terça-feira, 20 de maio de 2025

Os que sobem, Carlos Conde


 


OS QUE SOBEM

 

Era operário vulgar

Mas dos tais que a trabalhar

Julgam descer à ruína;

Falador mas animado

Censurava em todo o lado

Os colegas de oficina

 

Censurava-os de cobardes

Só porque eles sem alardes

Cumpriam ganhando o pão

E então era dos primeiros

A arrastar os companheiros

Na guerra contra o patrão!

 

E ele que tinha ideais

Doutrinas várias das tais

De ferir matar às cegas

Foi de repente elevado

Ao posto de encarregado

P’ra mandar nos seus colegas!

 

Ficou doido radiante

Era o ponto culminante

De alguém que lhe dava a mão,

E então, cheiinho de engodos

Passou a ser pera todos

Muito pior que o patrão!...

 

Sei de muitos idealistas

Que são assim, dão nas vistas

Por forma vaga, imprecisa;

Mas em chegando o momento

Mudam logo o pensamento

Como quem muda a camisa!...

 

Carlos Conde

Original no Museu do Fado, em Lisboa. Disponível em linha: https://www.museudofado.pt/colecao/repertorio/os-que-sobem-carlos-conde-1945

 

 


 

Carlos Conde (N. 22 novembro, 1901 - M. 13 julho, 1981)

Carlos Augusto Conde, filho de Maria Antónia da Silva Conde e de Manuel José Conde, nasceu no dia 22 de Novembro de 1901 na povoação do Monte, Murtosa, distrito de Aveiro. Casou-se com Laura dos Santos em 18 de Setembro de 1936 e desse casamento nasceram três filhas, Noémia, Maria de Lourdes e Flora. Mais tarde mudam-se para Lisboa, fixando-se na Praça das Amoreiras e nestes primeiros anos de transição para a cidade, Carlos Conde emprega-se como chefe de escritório na firma F.H. de Oliveira.

Se antes deste seu percurso profissional, Carlos Conde já escrevia os primeiros versos, a história do fado veio a consagrá-lo como destacado poeta popularautor de inúmeros repertórios de fados e textos de cegadas, musicados ao longo das décadas de 20 e 30 do século passado. Quando questionado pela revista “ABC” sobre as temáticas dos seus versos dirá: “O amor, as mulheres, o campo. Adoro as flores, as águas claras, o sol, a luz, a natureza. Tudo o que tenha vida, que tenha alma.” (cf. “Revista ABC”, 23 de Janeiro de 1931). Dono de um talento imenso, a sua pena fixou o imaginário de Lisboa, descrevendo costumes, personalidades, recantos, becos, vielas, festividades e outros temas do quotidiano da capital.

Em 1924 o jornal “A Alma de Portugal” dava destaque a Carlos Conde, caracterizando o jovem poeta: “Carlos Conde pertence a essa plêiade de novos que nos últimos tempos se tem evidenciado, na sua bagagem literária encontram-se produções de merecimento (…) Carlos Conde não sendo contudo um consagrado é no entanto um novel com inspiração, a sua obra encontra-se espalhada nas mãos dos mais competentíssimos cantadores e dispersa nas colunas dos inúmeros jornaes onde tem colaborado com proficiente estudo.” (cf. “A Alma de Portugal”, 1ª Quinz. de Setembro de 1924). A notoriedade de Carlos Conde foi muitas vezes referenciada pelos periódicos de fado, que surgiram ao longo das décadas de 20, 30 e 40 do passado século, fulcrais na legitimação e divulgação desta expressão musical.

Dada a impossibilidade de nomearmos todos os textos de cegadas que Carlos Conde escreveu destacamos os títulos: “O Crime Daquela Noite” (1946) com música de Alfredo Silva, “Homem ao Mar” (1950) música de Casimiro Ramos, “Quatro Contos a Mais” (1959), música de Albertino Vilar, entre muitos outros textos. Estas e outras cegadas tinham lugar nas colectividades, clubes e festas que povoavam a cidade de Lisboa e arredores.

