Ivo Machado, "à proa do meu navio", Facebook, 12-12-2023
ESCREVO O QUE LEMBRO
à Madalena,
minha neta recém-nascida
Hoje nasceu uma estrela depois tudo foi o que se sabe de luz coberta de amor cercada estranhamente antes de alegria outra forma de melancolia oh, meu bem — De mim o que te pertence? tenhas todo o Tempo (por mim passou depressa) oh, minha estrela — escrevo o que lembro ah, contigo nasci de novo.
Linhas de
leitura sobre o poema “Escrevo o que lembro”, de Ivo Machado:
O poema inicia comparando o
nascimento de Madalena ao surgimento de uma estrela. Essa estrela traz consigo
luz e amor, simbolizando não apenas o nascimento físico, mas também um
renascimento emocional para o sujeito poético.
Madalena é descrita como cercada
de luz e amor. No entanto, há uma melancolia presente antes da alegria plena.
Essa dualidade reflete a complexidade das emoções humanas diante de momentos
significativos.
O sujeito poético expressa o
desejo de que Madalena tenha “todo o Tempo”. Esta frase reconhece que o tempo
passou depressa para ele e, ao mesmo tempo, reflete sobre a efemeridade da
vida.
As expressões “luz coberta” e
“amor cercada” simbolizam o desejo do poeta de proteger e cuidar da sua neta.
Essa imagem sugere um ambiente seguro e acolhedor.
A pergunta “De mim o que te
pertence?” explora o que do seu ser ele passará para ela, sugerindo uma herança
emocional e espiritual.
A declaração "escrevo o que
lembro" sublinha o papel do poeta como cronista das emoções, usando a
escrita para preservar memórias e sentimentos.
Os termos afetuosos como “meu
bem” e “minha estrela” revelam o profundo amor do sujeito poético por Madalena,
destacando a importância dos laços familiares.
Apesar da melancolia e da
passagem do tempo, o nascimento da neta Madalena traz uma renovação. É uma nova
oportunidade de viver e sentir, marcando um momento significativo na vida do
poeta.
Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem
sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém,
mas não ter sentido algum
Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia
eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem
e que aqui esteve presente
Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste
Ai se eu pudesse não cantar «ai se eu pudesse»
e lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse
no silêncio que fizesse
uma voz que fosse minha
cantar alguém cá dentro
Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza
que nada mais certo existe
além da grande incerteza
de não estar certa de nada
Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste
Ana Moura, in Desfado.
Letra e música de Pedro da Silva Martins
"Desfado",
escrito por Pedro da Silva Martins e interpretado por Ana Moura, é um poema que
subverte a tradição do fado português, oferecendo uma reflexão metalinguística
sobre o próprio conceito de destino e saudade. Este texto não apenas celebra a
ambivalência emocional característica do fado, mas também questiona e
desconstrói as noções de destino, tristeza e alegria.
Desde o
início, o poema estabelece uma relação paradoxal com o destino: "Quer o
destino que eu não creia no destino / E o meu fado é nem ter fado nenhum".
A palavra "fado" aqui carrega uma dupla conotação, referindo-se tanto
ao destino inevitável quanto ao género musical tradicional. A negação do
destino — ou a ideia de ter um fado "sem sentido algum" — desafia a
fatalidade típica do fado, abrindo espaço para uma abordagem mais pessoal e
subjetiva da existência.
O poema
prossegue com uma exploração profunda da dualidade emocional: "Ai que
tristeza, esta minha alegria / Ai que alegria, esta tão grande tristeza".
Esta ambiguidade emocional é central ao fado, mas aqui é elevada a um novo
nível de introspeção. A justaposição de alegria e tristeza cria uma tensão que
revela a complexidade das emoções, refletindo a incerteza e a instabilidade da
vida.
A
saudade, um tema recorrente no fado, é abordada de maneira inovadora: "Ai
que saudade que eu tenho de ter saudade / saudades de ter alguém que aqui está
e não existe". A saudade de uma ausência presente sugere uma nostalgia
paradoxal, onde o sujeito lírico anseia por uma ligação com alguém que nunca
esteve verdadeiramente presente. Este sentimento de ausência dentro da presença
destaca a fragilidade das relações e a constante busca por significado.
