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terça-feira, 18 de abril de 2017

OS CATIVOS (Antero de Quental)




OS CATIVOS

Encostados às grades da prisão,
Olham o céu os pálidos cativos.
Já com raios oblíquos, fugitivos,
Despede o sol um último clarão.

Entre sombras, ao longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cai do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das coisas, lentamente.

E os cativos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em íntimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.

E dizem os cativos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o voo e a liberdade...
O homem tem os muros da prisão!

Aonde ides? Qual é a vossa jornada?
À luz? à aurora? à imensidade? aonde?
– Porém o bando passa e mal responde:
À noite, à escuridão, ao abismo, ao nada! –

E os cativos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pesar secreto,
Como quem sofre e cala algum tormento...

E dizem os cativos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devesas?

Tu que procuras? Que visão sagrada
Te acena da soidão onde se esconde?
– Porém o vento passa e mal responde:
a noite, a escuridão, o abismo, o nada! –

E os cativos suspiram novamente.
Como antigos pesares mal extintos,
Como vagos desejos indistintos,
Surgem do escuro os astros, lentamente...

E fitam-se, em silêncio indecifrável,
Contemplam-se de longe, misteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
Como quem ama e vive inconsolável...

E dizem os cativos: Que problemas
Eternos, primitivos, vos atraem?
Que luz fitais no centro donde saem
A flux, em jorro, as intuições supremas?

Por que esperais? Nessa amplidão sagrada
Que soluções esplêndidas se escondem?
– Porém os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada! –

Assim a noite passa. Rumorosos
Sussurram os pinhais meditativos.
Encostados às grades, os cativos
Olham o céu e choram silenciosos.

Antero de Quental, Poesia Completa.  Org. Fernando Pinto do Amaral.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.





     Intertextualidade

ÀS GRADES DA PRISÃO

Às grades da prisão, olhos extasiados
Veem descer o Sol sobre o mar de metal.
Na tarde de âmbar há murmúrios espalhados
Como preces da Terra à estrela vesperal...


No horizonte rutilante, a toda a vela
Passa um navio; é todo de oiro e de rubis…
Onde vais, onde vais, brilhante caravela
Do rei poeta dum quimérico país?


É triste o alcácer, com salões frios e anosos,
Como as igrejas cheios de ecos cavernosos,
Com grossas portas de mosteiro medieval.


Mas desse interior taciturno, afastado,
Duma estreita janela, olhos extasiados
Veem descer o sol sobre o mar de metal...



Roberto de Mesquita (1876-1923), Almas Cativas


ANTERO LIDO POR MESQUITA*

Sinopse: É conhecida a  influência exercida por  Antero nas gerações seguintes, a sua presença em poetas particulares, como é o caso  de Roberto de Mesquita. Analisa-se aqui o modo como o seu poema «Às grades da prisão» reescreve «Os Cativos», de Antero.