A paixão pela escrita leva Carlos Conde a participar e a concorrer em numerosos concursos poéticos alcançando, na maioria das vezes, os primeiros prémios e menções honrosas. Destaque para a vitória alcançada, em 1966, com a letra para o “Hino da Força Aérea”, reforçando os méritos entretanto já atribuídos ao poeta ao longo de outras décadas.

Profundamente acarinhado pelo universo do fado, os seus poemas foram cantados na voz dos grandes vultos do fado : Ada de Castro, Adelina Ramos, Amália Rodrigues, Argentina Santos, Ercília Costa, Fernanda Maria, Lucília do Carmo, Maria Amélia Proença, Maria da Fé, Alfredo Duarte Júnior, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo, Fernando Maurício, Gabino Ferreira, João Ferreira Rosa, Raul Pereira, Rodrigo, Vítor Duarte, entre muitos outros.

Carlos Conde foi autor de centenas de letras de Fado, e revelam-no como um dos expoentes máximo na área. Esses fados, traduziram-se em verdadeiros sucessos nas vozes de muitos fadistas: “A mulher que já foi tua”, “Baile dos Quintalinhos”, “Bairros de Lisboa”, “Um resto de Mouraria”, “O Fado da Bica”, “Não sou ciumenta”, “Rapsódia de fado antigo”, “Trem desmantelado”, “Não passes com ela à minha rua”, “Fins do século passado”, entre muitos outros…

Paralelamente à sua projecção como poeta, Carlos Conde foi alvo de um grande número de homenagens, com especial destaque para o almoço comemorativo do seu 50º aniversário, e que teve lugar no dia 22 Novembro de 1951, na Adega Mesquita, com a presença de Francisco Radamanto, Felipe Pinto, Dr. Amaro de Almeida, Amália Rodrigues, Teresa Nunes, Alfredo Marceneiro, entre outros. Outras festas de homenagens ocorreram contando com a presença de muitos nomes do universo artístico da rádio, do teatro e do fado e que souberam enaltecer a grandiosidade da sua obra poética e humana.

Vítima de um trágico acidente de viação, Carlos Conde viria a falecer em Julho de 1981.

Em 2001 a Câmara Municipal de Lisboa, presta ao poeta uma última homenagem, ao atribuir o seu nome a uma das artérias da cidade situada na zona de Campolide.

Paulo Conde, neto de Carlos Conde, lançou em Setembro de 2001 o livro “Fado, Vida e Obra do Poeta Carlos Conde”. Tratando-se de um inesgotável tributo ao seu avô, Paulo Conde revê toda a vida e consequente obra literária daquele que é hoje considerado como uma referência na poesia de fado.

 

Fontes: “Alma de Portugal”, 1ª Quinzena de Setembro de 1924. “A Canção do Povo”, 26 de Setembro de 1926. “Guitarra de Portugal2, 17 de Abril de 1926. “Guitarra de Portugal”, 10 de Agosto de 1928. “ABC”, 23 de Janeiro de 1931. “Guitarra de Portugal”, 15 de Março de 1948. Cartaz promocional da “Festa de Homenagem ao poeta popular Carlos Conde”, 29 de Março de 1958. “República”, 21 de Junho de 1966. Conde, Paulo (2001) “Fado, Vida e Obra do Poeta Carlos Conde”, Lisboa, Garrido Editores. “Correio da Murtosa”, 28 de Novembro de 2007. Adaptação de biografia gentilmente cedida por Paulo Conde.