Uma das
características mais marcantes do poema é a sua reflexão sobre o próprio ato de
cantar o fado: "Ai se eu pudesse não cantar 'ai se eu pudesse' / e
lamentasse não ter mais nenhum lamento". Esta autocrítica sugere um desejo
de transcender as limitações do gênero e encontrar uma voz autêntica dentro do
silêncio. A voz que "fosse minha" representa a busca por uma identidade
própria, distinta das tradições impostas.
O poema
conclui com uma meditação sobre a incerteza: "Na incerteza / que nada mais
certo existe / além da grande incerteza / de não estar certa de nada".
Este reconhecimento da incerteza como a única certeza da vida reflete um
profundo existencialismo. A aceitação da incerteza não é apenas uma resignação,
mas uma afirmação da liberdade individual e da complexidade da experiência
humana.
Vamos analisar como a imagem do
"fundo do mar" é trabalhada como metáfora em cinco poemas de Sophia
de Mello Breyner Andresen ("Fundo do Mar", "Gráfico",
"Assassinato de Simonetta Vespucci", "Caminho da Índia" e
"Da Transparência"), revelando-se como um símbolo de beleza e perigo,
renascimento, desolação, memória histórica ou introspeção.
FUNDO DO MAR
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa,
Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I, 1975,
Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª
ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial
Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de
Pedro Eiras.
No poema "Fundo do Mar",
Sophia de Mello Breyner Andresen pinta o fundo do mar como um local de
maravilha e de terror simultâneos. O sujeito poético descreve um mundo onde
"as plantas são animais / E os animais são flores", subvertendo as
expectativas do leitor sobre a ordem natural das coisas. Este mundo subaquático
é silencioso, afastado da agitação da superfície, e habitado por criaturas como
o cavalo-marinho e o polvo, cujos movimentos são retratados com uma graça quase
etérea. Contudo, a beleza deste lugar esconde um perigo latente, simbolizado
pelo "monstro em si suspenso". A imagem do "tempo poisa / Leve
como um lenço" sobre a areia sugere uma passagem tranquila do tempo, mas
não elimina a presença constante do perigo. Este poema utiliza o fundo do mar
como uma metáfora para a dualidade da existência, onde a beleza e a ameaça
coexistem.
Cianómetro
GRÁFICO
I
Curva dos espaços, curva das baías,
Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?
II
Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.
III
A mulher branca que a noite traz no ventre
Veio à tona das águas e morreu.
IV
Chego à praia e vejo que sou eu
O dia branco.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c.
1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália
Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial
Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio
& Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
No poema "Gráfico",
o fundo do mar aparece na segunda estrofe como um local de nascimento e
descoberta: "Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais / Do fundo do
mar. / Eu nasci há um instante." Aqui, o fundo do mar é associado com o
início da vida e a novidade, contrapondo-se à sensação de sepultamento do corpo
mencionada na primeira estrofe. A referência a este espaço subaquático sugere
uma busca por renovação e um desejo de ligação à essência primordial da vida. O
fundo do mar torna-se, assim, um símbolo de regeneração e exploração,
contrastando com a estática e a inutilidade dos "gestos inúteis" da
superfície.
ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI
[I]
Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse — de repente.
Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exatas do destino.
Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.
Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.
E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
[II] Caminhava fito.
Sobre o seu ombro esquerdo
Um pássaro noturno e verde não cantava.
Obscuras correntes,
Desconhecidas direções do vento,
Secreto curso de estrelas invisíveis.
[III] Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto,
Morto em cada imagem.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c.
1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália
Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial
Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio
& Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
No terceiro segmento do poema "Assassinato
de Simonetta Vespucci", o fundo do mar é utilizado para evocar um sentido
de desolação e morte: "Tu e eu vamos / No fundo do mar / Absortos e
correntes e desfeitos." A imagem é carregada de melancolia e resignação,
sugerindo uma união na morte ou no esquecimento. Os versos seguintes reforçam
esta visão de desintegração: "Agora és transparente / À tona do teu rosto
vêm peixes / E vens comigo / Morto, morto, morto". A repetição da palavra
"morto" intensifica o sentimento de aniquilação. Neste contexto, o
fundo do mar serve como um cenário de perda e de dissolução da identidade, em
contraste com a vida vibrante e a descoberta presentes em outros poemas.
