sexta-feira, 21 de julho de 2023

A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade


 

 

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

 

Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo, 1945

 

Questionário sobre o poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade

1. Publicado na obra A rosa do povo (1945) e escrito em um momento histórico conturbado - ditadura Vargas no Brasil e Segunda Guerra Mundial -, o poema "A flor e a náusea" deixa transparecer o sentimento do eu lírico em relação a esse contexto. Com base nas três primeiras estrofes, responda:

1.1. Como se caracteriza o ambiente e o tempo em que vive o eu lírico? Justifique sua resposta com palavras, expressões e versos do texto.

1.2. Quais são os desejos do eu lírico nesse contexto? Justifique sua resposta com versos do texto

2. Nas estrofes de 4 a 7, o eu lírico fala sobre si mesmo.

2.1. O que se sabe do eu lírico por meio desses versos?

2.2. Levante hipóteses: Essas características permitem associar o eu lírico a quem?

3. As três últimas estrofes falam sobre o nascimento de uma flor.

3.1. Levante hipóteses: Por que esse acontecimento é tratado como fora do comum no contexto do poema?

3.2. Como o eu lírico descreve a flor que nasceu? O que há de inesperado nessa descrição?

3.3. Quais sentimentos essa flor desperta no eu lírico? Justifique sua resposta com versos do poema

3.4. Releia o poema e conclua: Qual sentido maior se pode atribuir ao nascimento dessa flor, levando em consideração todo o contexto de produção do poema? Indique o verso que resume essa ideia.

(Fonte: https://atividadesdeportugueseliteratura.blogspot.com/2019/08/a-flor-e-nausea-interpretacao-com.html)





Textos de apoio sobre o poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade

O poema A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade, poeta moderno brasileiro, faz parte da coletânea intitulada A rosa do povo, publicada em 1945. A obra insere-se no que os críticos consideram a fase social do poeta, a qual a entendem como uma obra de maturidade. Drummond apresenta uma expressão carregada de ironia e cinismo ao longo da obra, reflexo de um ambiente histórico denso que incorpora conflitos e paradoxos; nela, consciente de suas limitações, o poeta lança-se à incerteza do mundo e de si mesmo.

O poema A flor e a náusea é um exemplo do conflito de forças polarizadas que lutam por uma síntese, submergindo na interioridade como uma maneira de redescobrir o mundo. A angústia presente neste poema reflete com maestria a densidade do lirismo drummondiano, assim, vemos nele a existência aprisionada na solidão que recai sobre o indivíduo; seu ego fragmentado é vítima de um mundo também despedaçado, cercado de relações reificadas, a qual o poeta sintomatiza em tédio e enjoo. No entanto, outra forma se faz notar, crescendo, um encontro com a forma autêntica, escondida pela exterioridade, na paradoxal revelação de uma forma feia, em meio ao tumulto do mundo. A autenticidade aqui é encontrada na forma de uma flor. […]

A náusea, tão conhecida na literatura sartreana como sinônimo da liberdade que promove a abertura ao cru da existência, é substituída em Drummond pela incapacidade de reconhecer-se nas representações de seu tempo: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos./ Sob a pele das palavras há cifras e códigos.” (Idem, p.13). E adiante a condenação do mundo reificado: “Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem.” (Ibidem).

“Encontro e diálogo no poema A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade: interfaces com a filosofia de Martin Buber”, Fabrício Costa. In: Em curso, v. 5, 2018, ISSN 2359-5841 http://dx.doi.org/10.4322/2359-5841.20180507




Em A rosa do povo, livro de poemas de 1945, Carlos Drummond de Andrade – autor nascido em 1902, na cidade de Itabira, Minas Gerais – apresenta, de maneira bastante aguçada, duas vertentes temáticas principais que se fazem presente nos textos que compõem a coletânea: o engajamento social e a adoção de uma visão exacerbadamente metapoética, a partir das quais o autor reflete sobre a natureza da poesia, bem como sobre sua forma. Assim, sob o prisma de tais traços, Drummond permite uma rica variedade temática à obra, além de conceder poemas em que se podem perceber traços formais múltiplos.

