domingo, 18 de maio de 2025

Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya, Jorge de Sena



 

CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, porque tudo é possível, que ele seja

aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,

onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém

de nada haver que não seja simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,

conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,

o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto

o que vos interesse para viver. Tudo é possível,

ainda quando lutemos, como devemos lutar,

por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,

ou mais que qualquer delas uma fiel

dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade

não tem conta o número dos que pensaram assim,

amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,

de insólito, de livre, de diferente,

e foram sacrificados, torturados, espancados,

e entregues hipocritamente à secular justiça,

para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,

a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas

à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,

foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,

e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,

ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras

por serem de uma classe, expiaram todos

os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência

de haver cometido. Mas também aconteceu

e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,

aniquilando mansamente, delicadamente,

por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,

foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha

há mais de um século e que por violenta e injusta

ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,

que tinha um coração muito grande, cheio de fúria

e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve,

nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)

de ferro e de suor e sangue e algum sémen

a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém

vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto o que mais importa – essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto

não é senão essa alegria que vem

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém

está menos vivo ou sofre ou morre

para que um só de vós resista um pouco mais

à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente,

sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,

e sobretudo sem desapego ou indiferença,

ardentemente espero. Tanto sangue,

tanta dor, tanta angústia, um dia

– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –

não hão de ser em vão. Confesso que

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos

de opressão e crueldade, hesito por momentos

e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,

quem ressuscita esses milhões, quem restitui

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes

aquele instante que não viveram, aquele objeto

que não fruíram, aquele gesto

de amor, que fariam “amanhã”.

E por isso, o mesmo mundo que criemos

nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa

que não é nossa, que nos é cedida

para a guardarmos respeitosamente

em memória do sangue que nos corre nas veias,

da nossa carne que foi outra, do amor que

outros não amaram porque lho roubaram.


Jorge de Sena, Metamorfoses, 1963


Goya, "El tres de Mayo de 1808" ou "Los fusilamientos de Príncipe Pío", 1814


O quadro "O 3 de maio de 1808" foi pintado por Francisco Goya (1746-1828) em 1814, seis anos depois da dramática situação que narra um dos momentos mais simbólicos da resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão Bonaparte. A este quadro liga-se um outro, "O 2 de maio de 1808" (pintado igualmente em 1814), que relata o primeiro episódio deste acontecimento, ocorrido na véspera, e presumivelmente presenciado pelo pintor.

Na manhã de 2 de maio, o lugar-tenente de Napoleão, o general Murat, seguido por uma coluna de cavalaria, foi atacado por um grupo de populares armados, enquanto atravessava a Porta do Sol em Madrid. Tendo rapidamente controlado a situação, os franceses, como represália pelo levantamento popular, ordenaram o fuzilamento de inúmeros civis. Estes massacres tiveram lugar durante o dia seguinte em vários pontos da cidade, junto ao Convento de Jesus, no Bom Retiro, na Casa de Campo, em Santa Bárbara, na Porta de Segovia e na montanha do Príncipe Pio, entre outros locais.

Anteriormente à ocupação francesa Goya mantinha alguma simpatia pelas ideias liberais, embora fosse pintor da corte. Para este artista a chegada do exército de Napoleão e a consequente queda da monarquia pareceu representar, num primeiro momento, a possibilidade de introdução do liberalismo no seu país. No entanto, o carácter destruidor que esta ocupação assumiu, associada a sangrentos massacres, frustraram qualquer esperança de libertação.

Os horrores e sofrimentos provocados pelos confrontos entre espanhóis e franceses durante a guerra, aos quais Goya teve oportunidade de assistir de forma direta, foram temas que o atormentaram e contribuíram para que, próximo do final da sua carreira, se tornasse pessimista e cínico relativamente à capacidade de destruição e ao ódio que a espécie humana era capaz de alimentar.