 

Verbete biográfico disponível em: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/carlos-conde. Consultado em 2025-05-20



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domingo, 18 de maio de 2025

Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya, Jorge de Sena



 

CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, porque tudo é possível, que ele seja

aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,

onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém

de nada haver que não seja simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,

conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,

o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto

o que vos interesse para viver. Tudo é possível,

ainda quando lutemos, como devemos lutar,

por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,

ou mais que qualquer delas uma fiel

dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade

não tem conta o número dos que pensaram assim,

amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,

de insólito, de livre, de diferente,

e foram sacrificados, torturados, espancados,

e entregues hipocritamente à secular justiça,

para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,

a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas

à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,

foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,

e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,

ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras

por serem de uma classe, expiaram todos

os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência

de haver cometido. Mas também aconteceu

e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,

aniquilando mansamente, delicadamente,

por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,

foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha

há mais de um século e que por violenta e injusta

ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,

que tinha um coração muito grande, cheio de fúria

e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve,

nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)

de ferro e de suor e sangue e algum sémen

a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém

vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto o que mais importa – essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto

não é senão essa alegria que vem

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém

está menos vivo ou sofre ou morre

para que um só de vós resista um pouco mais

à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente,

sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,

e sobretudo sem desapego ou indiferença,

ardentemente espero. Tanto sangue,

tanta dor, tanta angústia, um dia

– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –

não hão de ser em vão. Confesso que

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos

de opressão e crueldade, hesito por momentos

e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,

quem ressuscita esses milhões, quem restitui

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes

aquele instante que não viveram, aquele objeto

que não fruíram, aquele gesto

de amor, que fariam “amanhã”.

E por isso, o mesmo mundo que criemos

nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa

que não é nossa, que nos é cedida

para a guardarmos respeitosamente

em memória do sangue que nos corre nas veias,

da nossa carne que foi outra, do amor que

outros não amaram porque lho roubaram.


Jorge de Sena, Metamorfoses, 1963


Goya, "El tres de Mayo de 1808" ou "Los fusilamientos de Príncipe Pío", 1814


O quadro "O 3 de maio de 1808" foi pintado por Francisco Goya (1746-1828) em 1814, seis anos depois da dramática situação que narra um dos momentos mais simbólicos da resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão Bonaparte. A este quadro liga-se um outro, "O 2 de maio de 1808" (pintado igualmente em 1814), que relata o primeiro episódio deste acontecimento, ocorrido na véspera, e presumivelmente presenciado pelo pintor.

Na manhã de 2 de maio, o lugar-tenente de Napoleão, o general Murat, seguido por uma coluna de cavalaria, foi atacado por um grupo de populares armados, enquanto atravessava a Porta do Sol em Madrid. Tendo rapidamente controlado a situação, os franceses, como represália pelo levantamento popular, ordenaram o fuzilamento de inúmeros civis. Estes massacres tiveram lugar durante o dia seguinte em vários pontos da cidade, junto ao Convento de Jesus, no Bom Retiro, na Casa de Campo, em Santa Bárbara, na Porta de Segovia e na montanha do Príncipe Pio, entre outros locais.

Anteriormente à ocupação francesa Goya mantinha alguma simpatia pelas ideias liberais, embora fosse pintor da corte. Para este artista a chegada do exército de Napoleão e a consequente queda da monarquia pareceu representar, num primeiro momento, a possibilidade de introdução do liberalismo no seu país. No entanto, o carácter destruidor que esta ocupação assumiu, associada a sangrentos massacres, frustraram qualquer esperança de libertação.

Os horrores e sofrimentos provocados pelos confrontos entre espanhóis e franceses durante a guerra, aos quais Goya teve oportunidade de assistir de forma direta, foram temas que o atormentaram e contribuíram para que, próximo do final da sua carreira, se tornasse pessimista e cínico relativamente à capacidade de destruição e ao ódio que a espécie humana era capaz de alimentar.