Retrato póstumo de Simonetta Vespúcio por Sandro Botticelli
Trata-se de um poema ambíguo, pois Simonetta
Vespucci (1453-1476), embora tenha sido uma figura histórica real, não morreu
assassinada, mas sim de tuberculose. Conhecida como uma das mulheres mais belas
de Florença, Simonetta foi musa de artistas como Sandro Botticelli (1445-1510),
que supostamente a retratou como figura central em suas obras "A
Primavera" e "O Nascimento de Vénus" (ambas na Galleria degli
Uffizi, Florença, Itália). A hipótese de que Sophia de Mello Breyner Andresen
"assassina" Simonetta metaforicamente no poema pode ser explorada
como uma maneira de abordar a destruição de uma idealização ou a confrontação
de uma beleza eterna e imaculada com a realidade da morte e da desintegração.
Esta "morte" poética de Simonetta pode representar a tentativa da
autora de desconstruir a imagem idealizada e intocável que Botticelli e outros
artistas perpetuaram, trazendo à tona a mortalidade e a vulnerabilidade
inerentes a qualquer ser humano, por mais idealizado que seja.
CAMINHO DA ÍNDIA
I
Ante o seu rosto pára a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.
Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento.
II
Que no largo mar azul se perca o vento
E nossa seja a nossa própria imagem.
Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.
E os lemes quebrados dos capitães mortos
E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
NO TEMPO DIVIDIDO, 1.ª ed., 1954, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed.,
1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração
de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed.,
revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim
(5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Federico Bertolazzi.
No poema "Caminho da Índia",
o fundo do mar aparece como um local histórico e mítico: "E os lemes
quebrados dos capitães mortos / E os náufragos azuis do fim do mundo / Na rota
de todos os portos / No fundo do mar profundo". Aqui, o fundo do mar é um
repositório de memórias e de restos de jornadas passadas. É um lugar onde se
depositam os vestígios das grandes explorações e das tragédias marítimas. A
imagem dos "lemes quebrados" e dos "náufragos azuis" evoca
a história e a tragédia dos exploradores que se aventuraram nas águas
desconhecidas. O fundo do mar, neste poema, é uma metáfora para o legado da
exploração e para a inevitável mortalidade daqueles que ousam desafiar o desconhecido.
DA TRANSPARÊNCIA
Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres
Sophia de Mello Breyner Andresen,
GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1972, Lisboa,
Edições Ática; 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Xavier
Sousa Tavares; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na
Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço.
Por fim, em "Da
Transparência", o fundo do mar é utilizado como uma metáfora para a
alma humana: "No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios / Mas
sufocado sonho". A ausência de corais e búzios — elementos típicos e belos
do fundo do mar — sugere uma profundidade interna que é dominada pelo sonho e
pela introspeção. Estes sonhos são descritos como "condutores silenciosos
canto surdo / Que um dia subitamente emergem / No grande pátio liso dos
desastres". A imagem do fundo do mar serve aqui para ilustrar a
profundidade e a complexidade dos sonhos e desejos humanos, que são ocultos e
só emergem em momentos de crise ou de revelação.
Os
pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral, 1.ª ed., 1950,
Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália
Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de
José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed.,
revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim
(6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
Intertextualidade
O poema “Praia”, de Sophia
Andresen, estabelece um diálogo intertextual com os poemas “Horizonte” e “D.Dinis”, de Fernando Pessoa, ambos presentes na Mensagem.
D.
DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio1, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho2 obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
9-2-1934 Mensagem.
Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
HORIZONTE
Ó
mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração3,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério4
Esplendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria5 do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos6 merecidos da Verdade7.
s.d. Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
(Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).- 58. Disponível
em: http://arquivopessoa.net/textos/2380
____________
Notas: 1 Arroio:
regato. 2 Marulho: mar + barulho; agitação das ondas. 3 Cerração: nevoeiro denso; escuridão; trevas. 4 Sidério:
sidéreo; sideral, astral, celeste. 5 “aquela fria / luz que precede
a madrugada, / E é já o ir a haver o dia / Na antemanhã, confuso nada” (in
“Viriato”) – fronteira entre o desconhecido e o conhecido. 6 Beijos
– recompensa. 7Verdade – conhecimento.