Levando tais aspectos em consideração – sobretudo o que se refere à perspectiva revolucionária adotada pelo autor –, percebe-se nos poemas a presença de um forte lirismo – cujo surgimento deu-se num momento do século XX em que o mundo passou por radicais transformações culturais, históricas e sociais, impulsionadas pela Segunda Guerra Mundial – responsável por provocar no público a reflexão proposta por Drummond, que convida seu leitor a se questionar sobre o mundo e, principalmente, sobre estar no mundo.

Exemplo disso é o poema “A flor e a náusea”, cuja natureza formal – responsável pela força expressiva do poema – é estruturada a partir de versos livres, que se destacam pelo fato de serem compostos de frases curtas e diretas, com predomínio de uma frase por verso.

No que diz respeito à temática de “A flor e a náusea”, o poema apresenta a revolta do sujeito poético perante o mundo em que vive. Essa inquietação pode ser percebida, por exemplo, no mal-estar sentido por esse indivíduo quando ele reconhece tal contexto e percebe, em si, o desejo de vomitar sobre tudo o que lhe incomoda e perturba – daí a presença do vocábulo “náusea” no título da poesia em questão, o qual apresenta um oximoro: é dessa revolta que brota uma flor que, apesar de feia, é capaz de furar o asfalto.

Logo, a partir de tais considerações, pode-se constatar que Drummond causa um grande impacto em seu leitor ao aproximar, no pontapé inicial do poema, duas palavras semanticamente distintas: “flor” e “náusea”, ou seja, o nascer e a perfeição unidos ao nojo e à destruição.

Partindo para a leitura do poema, percebe-se que, no início da primeira estrofe, já é possível notar uma construção bastante rica de sentido, a partir da qual são enumerados aspectos abstratos e concretos, gerais e particulares. Exemplo disso, o fato de serem a classe social e as roupas os fatores responsáveis por prender o sujeito poético ao mundo em que vive e, simultaneamente, o caracterizar de maneira econômica e abrangente.

Também é percebida, nessa altura do texto, a relação do indivíduo com sua classe profissional. Ou seja, o poeta, enquanto profissional, possui o dever de restaurar seu vínculo com a sociedade sem abstrair-se de sua identidade de poeta, uma vez que sua participação social se dá por meio da própria poesia, da linguagem poética.

Há nessa estrofe, ainda, a presença de uma antítese formada na relação das cores – branco e cinzento – escolhidas pelo autor para descrever o contraste entre o sujeito poético e o lugar em que se encontra e, assim, ressaltar a indiferença e o isolamento desse indivíduo no sombrio mundo que o cerca. Por meio de outra figura estilística, a paranomásia, o poeta aproxima as palavras “mercadorias” – representação do concreto – e “melancolias” – representação do abstrato, do psicológico –, de modo a ressaltar, por meio desse jogo de palavras, o desgosto que o sujeito poético sente pelo mundo capitalista e consumista em que vive.

No primeiro verso da segunda estrofe, por sua vez, o poeta diz que os olhos que contemplam o relógio da torre encontram-se sujos e, partir de tal afirmação, sugere o deslocamento de uma característica dos objetos “torre” e “relógio” para os olhos, que parecem contaminados diante da sujeira do ambiente. Vale ressaltar, ainda, que tal como a rua é poluída e cinzenta, também são sujos a torre e o relógio que nela se encontram. O autor utiliza adjetivos de cunho negativo para caracterizar, nessa estrofe, o tempo que se estava vivendo, o qual, para esse indivíduo desolado, é um tempo “de fezes”, um tempo “pobre”.

Na terceira estrofe do poema, vê-se que, para os habitantes desse mundo perturbado, que se encontram doentes, há pouca esperança – há apenas o sol como consolo, e como consolo apenas. As pessoas, metaforizadas na imagem dos muros, são surdas e, na tentativa descontente de comunicar-se, o poeta ressalta o profundo sentimento de solidão que toma conta do sujeito poético e faz emergir, ainda, a indiferença das pessoas para com ele.