Antecedendo estas duas pinturas, a série de gravuras "Desastres de la Guerra" (desastres da guerra), realizadas em 1810, condensa uma abordagem ainda mais acutilante e emotiva relativamente a este momento de loucura da humanidade. Após a expulsão dos invasores franceses e restaurada a monarquia, Goya conseguiu que o novo governo regente lhe atribuísse um subsídio financeiro para a realização das duas telas comemorativas dos brutais massacres.

O quadro "O 3 de maio de 1808" apresenta dimensões (266 por 406 centímetros), temática e estilo que lhe imprimem um impacto impressionante. A técnica utlizada, de carácter marcadamente expressionista, caracteriza-se por pinceladas rápidas e espontâneas, pela liberdade e violência do cromatismo e pelos barroquizantes e dramáticos contrastes de luz e sombra. Anunciada por alguns quadros anteriores, esta linguagem expressiva marcaria o derradeiro período criativo do pintor, aquele que mais profundamente o liga ao movimento romântico, do qual constituiu um dos mais brilhantes representantes.

Representando uma cena noturna, a composição apresenta dois setores, a coluna de soldados franceses, imersos numa sombra acentuada pela frieza das cores, que contrasta com o grupo de condenados, inundados por uma intensa luz definidora de flamejantes amarelos e vermelhos. O ponto focal do quadro é precisamente a camisa branca de um dos condenados.

Os quadros "O 2 de maio de 1808" e "O 3 de maio de 1808", executados a óleo sobre tela, encontram-se expostos no Museu do Prado, em Madrid.

Porto Editora – O 3 de maio de 1808 na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2025-05-19 17:16:32]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$o-3-de-maio-de-1808



UM POUCO SÓ DE GOYA: CARTA A MINHA FILHA

 

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?

Eras pequena e o cabelo mais claro,

mas os olhos iguais. Na metáfora dada

pela infância, perguntavas do espanto

da morte e do nascer, e de quem se seguia

e porque se seguia, ou da total ausência

de razão nessa cadeia em sonho de novelo.

 

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se

de junho, o teu cabelo claro mais escuro,

queria contar-te que a vida é também isso:

uma fila no espaço, uma fila no tempo

e que o teu tempo ao meu se seguirá.

 

Num estilo que gostava, esse de um homem

que um dia lembrou Goya numa carta a seus

filhos, queria dizer-te que a vida é também

isto: uma espingarda às vezes carregada

(como dizia uma mulher sozinha, mas grande

de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te

testamentos, falar-te de tigelas – é sempre

olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à

vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua

de mentiras, em carinho de verso.

 

E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,

de quem a habita para além do ar.

E que o respeito inteiro e infinito

não precisa de vir depois do amor.

Nem antes. Que as filas só são úteis

como formas de olhar, maneiras de ordenar

o nosso espanto, mas que é possível pontos

paralelos, espelhos e não janelas.

 

E que tudo está bem e é bom: fila ou

novelo, duas cabeças tais num corpo só,

ou um dragão sem fogo, ou unicórnio

ameaçando chamas muito vivas.

Como o cabelo claro que tinhas nessa altura

se transformou castanho, ainda claro,

e a metáfora feita pela infância

se revelou tão boa no poema. Se revela

tão útil para falar da vida, essa que,

sem tigelas, intactas ou partidas, continua

a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.

 

Não sei que te dirão num futuro mais perto,

se quem assim habita os espaços das vidas

tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.

Porque te amo, queria-te um antídoto

igual a elixir, que te fizesse grande

de repente, voando, como fada, sobre a fila.

Mas por te amar, não posso fazer isso,

e nesta noite quente a rasgar junho,

quero dizer-te da fila e do novelo

e das formas de amar todas diversas,

mas feitas de pequenos sons de espanto,

se o justo e o humano aí se abraçam.

 

A vida, minha filha, pode ser

de metáfora outra: uma língua de fogo;

uma camisa branca da cor do pesadelo.

Mas também esse bolbo que me deste,

e que agora floriu, passado um ano.