Para
identificar as imagens no poema “Praia” de Sophia de Mello Breyner Andresen que
parecem ter sido inspiradas pelos poemas “Horizonte” e “D. Dinis” de Fernando
Pessoa, é importante analisar os temas e as metáforas partilhadas entre os
textos.
A "antiquíssima nostalgia de ser mastro" (v.
11) que baloiça nos pinheiros sugere uma ligação com o passado marítimo de
Portugal, evocando a era dos Descobrimentos e a exploração dos mares. Esta
linha de pensamento liga-se com os poemas “D. Dinis” e “Horizonte”.
No poema “D. Dinis”, Pessoa explora a ligação entre a
terra e o mar, simbolizada pelos pinhais que "ondulam sem se poder
ver". A imagem dos pinhais, presente em ambos os poemas, serve como um
ponto de conexão. Em “Praia”, os pinheiros baloiçam com nostalgia, enquanto em
“D. Dinis”, eles são a voz da terra ansiando pelo mar. Ambos os textos utilizam
a natureza para meditar sobre a história e a identidade nacional, evocando um
sentimento de saudade em “Praia” e o desejo de exploração em “D. Dinis”.
“Horizonte” também reflete um desejo de descoberta e
transcendência. A ideia de um mar mítico e ancestral presente em
ambos os poemas sugere uma intertextualidade. Pessoa escreve sobre o mar como um espaço anterior a nós, cheio de medos e
mistérios que, uma vez desvendados, revelam uma beleza sublime. A descrição da linha
severa da costa que se revela em árvores, aves e flores quando a nau se
aproxima reflete um processo de revelação e desvendamento. Os
pássaros de Sophia, apesar de terem uma conotação mais trágica, ainda se
relacionam com a descoberta e a revelação, semelhante ao desembarque descrito
por Pessoa. As ondas de Sophia (vv. 9-10) quebram contra a luz, criando uma
imagem forte e arquitetónica, enquanto Pessoa descreve a revelação da paisagem
à medida que a nau se aproxima (vv. 8-10). Em ambos os casos, há uma
transformação visual da natureza com a proximidade e a luz.
Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.
Aguinaldo
Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de
Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de
1958
Análise literária do poema
O poema
"Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento
Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a
realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa
limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o
sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade
do espírito e da imaginação.
O poema
inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho
irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a
realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de
transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do
poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e
alcançar lugares além da sua prisão insular.
O sonho
do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando
pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos
vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”),
encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um
dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos
veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de
que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético
podem viajar e deixar uma marca.
A
impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição
socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas
circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as
oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a
liberdade imaginativa.
O poema
constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:
Presente/Futuro:
O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto
o futuro é sugerido pelo sonho que irá.
Realidade/Fantasia:
A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante,
capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.
Pobreza/Riqueza:
A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada
pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.
Prisão/Liberdade:
A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.
Infelicidade/Felicidade:
A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e
idealizada nos sonhos que se movem.
Estes
contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na
repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que
a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado
e a libertação futura.
O título
"Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a
expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração
de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a
voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem
sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este
sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida
por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas
pelo contexto colonial e geográfico.
Geração do Suplemento Cultural
A Geração
do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito
identificada com uma verdadeira postura de revolta.
O Suplemento
Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas
pela censura colonial da época.
A
situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à
volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de
tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana
Desta
forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou,
definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações
anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração
da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da
Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como
homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que
aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O
"eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um
"eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão
cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.
Do ponto
de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura
de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de
independência.
Fala do
homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares,
mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar
vida ao elemento "terra".
Os seus
textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a
revelar claramente as realidades.
A sua
principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua
terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às
últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do
enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior
intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente
combativa da problemática do ilhéu.
Consciencializar
o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico
geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do
Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra duma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Miguel Torga, Diário I, Coimbra, 1941. Poesia Completa, Círculo de Leitores, 2002
Comentário literário
Miguel
Torga, conhecido pela sua poesia ligada à terra, oferece-nos em "Bucólica"
uma reflexão sobre a essência da vida e os seus detalhes aparentemente
insignificantes. O poema, publicado no Diário I em 1941, convida-nos a
valorizar os pequenos momentos e a encontrar beleza nas coisas simples.