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O poema «Os Cativos» constitui uma amostra muito sintomática daquilo que,  no início dos anos de 1880,  Antero declarava ser a sua «maneira definitiva» de poeta, aquilo que poderemos designar  uma poesia dramática, se levarmos em conta aquilo que ele mesmo afirma numa carta a António Feijó: «Mas, fora desta esfera restrita [da poesia analítica], a poesia, tornada mais complexa, parece-me que requer uma forma sintética, a acção objectiva, o drama (dando à palavra a sua acepção mais geral), poderosa pela sua mesma impessoalidade.» (Quental, 1989: 567). Repare-se nos termos de Antero  sobre o drama enquanto modo objectivo, isto é, representativo, capaz de configurar um mundo exterior ao sujeito poético, dele distanciado,  e também dinâmico,  com acção, implicando por isso a existência de espaço, temporalidade e personagens que entre si trocam falas  – traduzindo-se tudo isso, no final, pela impessoalidade, a tendencial ocultação (ainda que não total) do  enunciador, do sujeito poético,  neste caso. Sabemos  hoje como este desígnio de uma poética da impessoalidade vai desaguar no modernismo português e, em especial, no projecto poético pessoano
«Os Cativos» constituem um poema relativamente longo: treze quadras em decassílabos, com uma estrutura narrativo-dramática em que é possível delimitar  um Prólogo (2 quadras iniciais), seguido de três cenas (de 3+3+4 quadras, respectivamente, e tecnicamente delimitadas como no texto dramático propriamente dito) e de um curto Epílogo ou conclusão (última quadra).
As primeiras duas quadras apresentam a personagem dos cativos, sobre um cenário de fim de dia, descrito em termos de ambiente melancólico propício à contemplação, ao cismar e, finalmente, à interrogação; estamos em presença de uma descrição com certos traços simbolistas, que (juntamente com notórios aspectos rítmicos e melódicos) poderá ajudar a compreender  a projecção posterior do poema.
As três cenas têm uma estrutura interna idêntica e sequencial: a presença dos cativos («os cativos suspiram»), o aparecimento dos interlocutores (as aves, primeiro, e depois o vento e os astros), a introdução da(s) pergunta(s) que lhes é feita pelos cativos e a culminar uma reflexão por vezes formulada em modo interrogativo; finalmente, a resposta, linear e curta, que fecha  cada cena.
Ora, é este poema que surge recontextualizado  no  soneto «Às grades da prisão», de Roberto de Mesquita: em versos alexandrinos, ele recolhe para título e início do verso 1, um fragmento  do verso inicial de «Os cativos».
A sua  estrutura narrativo-dramática retoma a do  poema anteriano: uma  introdução (de idêntica natureza temporal), uma cena (apenas  uma) com  interrogação e uma conclusão –  numa condensação  de processos a que estava obrigada pela própria  brevidade formal  da composição, o soneto: a nível do  espaço descritivo,  do traço narrativo pontual («passa um navio»)  e do despojamento da pergunta, privada do envolvimento reflexivo, filosófico que em Antero a antecede. Aliás, em Mesquita, a pergunta não chega a suscitar  qualquer sinal de reacção por parte do seu (único) interlocutor, numa situação que acentua os sinais de uma solidão irremediável.
A já assinalada modulação simbolista do poema de Antero poderá explicar, em parte, a atracção que exerceu sobre o poeta florentino, num contexto em verbal em que são notórios os traços dessa corrente estética finissecular. Mas, para lá dessa afinidade (e  de outras),  um corte fundamental exercido por Mesquita consiste na mudança do cenário selecionado: o mar, com os seus signos correlativos, especialmente o navio, cuja passagem fugaz quase o transforma num elemento irreal, talvez mesmo uma  ilusão ou miragem fruto de um  êxtase do olhar  que se estende sobre  o mar (de metal) que é o prolongamento metonímico das grades (no soneto de Mesquita os «cativos» anterianos reduzem-se  a uma parte do todo: «olhos», o que introduz desde logo outra envolvência  semântica).
Aquilo que em Antero se exprimia  em termos de  uma interrogação cósmica  sobre a liberdade e o destino, torna-se em Mesquita uma questão mais circunstancial, mais individual, e sintomática de uma condição particular que o conjunto da sua poesia ajuda a confirmar, em termos de uma configuração do  mundo pensado e sentido como cárcere atlântico, metáfora  reformulada  noutros contextos. Deste modo, e numa impressiva representação simbólica, estão todos os contornos semânticos da palavra que o poeta não ousou escrever ao longo do  seu livro de poemas: ilha. Que isto tenha chegado através de Antero apenas acentua a dimensão da literatura como uma conversação (uma tresleitura) infinita, sucessivamente  desdobrada no tempo. Uma conversação que, no campo açoriano, se prolonga ainda na obra de poetas como Pedro da Silveira (anos 50) e J. H. Santos Barros  (anos 70) – numa literatura, já agora, em que deliberadamente se inscreve a insularidade atlântica, açoriana, ou tão simplesmente a açorianidade.
Urbano Bettencourt
(CIERL-UMa; CEHu-UAc)
*Versão (muito) sintética da comunicação que apresentei às Jornadas Anterianas (Ponta Delgada, 7 e 8 de Novembro de 2017)
……………………………………………………………….
MESQUITA, Roberto de (2016),  Almas Cativas e Poemas Dispersos, Prólogo e Organização de Carlos Bessa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas,
QUENTAL, Antero de (1989),  Cartas I, org. de Ana Maria Almeida Martins. Ponta Delgada e  Lisboa: Universidade dos Açores e Editorial Comunicação.
QUENTAL, Antero de (2001), Poesia Completa, org. de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa, Publicações Dom Quixote.


https://urbanobettencourt.wordpress.com/2018/06/05/antero-lido-por-mesquita/



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à Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


domingo, 8 de maio de 2016

a poesia das coisas se insinua (Idílio, Antero de Quental)