Porque houve terra, alguma água leve,

e uma varanda a libertar-lhe os passos.

 

Ana Luísa Amaral (2010). Inversos – Poesia 1990-2010. Lisboa: Dom Quixote, 2010, pp. 357-358

 


sábado, 17 de maio de 2025

Não vale a pena pisar / Nossa força, Manuel Rui

 

Grupo Ngola, na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa


Não vale a pena pisar

 

O capim não foi plantado

nem tratado,

e cresceu. É força

tudo força

que vem da força da terra.

Mas o capim está a arder

e a força que vem da terra

com a pujança da queimada

parece desaparecer.

Mas não! Basta a primeira chuvada

para o capim reviver.

 

Manuel Rui, No reino de Caliban, Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa II, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 318

 

Texto de apoio:

 

Na derradeira edição da Mensagem, boletim da Casa dos Estudantes do Império publicado a 6 de setembro de 1965, Manuel Rui legou à posteridade um poema escrito sob circunstâncias íntimas e simbólicas: redigiu-o sobre uma mesa de pinho, austera e rústica, que servia de secretária no seu quarto em Coimbra. Intitulado inicialmente “Não Vale a Pena Pisar”, o texto seria posteriormente rebatizado como “Nossa Força”, ganhando novas camadas de significado. Nele, o capim – erva resistente e marginal, não cultivada, não domesticada – emerge como metáfora pungente dos oprimidos, daqueles que, embora invisibilizados, carregam em si a força telúrica da resistência.

Ler mais em: “Fazer nascer uma nação”, Joana Simões Piedade. In: Buala, 14-11-2014. Disponível em: https://www.buala.org/pt/a-ler/fazer-nascer-uma-nacao

 

 

Leitura orientada do poema

1. Situação inicial e simbolismo do capim

  • Objetivo: Analisar a metáfora central do poema.
  • Perguntas-guia:
    • Qual é a situação descrita na primeira estrofe?
    • Que características do capim são destacadas (ex.: origem, resistência)?
    • Por que razão o capim pode simbolizar grupos marginalizados ou explorados?

 

2. Repetição e ênfase temática

  • Objetivo: Explorar o uso da repetição como recurso expressivo.
  • Perguntas-guia:
    • Identifique a palavra repetida ao longo do poema.
    • Que ideia central essa repetição reforça?
    • Como a repetição da palavra "força" se relaciona com o ciclo natural do capim?

 

3. Contraste e estrutura do poema

  • Objetivo: Compreender a oposição entre destruição e renascimento.
  • Perguntas-guia:
    • Localize a conjunção adversativa (mas) que marca uma mudança de sentido.
    • Que situação negativa e positiva são introduzidas por essa conjunção?
    • Qual é o efeito desse contraste para a mensagem do poema?

 

4. Função da frase exclamativa

  • Objetivo: Refletir sobre o tom emocional do poema.
  • Perguntas-guia:
    • Em que momento do poema surge a frase exclamativa?
    • Que emoção do sujeito poético essa exclamação revela?

 

5. Justificação do título

  • Objetivo: Sintetizar a relação entre forma e conteúdo.
  • Perguntas-guia:
    • Por que o título original ("Não Vale a Pena Pisar") funciona como um aviso?
    • Como a resistência do capim justifica a ideia de que "não vale a pena pisá-lo"?

 

6. Conexão com contexto histórico

  • Objetivo: Relacionar o poema com o momento da sua publicação (1965).
  • Perguntas-guia:
    • Que paralelos podemos fazer entre o capim e os movimentos de resistência política/social?
    • Por que razão a data de publicação (próxima ao fecho da Casa) pode ser significativa?

 


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Blogue, Fernando Pinto do Amaral

 

Fernando Pinto do Amaral

Blogue

 

Mantivera no fim da adolescência

aquilo a que chamava simplesmente

o seu diário íntimo:

páginas manuscritas onde ardiam

rastilhos1 de mil sonhos que rasgavam

as mordaças da angústia social,

a timidez tão própria da idade.