Desde o
início, o sujeito poético afirma que "A vida é feita de nadas" (v.
1), um verso que contém a filosofia subjacente ao poema. Os "nadas"
aos quais se refere são descritos ao longo das estrofes: as "grandes
serras paradas", as "searas onduladas pelo vento", as
"casas de moradia caídas", a "poeira", a "sombra de
uma figueira", e o momento sublime de "ver esta maravilha: / Meu pai
a erguer uma videira" (vv. 12-13). Estes elementos, aparentemente simples
e despretensiosos, ganham vida através da poesia de Torga, que os eleva à
condição de símbolos poéticos.
Os
"sinais/ De ninhos que outrora havia/ Nos beirais" (vv. 7-9) assumem
uma importância particular dentro do poema. Representam não apenas um passado
físico, mas também um passado emocional, relembrando espaços habitados e
memórias que persistem no presente do sujeito poético.
O clímax
emocional do poema surge no verso 13, onde o eu poético expressa admiração ao
observar o pai a cuidar da videira. Este momento é carregado de ternura e
reverência, destacando a figura paterna não apenas como um agricultor, mas como
um ser profundamente conectado à terra e à vida que ela sustenta.
A figura
de estilo presente no último verso, uma comparação entre o ato do pai e a ação
maternal de trançar o cabelo de uma filha, revela a habilidade de Torga em unir
o natural com o humano, sublinhando a relação íntima entre o homem e a
natureza. Esta comparação não só enriquece o poema com um sentido de
familiaridade e afeto, mas também ressalta a importância do trabalho árduo e do
amor no ciclo da vida.
Proposta
de escrita
Num texto
bem estruturado, reflete sobre os ‘nadas’ de que a tua vida é feita, ou seja,
os pequenos detalhes aparentemente insignificantes que carregam um significado profundo.
Poderá
também gostar de:
“A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões
para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha
de Poesia, 09-08-2013
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra.
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas;
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão, podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!
Cecília
Meireles (1901-1964), “Romance 53 ou Das Palavras Aéreas” in Romanceiro da Inconfidência, Parte 3. Rio de Janeiro: Livros
de Portugal, 1953
Análise dos principais aspetos do poema
O poema
“Romance LIII ou das palavras aéreas”, de Cecília Meireles, faz parte do Romanceiro
da Inconfidência, uma coleção de poemas inspirada na Conjuração Mineira,
uma rebelião fracassada contra o domínio colonial português no Brasil no século
XVIII.
No poema é explorada a dualidade das palavras como instrumentos de criação e destruição, de
liberdade e opressão, refletindo-se sobre o seu impacto profundo e muitas vezes
imprevisível na vida e história humanas.
O sujeito
poético começa por enfatizar a natureza fugaz das palavras. Elas são comparadas
ao vento que não retorna, indicando a sua transitoriedade e a rapidez com que
tudo pode ser formado e transformado por elas.
Apesar da
sua fugacidade, as palavras possuem uma potência estranha. Elas são capazes de
iniciar e direcionar o sentido da vida, cristalizar emoções como o amor,
incitar sonhos e audácias, mas também disseminar calúnias e causar derrotas.
As
palavras são descritas como frágeis como o vidro, mas poderosas como o aço.
Elas têm o poder de mover reis, impérios e povos, moldando o curso da história
e influenciando destinos.
O poema
aborda também a responsabilidade que vem com o uso das palavras. Elas podem
acusar, vigiar, prender, julgar e condenar. Podem ser usadas como instrumentos
de opressão ou libertação, dependendo de como são utilizadas.
Há um
contraste entre a leveza aparente das palavras, como "tênue seda", e a
sua capacidade de serem instrumentos de poder e justiça. Elas são tanto
símbolos de liberdade quanto de opressão, dependendo do contexto e da intenção
de quem as usa.
O poema termina
com uma reflexão sobre a ironia das palavras. Onde poderia haver perdão, elas
se tornam instrumentos de punição e sofrimento, exemplificado na imagem final
de "um homem que se enforca", mostrando como palavras mal empregadas
podem ter consequências trágicas e irreversíveis.