No segundo verso dessa estrofe, por sua vez, há uma referência ao momento histórico vivido no Brasil, em que, sob um regime de ditadura, as pessoas viam-se em um momento de proibições e, por isso, escondiam, na linguagem, múltiplos sentidos e significações.

Na quarta estrofe, o sujeito faz uma série de considerações, tais como a reflexão feita por esse indivíduo acerca de si próprio e das relações que trava no âmbito social. Nesse processo de reavaliar sua existência, é tomado por uma forte sensação de perda, inutilidade e frustração ao notar que a incomunicabilidade faz com que as relações entre os homens se revelem dilaceradas.

Faz-se presente na quarta estrofe, ainda, uma forte e importante crítica à falta de liberdade com a qual esses indivíduos precisam lidar nesse período. Esse registro pode ser notado no fim dessa estrofe, quando o fato é agravado pela conformação construída através da metonímia do sétimo verso: “e soletram o mundo, sabendo que o perdem”.

No verso de abertura da quinta estrofe, por sua vez, o poeta nota que, independentemente da época ou do lugar, a desordem é um traço ordinário das relações sociais. Além disso, pode-se notar que, nessa estrofe, é revelada a consciência de culpa do sujeito poético quanto aos “crimes” que cometera, tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos outros indivíduos, seus semelhantes, seja por meio de atitudes, ou, ainda, por meio da omissão, uma vez que esse sujeito considera-se, dada a sua condição de artista, responsável pela edificação do cotidiano. Além disso, o poeta se incrimina por nutrir-se de uma “ração diária de erro” (quinto verso) nas esferas individual e coletiva e, assim, pecar quanto à falta de consciência perante a injustiça social que assola seu país.

No que diz respeito ao plano sintático dos dois últimos versos dessa estrofe, nota-se o paralelismo, que, no contexto dessa construção, remete às notícias falsas trazidas pelos jornais, responsáveis, entre outras coisas, pela alienação da população.

A sétima estrofe do poema inicia-se com o verso “Uma flor nasceu na rua!”, que pode ser considerado o ápice do poema, ou seja, seu clímax. O fato de esse mesmo verso ser pontuado com uma exclamação dá aos leitores a sensação de que o sujeito poético, sempre com a emoção controlada, mesmo diante da revolta e do inconformismo, nessa passagem exclama sua exaltação, enchendo a “rua cinzenta” com seu grito.

A imagem dessa flor contrasta com os “[...] bondes, ônibus, rio de aço do tráfego” (segundo verso), elementos que representam o progresso, a tecnologia e, em certa instância, os responsáveis pela perda da sensibilidade e do lirismo bastante observada nos tempos modernos.

Essa flor, além disso, é capaz de iludir a opressão, representada, no poema, pela polícia, utilizada pelos opressores para manter o status quo; logo, a flor, ao romper o asfalto, possui a força de uma revolução. Assim, ela simboliza a esperança que, ainda tímida, se ergue contra a alienação e a desumanização oriundas do sistema capitalista, da guerra e da ditadura.

Na oitava estrofe, em que é reforçado o caráter simbólico desse elemento, o sujeito poético garante que se trata, de fato, de uma flor, mesmo que essa não possa ser percebida por sua cor, tampouco por suas pétalas, que não se abrem.

Pode-se notar, ainda, a ênfase que é dada, nas estrofes finais do poema, à feiura da flor, característica que aparece tanto na oitava quanto na nona estrofe do texto. A necessidade de enfatizar esse aspecto explica- -se graças ao fato de a flor representar uma revolução que não ocorre de maneira pacífica e bela. Pelo contrário, a revolução simbolizada na figura da flor ocorre de maneira dura e requer muita luta e muitos confrontos.

Na última estrofe do poema, portanto, vê-se o êxito do sujeito poético em superar a náusea com a ajuda da flor, que, mesmo sendo uma forma insegura, possui uma força incontrolável: a força da revolução.

“A perspectiva revolucionária e a metapoética em A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade”, Bárbara Duarte Baioco. In: Primeiros ensaios de literatura : das trovas ao testemunho [recurso eletrónico] / organizado por Isabela Dantas, Andréia Delmaschio e Wallysson Soares. – Vitória, ES : Edifes, 2021.

 



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