 

Nessa caligrafia cuja cor

fora ainda a do sangue

colheu a energia necessária

para atravessar como um sonâmbulo

o ordálio2 daquela juventude,

o seu incandescente calendário

de amizades vorazes3, tão velozes

como os amores que julgava eternos

e outras feridas mal cauterizadas4.

 

Hoje quase não volta a essas páginas:

estamos no século XXI

e em vez do diário de outros tempos

mantém agora um blogue

onde todos os dias extravasa5

recados, atitudes, confissões,

coisas no fundo tão inofensivas

como o fogo que outrora lhe acendia

as frases lancinantes6

– embora hoje em dia quando escreve

tenha por um momento a ilusão

de que as suas palavras continuam

a propagar ainda o mesmo vírus,

e a alimentar, quem sabe, os mesmos

sonhos

sempre que alguém desconhecido as ler

como quem só assim então escutasse

um segredo na noite do mundo.

 

Mas, apesar de todo o entusiasmo

que o mantém acordado por noites sem fim,

ele adivinha que também virá

um dia a abandonar sem saber como

o seu atual vício solitário

e dentro de alguns anos, ao reler

as frases arquivadas no computador,

talvez tudo isso lhe pareça então

fruto de gestos tão adolescentes

como os que antigamente preenchiam

esses cadernos amarelecidos

e hoje sepultados para sempre

em esquecidas gavetas de outro século.

 

Fernando Pinto do Amaral, Poemas Escolhidos (1990-2007), Dom Quixote, 2009

 

Notas:

1. rastilhos: canudos ou fios de pólvora. 2. ordálio: sofrimento. 3. vorazes: passageiras. 4. cauterizadas: cicatrizadas. 5. extravasa: derrama, despeja, produz em abundância. 6. lancinantes: dolorosas, pungentes.

 

Linhas de leitura:

-  Que transformações ocorrem na forma como o sujeito poético expressa os seus sentimentos ao longo do tempo?
(Explora a passagem do diário manuscrito para o blogue e o que isso revela sobre crescimento e mudança.)

-  De que forma a escrita serve como libertação emocional nas diferentes fases da vida do sujeito?
(Reflete sobre o papel da escrita na adolescência e na idade adulta.)

-  O que simboliza a expressão “caligrafia cuja cor fora ainda a do sangue”?
(Pensa na intensidade emocional associada à juventude.)

-  Que críticas ou reflexões o poema sugere sobre a exposição das emoções nas plataformas digitais?
(Analisa a diferença entre o íntimo (diário) e o público (blogue).)

-  Como é retratada a juventude neste poema e que marcas ela deixa no sujeito poético?
(Observa a linguagem usada para descrever amizades, amores e angústias.)

-  O “ele” do poema representa um indivíduo específico ou uma geração? Que pistas textuais sustentam essa leitura?
(Interpreta o valor simbólico do sujeito descrito.)

 


terça-feira, 6 de maio de 2025

Este poema de amor não é lamento, Jorge de Lima


 

Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há de

transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou em piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.

É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;

mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procurá-la nesse vale obscuro.

 

Jorge de Lima, Livro de Sonetos.
Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1949

 

Linhas de leitura:

- Que imagens ou sentimentos amorosos o poema rejeita logo no início?

- Como é descrita a figura amada ao longo do soneto?

- Qual é a relação entre o sujeito poético e essa figura: é de posse, de lamento, ou de busca?

- Que significado pode ter a ideia de “não vê-la nem possuí-la”?

- Que efeito provoca a metáfora final do “vale obscuro”?

- O que este poema sugere sobre a natureza do amor verdadeiro?