Exploração
de um fragmento do poema
AI, PALAVRAS!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Cecília Meireles, Obra
Poética
O título
da poesia está plenamente justificado nos três versos em que o vocativo comandado
pela interjeição aparece seis vezes e isto na 1.ª parte da composição, antes da
autora se espraiar em imagens significantes deste extraordinário e indefinível
significado que ela tenta sugerir, desde que, na 1.ª estrofe, diz «sois de
vento» , tentando já objetivar o referido significado numa imagem - o vento -
que, como as palavras, não se pode agarrar, o que aponta já para a incontável e
variada gama de signos que podem ser transmitidos pelas palavras.
Em toda a
poesia é evidente um misto de censura, acusação, elogio e angústia em que a
autora envolve - as palavras - intensificando esses sentimentos com o
emprego da referida interjeição.
O ritmo
ligeiro da poesia em verso de redondilha maior, sem rima consoante, e apenas, aqui
e além, uma certa musicalidade dada pela rima toante em o aberto - vossa,
retorna, transforma, nova, vossa,
porta, rosa, derrota, elabora,
retorta, poderosa, rodam - que
aparece alternadamente ao longo da poesia, está ao serviço da ideia que a
poetisa desenvolve desde o 3.° verso - a palavra é incorpórea, não se apanha,
não se vê, é efémera, móvel, na sua pronunciação, leve como o vento. No
entanto, à medida que o pensamento se desentranha, a poetisa vai concretizando
a afirmação do 2.° verso do 1.º dístico - «que estranha potência a vossa!» - e,
daí, a sucessão de valores denotativos e conotativos contidos nas - palavras.
A
pontuação colabora com a linguagem para traduzir o pensamento. Abundam as frases
exclamativas e reticentes que apontam para a função emotiva da linguagem ao
serviço desta mensagem poética que está, de certo modo, empenhada numa subtil denúncia
- o que está sugerido principalmente no último conjunto de versos.
«A Liberdade das almas.
ai! com letras se elabora .. »
Predomina
no texto o tempo verbal presente, o qual aponta para a intemporalidade das
afirmações da autora: foi, é e será sempre «estranha a potência das palavras».
A poetisa
debruça-se sobre este sugestivo signo - a palavra - e vai desdobrar em sucessivos
versos aquilo que ela pensa, em linguagem direta. Daí, os vocativos, os verbos na
2.ª pessoa e o possessivo vossa também na 2.ª pessoa.
A
obsessão com que se debruça sobre o tema é marcada:
- pelo
paralelismo: sois de vento, ides no vento
- pelas
repetições: há um verso que se repete três vezes - «Ai, palavras, ai,
palavras,»; o 1.º dístico repete-se no começo da 3.ª estrofe; o 4.º verso da 1.ª
estrofe também se repete integralmente no dístico que constitui a 2.ª estrofe
um tanto desgarrada, só formada de dois versos, mas fortemente incisiva no
contexto. Estas repetições transmitem à poesia um acentuado paralelismo
ideológico e uma cadência rítmica sugestivos do assombro que a poetisa sente e
deixa transparecer.
Vejamos
como justifica Cecília Meireles a significativa afirmação que faz no dístico exclamativo
com que inicia a poesia.
Note-se
que a poetisa diz: «Que estranha potência, a vossa!» e nesta expressão o significante
potência já, por si, mais quantitativo e ressonante que - poder -
vem ampliado pela expressão quantitativa - que - e qualificado pelo adjetivo
- estranha - que também aponta para uma indefinição, alargando o seu
sentido; e, de certo modo, prepara o qualificante do 4.° verso - «Sois de
vento». No mesmo verso, transpõe o possessivo - vossa - para o fim, o
que, numa frase elíptica do predicado, e alargada pela anástrofe - pois a ordem
direta seria - «Que estranha é a vossa potência!» transpõe o pensamento mais
para o indefinido e alonga-o mais do que se o possessivo acompanhasse o
substantivo.
«Sois de
vento, ides no vento» - Primeira definição que contrasta com a afirmação do 2.°
verso e que sugere a vaga, rápida, duração da palavra, quando
emitida oralmente, embora o seu efeito seja violento, forte, potente,
e tanto, que condiciona a vida do mundo. Por meio dela «tudo se forma e
transforma».