Antecedendo estas duas pinturas, a série de gravuras "Desastres de la Guerra" (desastres da guerra), realizadas em 1810, condensa uma abordagem ainda mais acutilante e emotiva relativamente a este momento de loucura da humanidade. Após a expulsão dos invasores franceses e restaurada a monarquia, Goya conseguiu que o novo governo regente lhe atribuísse um subsídio financeiro para a realização das duas telas comemorativas dos brutais massacres.

O quadro "O 3 de maio de 1808" apresenta dimensões (266 por 406 centímetros), temática e estilo que lhe imprimem um impacto impressionante. A técnica utlizada, de carácter marcadamente expressionista, caracteriza-se por pinceladas rápidas e espontâneas, pela liberdade e violência do cromatismo e pelos barroquizantes e dramáticos contrastes de luz e sombra. Anunciada por alguns quadros anteriores, esta linguagem expressiva marcaria o derradeiro período criativo do pintor, aquele que mais profundamente o liga ao movimento romântico, do qual constituiu um dos mais brilhantes representantes.

Representando uma cena noturna, a composição apresenta dois setores, a coluna de soldados franceses, imersos numa sombra acentuada pela frieza das cores, que contrasta com o grupo de condenados, inundados por uma intensa luz definidora de flamejantes amarelos e vermelhos. O ponto focal do quadro é precisamente a camisa branca de um dos condenados.

Os quadros "O 2 de maio de 1808" e "O 3 de maio de 1808", executados a óleo sobre tela, encontram-se expostos no Museu do Prado, em Madrid.

Porto Editora – O 3 de maio de 1808 na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2025-05-19 17:16:32]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$o-3-de-maio-de-1808



UM POUCO SÓ DE GOYA: CARTA A MINHA FILHA

 

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?

Eras pequena e o cabelo mais claro,

mas os olhos iguais. Na metáfora dada

pela infância, perguntavas do espanto

da morte e do nascer, e de quem se seguia

e porque se seguia, ou da total ausência

de razão nessa cadeia em sonho de novelo.

 

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se

de junho, o teu cabelo claro mais escuro,

queria contar-te que a vida é também isso:

uma fila no espaço, uma fila no tempo

e que o teu tempo ao meu se seguirá.

 

Num estilo que gostava, esse de um homem

que um dia lembrou Goya numa carta a seus

filhos, queria dizer-te que a vida é também

isto: uma espingarda às vezes carregada

(como dizia uma mulher sozinha, mas grande

de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te

testamentos, falar-te de tigelas – é sempre

olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à

vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua

de mentiras, em carinho de verso.

 

E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,

de quem a habita para além do ar.

E que o respeito inteiro e infinito

não precisa de vir depois do amor.

Nem antes. Que as filas só são úteis

como formas de olhar, maneiras de ordenar

o nosso espanto, mas que é possível pontos

paralelos, espelhos e não janelas.

 

E que tudo está bem e é bom: fila ou

novelo, duas cabeças tais num corpo só,

ou um dragão sem fogo, ou unicórnio

ameaçando chamas muito vivas.

Como o cabelo claro que tinhas nessa altura

se transformou castanho, ainda claro,

e a metáfora feita pela infância

se revelou tão boa no poema. Se revela

tão útil para falar da vida, essa que,

sem tigelas, intactas ou partidas, continua

a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.

 

Não sei que te dirão num futuro mais perto,

se quem assim habita os espaços das vidas

tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.

Porque te amo, queria-te um antídoto

igual a elixir, que te fizesse grande

de repente, voando, como fada, sobre a fila.

Mas por te amar, não posso fazer isso,

e nesta noite quente a rasgar junho,

quero dizer-te da fila e do novelo

e das formas de amar todas diversas,

mas feitas de pequenos sons de espanto,

se o justo e o humano aí se abraçam.

 

A vida, minha filha, pode ser

de metáfora outra: uma língua de fogo;

uma camisa branca da cor do pesadelo.

Mas também esse bolbo que me deste,

e que agora floriu, passado um ano.

Porque houve terra, alguma água leve,

e uma varanda a libertar-lhe os passos.

 

Ana Luísa Amaral (2010). Inversos – Poesia 1990-2010. Lisboa: Dom Quixote, 2010, pp. 357-358

 


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