 



O LIVRO DE SONETOS, de Jorge de Lima, compõe-se de 78 sonetos, sendo 74 em versos decassílabos, 3 em versos quadrissilábicos e 1 em versos de sete sílabas. Segundo informa José Fernando Carneiro em sua APRESENTAÇÃO DE JORGE LIMA, editada pelos “Cadernos de Cultura”, de Simeão Leal, o livro foi escrito “em estado de hipnagoge, no espaço de dez dias apenas, Jorge de Lima levantando-se às vezes de madrugada e compondo de uma vez dois a três sonetos”. Sabe-se ainda, segundo a mesma “Apresentação”, que o livro, originariamente, devia conter cerca de cem sonetos (103 ao certo), deixando o poeta de incluir 25 entre eles, por motivos que não se esclarecem no referido comentário. Nossa impressão é a de que Jorge de Lima tenha querido fazer o livro compor-se de 77 sonetos (número sabidamente cabalístico) e o próprio Fernando Carneiro menciona este como sendo o número das composições enfeixadas na OBRA POÉTICA; entretanto, conforme tivemos a curiosidade de verificar, tanto no LIVRO DE SONETOS, editado em 1949 pela “Livros de Portugal”, quanto na OBRA POÉTICA, organizada em 1950 por Otto Maria Carpeaux, o número encontrado foi 78.

Ler mais: “De uma possível continuidade no Livro de Sonetos, de Jorge de Lima”, Ivo Barroso. In Gaveto do Ivo, 12-12-2014. Disponível em: https://gavetadoivo.wordpress.com/2012/12/14/de-uma-possivel-continuidade-do-livro-de-sonetos-de-jorge-de-lima/

 


domingo, 4 de maio de 2025

Menino e moço, António Nobre

 


Menino e moço

 

Tombou da haste a flor da minha infância alada,
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo de prata embutido a marfim!

Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!

Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...

 

António Nobre, "Paraíso perdido", in Revista Brasil – Portugal,
edição n.º 200, de 16 de maio de 1907, p. 114

 

VOCABULÁRIO

Alada: que tem asas.
Alvorada: amanhecer.
Clamar: chorar, gritar.
Debalde: em vão.
Evolar-se: fugir, voando.
Pudico: envergonhado.

 

 

Linhas de leitura do poema “Menino e moço”, de António Nobre

- O título remete para a fase da infância e juventude do sujeito poético.

- A metáfora “Tombou da haste a flor da minha infância alada” transmite a ideia de fim da infância, representada como uma flor frágil e bela que caiu, simbolizando a perda da inocência e leveza dessa fase.

- O sujeito lírico acreditava que a infância e a sua felicidade seriam eternas (“Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada, / E que era sempre dia, e nunca tinha fim”).

- A “alvorada” representa o início da vida, cheio de luz e encantamento, que o sujeito poético julgava não terminar.

- No passado, o sujeito poético vivia um tempo mágico, protegido e sonhador (ex.: “a pomba enamorada [...] estendia as asas sobre mim”).

- No presente, sente-se desamparado e triste, percebendo que essa infância não volta mais (ex.: “Debalde clamo e choro [...] elas não voltam mais”).

 

Resumo das linhas de leitura:

O poema constrói-se sobre a oposição entre um passado idealizado, marcado pela inocência e proteção da infância, e um presente de desilusão, solidão e saudade. A metáfora da flor caída, a crença na eternidade da infância e o lamento pela sua perda são elementos centrais para compreender a nostalgia e o tom melancólico do poema.


Sugestão:

Assiste à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, disponível em Português - 7.º e 8.º anos , aula 47 - 04 mai 2021 - Estudo Em Casa - RTP

“Menino e moço", de António Nobre. "Meninos tomaram coragem", de Ruy Cinatti| Aula 47| 27 min| 04 mai. 2021 - Módulo de Português para 7.º e 8.º anos. O projeto #ESTUDOEMCASA destina-se a alunos e professores do Ensino Básico, que desejem recorrer a esta ferramenta no seu processo de ensino-aprendizagem.