IDÍLIO

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Antero de Quental


Notas de leitura:
v. 1 e segs. António Sérgio (Antero de Quental, Sonetos, Lisboa [1967], pág. 40) considera este soneto uma maravilha de musicalidade expressiva, que analisa primorosamente. Faz notar o ritmo vivo, matinal, fresquíssimo das duas quadras, com a sua estrídula rapidez de ascenso e suas duas rimas em a e i - violinos, flautas; as três sílabas em on (cf. v. 8); a amplitude que se quebra a súbitas com um verso isolado (v. 9); o movimento afrouxa, ensurdece em uu, é soturno e fundo (v. 10); toda a orquestração vai descer aos baixos (com nasais e com uu), lembrando não sei quê de violoncelo e de fagote (vs. 12-14).
vv. 1-4. Repare-se nas representações de movimentos.
vv. 6-8. Na contemplação do céu, do horizonte, encontra expressão libertadora a imaginação visionária do poeta.
vv. 9-11. O amor revela-se pelos movimentos íntimos, indizíveis.
vv. 12-14. O amor abrange a natureza, santifica a paisagem, permite a identificação com o mistério que envolve o Homem. - Recorde-se o comentário de Ruy Galvão de Carvalho (Três Ensaios sobre Antero de Quental, Coimbra, 1934, pág. 29): «O mar e o vento são os dois elementos que melhor exprimem toda a ânsia libertadora da alma humana.» (Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.)
v. 13. Um poema, não sendo obviamente uma construção teórica, pode ter uma referencialidade que é a do pensamento, da reflexão, sempre que em relação a eles, como diria Antero de Quental, “a poesia das cousas se insinua”. Da poesia à filosofia e desta àquela pode estabelecer-se o mesmo “caminho da verdade”. Neste caso é o que vai ou ascende do particular para o geral, da palavra para a multiplicidade de sentidos. (Ser, um problema filosófico-poético?”, Fernando Guimarães.  Filosofia e Poesia - Congresso Internacional de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016.)


Inserido na expressão do lirismo amoroso, Idílio retrata uma situação de amor ideal.
O soneto narra momentos de grande tranquilidade do poeta com uma mulher. Calmamente, os dois amantes vão conjugando o seu amor com o próprio cenário. Verifiquemos a importância dos verbos “vamos”, “galgamos”, “contemplamos” que transmitem a ação na primeira pessoa do plural, facto que inclui o próprio sujeito poético na felicidade comungada pelos dois, induzindo a uma união não só física “Quando vamos ambos, de mãos dadas,”, mas também espiritual “Contemplamos as nuvens vespertinas”.
As duas primeiras quadras são, não só narrativas, mas também extremamente descritivas, na medida em que predominam adjetivos bastante expressivos – “orvalhadas”, “ermas”, “vespertinas”, “fantásticas”, “amontoadas” – que contribuem para que o leitor visualize o cenário que os dois amantes desfrutam. Este cenário está carregado de misticismo e é, igualmente, um ambiente contemplativo: “ermas cumeadas”, “fantásticas ruínas”, “o vento e o mar murmuram orações”, fazendo-nos lembrar a natureza dos românticos.
Perante este espaço, a companheira do poeta reage de um modo sui géneris – “de súbito, emudeces!” / Não sei que luz no teu olhar flutua; / Sinto tremer-te a mão, e empalideces…”, perturbando o sujeito poético que não encontra explicação para o seu comportamento. Porém, no último terceto, a vivência romântica é retomada com a personificação do vento e do mar que “murmuram orações” e, deste modo, nos seus corações se insinua a poesia que mais não é do que a harmonia que colhem do espaço onde se encontram:
“E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.”
A dupla adjetivação presente no último verso evidencia mais intensamente a sensação de amor e tranquilidade dos dois amantes. Este ambiente pacífico é também sugerido pela pontuação.
Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]




A geometria da razão opõe-se à lógica do coração, intuitiva do "fundo essencial da alma". Pergunta-se, se o conteúdo desta "deixará de ser (...) verdadeiro só por não ser rigorosamente lógico?" E afirma que "há muitas lógicas" e a do coração é onde se "sente a verdade eterna". Trata-se da lógica do sentimento que se manifesta na poesia, pois que "a poesia é também verdade [já que] é a evidência da alma". Devedor em certa medida do espírito romântico, reabilita Antero o carácter revelador e sublime da poesia, que brota da alma e que "prende as vontades e arrebata os corações”. É a poesia a palavra possível do silêncio em que a consciência se remete para si, pela sublimidade do momento em que a vontade é presa e o coração arrebatado. O real aí transfigura-se, pois que, enquanto o "contemplamos":
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das cousas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Todo o soneto "Idílio" ativa motivos naturais - o vento, o mar, as orvalhadas - a par de elementos humanos, que na sua combinação e relação sugerem e fazem conhecer pelo sentimento e pela intuição. A poesia nasce aí como a palavra própria de um silêncio "sobre-real", fruto de um pathos que premeia esse que a profere com "o batismo dos poetas".

