foi um leitor solitário, astucioso e inteligente. Cedo leu os franceses, os ingleses, os portugueses, os brasileiros, leu por prazer e leu por obrigação.

O facto de se opor a um movimento elitista, como o Parnasianismo, não diminuiu sua admiração por Olavo Bilac (1865-1918), ou mesmo pelos simbolistas, tais como Alberto Moreira (1857-1937) e Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Todas essas leituras certamente contribuíram para o seu processo de escrita, logo é primordial entender como o poeta leu e foi lido.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

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