Logo
nesta estrofe, pois, paradoxalmente, diz das palavras - «sois de vento, ides no
vento». Note-se que neste verso, nas duas frases marcadas pelo paralelismo já
sugerido, se aponta para a fluidez da palavra, o que é reforçado pela repetição
do signo – vento – em especial à maneira de leixa-pren do 4.º para o 5.º verso
- ides no vento / no vento que não retorna. E, no entanto, apesar
da fugacidade da sua existência, é à custa dela, palavra, já se disse, que
«tudo se forma e transforma». Note-se, nestes dois últimos versos, o contraste entre
rápido e tudo, o jogo etimológico – forma e transforma
– e a rima interna, a fazer incisão sobre o poder da palavra e, de raspão, a
apontar, mesmo aqui, para o tema da mudança e para a irreversibilidade - no
vento que não retorna. O tempo passa, as palavras ficam, mas ajustadas a
novas ideias. O que foi denotação pode vir a ser conotação, mas fica.
No
dístico que constitui a 2.ª estrofe, a autora leva-nos a constatar mais um
paradoxo que é vincado pelo emprego de um verbo de movimento - ides - em
antítese com um verbo de estabilidade - quedais. Afinal, a palavra é
frágil - «Sois de vento, ides no vento -» (verba volant - as
palavras voam, diziam os latinos) e (contudo) «quedais com sorte nova!» Vai,
mesmo, mais longe e o ponto de exclamação traduz o espanto experimentado: não
só quedam, como quedam com sorte nova - isto significa a possibilidade que a
mesma palavra tem de se aplicar a sentidos vários e renovados, e de passar de
elemento caduco a elemento renovado, sempre rico de seiva que queda teimosamente.
Alarga, pois, neste dístico, o pensamento que começou a desdobrar-se com o
mesmo verso na 1.ª estrofe.
Na 3.ª
estrofe só aparece um adjetivo - estranha - num verso de um dístico que
se repete como um refrão, obsessivamente. A justificação da afirmação feita no
1.° dístico é transmitida, aqui, por substantivos predominantemente abstratos -
amor, sonho, audácia, calúnia, fúria, derrota... e outros não expressos,
mas que as reticências deixam supor. Note-se que, nesta série de definições
sugestivas de palavras, umas apontam para o seu aspeto positivo - amor,
sonho, audácia; outras para o negativo – calúnia, fúria, derrota – os
dois primeiros com a tónica em u e terminados em ditongo decrescente
fazem rima e anotam o sinal negativo que transmitem, e marcam uma certa
gradação crescente pois a calúnia leva à fúria e sucessivamente à
derrota onde a tónica em o aberta aponta para o nada, a
destruição. Serve-se, assim, de várias conotações mais restritivas que
desdobram a 1.ª afirmação de sentido genérico, coisificando a palavra
quando a faz - porta de saída para a expressão do pensamento. Também,
nesta estrofe, coisifica o estranho poder das palavras com uma imagem
sinestésica - gustativa (mel) e olfativa (perfume), a exprimir o amor
que sugestivamente cristaliza na objetivação expressiva da metáfora - em
vossa rosa. Através desta sugestiva e poética perífrase, traduz
simplesmente a força expressiva do sentimento que a palavra amor
significa numa gama variada de sensações. Note-se a sugestão dada pelo verbo cristalizar
- o qual polariza a fina essência do sentimento amoroso.
Nesta
mesma estrofe merecem um comentário especial os dois últimos versos «Sois o
sonho e sois o audácia». É, aparentemente, um verso mais curto, a sugerir a
rapidez do sonho e a violência da audácia, é um verso copulado, marcado pelo
paralelismo em que o 2.º membro marca já a transição para a série de sugestões
expressivas do último verso, as quais se desbobinam em frase assindética,
dissociando os vários momentos negativos do emprego das palavras, numa
gradação crescente, como já sugerimos.