A sabedoria oriental na obra poética de Antero de Quental e ensaística de Manuel da Silva Mendes, Carlos Miguel Botão Alves, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, 2014.


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segunda-feira, 7 de abril de 2014

ANTERO DE QUENTAL (1842-1891)






ANTERO DE QUENTAL 







 Leitura orientada da lírica anteriana:

A angústia existencial.
Figurações do poeta.
Diferentes configurações do Ideal.
Linguagem, estilo e estrutura:
‒ o discurso conceptual;
‒ o soneto;
‒ recursos expressivos: a apóstrofe, a metáfora, a personificação. 
 

(Programa e Metas Curriculares de Português. Ensino Secundário. Versão para discussão públicaNovembro de 2013.
Helena C. Buescu, Luís C. Maia, Maria Graciete Silva, Maria Regina Rocha. Governo de Portugal - Ministério da Educação e Ciência)



POEMAS
INCIPIT
Conquista, pois, sozinho o teu Futuro,
Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
As fadas... eu creio nelas!
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
Não se perdeu teu sangue generoso,
Tu, que dormes, espírito sereno,
Num sonho todo feito de incerteza,
Chovam lírios e rosas no teu colo!
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Renasço, amigos, vivo! Há pouco ainda
Em vão lutamos. Como névoa baça,
Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando,
Sonho de olhos abertos, caminhando
Ó quimera, que passas embalada
Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Pelo caminho estreito, aonde a custo
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Aquela que eu adoro não é feita
Pelas rugas da fronte que medita
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
Mãe - que adormente este viver dorido.
Na tua mão, sombrio cavaleiro,
Esse negro corcel, cujas passadas
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Homem! Homem! Mendigo do Infinito!
Para além do Universo luminoso,
O Povo há de inda um dia entrar dentro do Templo,
Ninguém o dia sabe ao certo: entanto, vemos
No meu sonho desfilam as visões,
Espírito que passas, quando o vento
Noite, vão para ti meus pensamentos,
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Junto do mar, que erguia gravemente
Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Aspiração... desejo aberto todo
Visões! sonhos antigos!
Disse ao meu coração: Olha por quantos
Quando Cristo sentiu que a sua hora
Sonho-me às vezes rei, n'alguma ilha,
Já não sei o que vale a nova ideia,
Num céu intemerato e cristalino
Conheci a Beleza que não morre
Fumo e cismo. Os castelos do horizonte
Eu vi o Amor ‑ mas nos seus olhos baços
Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Ouve tu, meu cansado coração,
Embebido num sonho doloroso,








Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


domingo, 6 de abril de 2014

AS FADAS (Antero de Quental)


  
           
               
AS FADAS 

As fadas… eu creio nelas! 
Umas são moças e belas, 
Outras, velhas de pasmar… 
Umas vivem nos rochedos, 
Outras, pelos arvoredos, 
Outras, à beira do mar… 

Algumas em fonte fria 
Escondem-se, enquanto é dia, 
Saem só ao escurecer… 
Outras, debaixo da terra, 
Nas grutas verdes da serra, 
É que se vão esconder… 

O vestir… são tais riquezas, 
Que rainhas, nem princesas 
Nenhuma assim se vestiu! 
Porque as riquezas das fadas 
São sabidas, celebradas 
Por toda a gente que as viu… 

Quando a noite é clara e amena 
E a lua vai mais serena, 
Qualquer as pode espreitar, 
Fazendo roda, ocupadas 
Em dobar suas meadas 
De ouro e de prata, ao luar. 

O luar é os seus amores! 
Sentadinhas entre as flores 
Ficam-se horas sem fim, 
Cantando suas cantigas, 
Fiando suas estrigas, 
Em roca de oiro e marfim. 

Eu sei os nomes de algumas: 
Viviana ama as espumas 
Das ondas nos areais, 
Vive junto ao mar, sozinha, 
Mas costuma ser madrinha 
Nos batizados reais. 

Morgana é muito enganosa; 
Às vezes, moça e formosa, 
E outras, velha, a rir, a rir… 
Ora festiva, ora grave, 
E voa como uma ave, 
Se a gente lhe quer bulir. 