É, porém,
na última estrofe que o pensamento da poetisa se vai abrir definitivamente a
transmitir a mensagem poética que vem sendo anunciada desde o princípio. A
poesia é uma chamada de atenção para a estranha potência das palavras,
não empenhada, fundamentalmente, como Manuel Alegre no soneto intitulado - As
Palavras - que é poesia de combate, de denúncia, ou como Eugénio de Andrade
que, com a poesia, igualmente intitulada, se situa no cruzamento dos dois, numa
poesia carregada de conotação e, por isso, menos objetiva na sua mensagem, mais
próxima da pintura abstrata e mais pessoal. Também Ruy Belo em «Homens de
palavra(s)» e Egito Gonçalves no poema «Com palavras» põem à nossa
consideração a referida estranha potência das palavras que de cada um de
nós faz um dicionário (mais ou menos volumoso). como diz o prosador, ou um
arquivo, como sugere o segundo. O mesmo tema inspira, pois, cinco artistas que,
embora se toquem em alguns pontos, têm, contudo, uma marca própria.
Cecília
Meireles oferece ao nosso pensamento uma poesia, fruto de uma análise marcadamente
objetiva, alertando-nos, sem nos obrigar a esforços para descobrir o que ela não
teve interesse em esconder.
Por isso
a 4.ª estrofe é a cúpula e sugestivamente nela predomina a imagem concreta para
provar essa estranha potência das palavras. Novamente o contraste entre:
- o
valor positivo delas - pois que, com letras - com palavras - se dá
ou se tira a liberdade (note-se o seu quê de amargura que traduz a
interjeição ai! e a insegurança sugerida pejas reticências);
- e o
valor negativo - são fina retorta onde se contêm os venenos humanos. Na química,
é a retorta elemento de trabalho para o bem e para o mal. Pois a autora conota,
com este objeto. o poder destruidor, negativo das palavras. O seu aspeto
negativo é significado concretamente e conotativamente por uma retorta onde se
fabricam os venenos humanos - alguns dos quais já foram sugeridos no
último verso da estrofe anterior. E, novamente, a poetisa nos leva a constatar
essa estranha potência, nas duas comparações concretizantes e paradoxais
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
a primeira superlativada pela
repetição do adjetivo frágil onde a comparação é feita com o vidro,
estabelecendo o mesmo grau de fragilidade; a segunda, determinada pelo adjetivo
poderosa, faz-se com o aço (e aço, aqui, pode conotar, por sinédoque, armas)
e marca a superioridade das palavras em relação às armas. A exclamação que
fecha estes quatro versos vinca bem o assombro que tal paradoxo determina.
Assinale-se,
nestes dois versos comparativos, uma espécie de quiasmo: - os adjetivos estão
nos extremos e os substantivos no meio, obrigando o 2.º verso a uma anástrofe
um tanto violenta. Colocando os adjetivos em lugar de relevo, a nosso ver,
torna mais expressivo o paradoxo.
A poesia
termina com dois versos que polarizam o pensamento que, gradualmente, se foi
desentranhando - as palavras são o grande motor do mundo -, pensamento que é transmitido
num crescendo de valores que o penúltimo verso sugere: os Reis são superados pelos
impérios e tudo pelos tempos. Veja-se a ligação assindética destes quatro
elementos que, dissociados. marcam melhor os quatro valores.
Estes
dois versos são reticentes pois que o que foi enunciado no penúltimo verso não
abarca toda a incalculável missão das palavras. Muito mais situações poderiam
ser equacionadas, e, mesmo assim, nunca cobririam toda a estranha potência das
palavras. Até o verbo rodar indica essa gravitação do mundo rotativamente a
partir do centro vital que são as palavras.
Poucos
são os adjetivos no texto e os poucos que há são abstratizantes.
Predominam
os substantivos, marcadamente abstratos, ao serviço da mensagem poética que
roda em torno de uma definição, o que solicita, naturalmente, o predomínio do
substantivo.
Dois sons
têm um certo relevo na poesia: a sibilante e a labiovelar (f, v). Parece-nos que
eles poderão ajudar a sugerir a mobilidade e a fluidez das palavras e também a
sua potência, (f. v.) - o que é principalmente sensível nas duas primeiras
estrofes.
Cecília
Meireles foi, pois, muito feliz nesta poesia, quer pelo rico conteúdo
ideológico que encerra, quer pela leveza e naturalidade com que conseguiu
sugeri-lo.
Lilás
Carriço, “Exploração do poema – Ai, Palavras!” in Literatura Prática
11.º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4.ª ed.) (1.ª ed.: 1977)