Que direi de Melusina? 
De Titânia, a pequenina, 
Que dorme sobre um jasmim? 
De cem outras, cuja glória 
Enche as páginas da história 
Dos reinos de el-rei Merlim? 
Umas têm mando nos ares; 
Outras, na terra, nos mares; 
E todas trazem na mão 
Aquela vara famosa, 
A vara maravilhosa, 
A varinha de condão. 

O que elas querem, num pronto, 
Fez-se ali! parece um conto… 
Mesmo de fadas… eu sei! 
São condões, que dão à gente 
Ou dinheiro reluzente 
Ou joias, que nem um rei! 

A mais pobre criancinha 
Se quis ser sua madrinha, 
Uma fada… ai, que feliz! 
São palácios, num momento… 
Beleza, que é um portento… 
Riqueza, que nem se diz… 

Ou então, prendas, talento, 
Ciência, discernimento, 
Graças, chiste, discrição… 
Vê-se o pobre inocentinho 
Feito um sábio, um adivinho, 
Que aos mais sábios vai à mão! 

Mas, com tudo isto, as fadas 
São muito desconfiadas; 
Quem as vê não há de rir, 
Querem elas que as respeitem, 
E não gostam que as espreitem, 
Nem se lhes há de mentir. 

Quem as ofende cautela! 
A mais risonha, a mais bela, 
Torna-se logo tão má, 
Tão cruel, tão vingativa! 
É inimiga agressiva, 
É serpente que ali está! 

E têm vinganças terríveis! 
Semeiam coisas horríveis, 
Que nascem logo no chão… 
Línguas de fogo, que estalam! 
Sapos com asas, que falam! 
Um anão preto! um dragão! 

Ou deitam sortes na gente… 
O nariz faz-se serpente, 
A dar pulos, a crescer… 
É-se morcego ou veado… 
E anda-se assim encantado, 
Enquanto a fada quiser! 

Por isso quem por estradas 
For, de noite, e vir as fadas 
Nos altos, mirando o céu, 
Deve com jeito falar-lhes, 
Muito cortês e tirar-lhes 
Até ao chão o chapéu. 

Porque a fortuna da gente 
Está às vezes somente 
Numa palavra que diz. 
Por uma palavra, engraça 
Uma fada com quem passa 
E torna-o logo feliz. 

Quantas vezes já deitado, 
Mas sem sono, inda acordado 
Me ponho a considerar 
Que condão eu pediria, 
Se uma fada, um belo dia, 
Me quisesse a mim fadar… 

O que seria? Um tesoiro? 
Um reino? Um vestido de oiro? 
Ou um leito de marfim? 
¿Ou um palácio encantado, 
Com seu lago prateado 
E com pavões no jardim? 

Ou podia, se eu quisesse, 
Pedir também que me desse 
Um condão, para falar 
A língua dos passarinhos, 
Que conversam nos seus ninhos… 
Ou então, saber voar! 

Oh, se esta noite, sonhando, 
Alguma fada, engraçando 
Comigo (podia ser?) 
Me tocasse co’a varinha 
E fosse minha madrinha, 
Mesmo a dormir, sem a ver… 

E que amanhã acordasse 
E me achasse… eu sei! me achasse 
Feito um príncipe, um emir!… 
Até já, imaginando, 
Se estão meus olhos fechando… 
Deixa-me já, já dormir!
          
Antero de Quental
          
          
VOCABULÁRIO:
          
Bulir: mexer.
Chiste: piada.
Discernimento: inteligência.
Discrição: prudência.
Estriga: porção de linho, formando uma pequena meada, que se põe de cada vez na roca, para se fiar. 
Jasmim: nome de uma flor.
Meada: porção de fios enrolados na dobadoura; há meadas de algodão, de lã, de linho, de seda. 
Portento: maravilha.
          
          
TEXTOS DE APOIO
Revela-nos o poema segredos só conhecidos de poucos adultos, apenas daqueles que ainda sabem que a Cinderela casa mesmo com o Príncipe e acreditam que: “a fortuna da gente / Está às vezes somente / Numa palavra que diz; / Por uma palavra, engraça / Uma fada com quem passa, / E torna-o logo feliz.”

Mas cuidado, pois as fadas quando se zangam: “têm vinganças terríveis! /Semeiam coisas horríveis, / Que nascem logo no chão… / Línguas de fogo que estalam! / Sapos com asas que falam! / Um anão preto! Um dragão!



 Ou deitam sortes na gente… / O nariz faz-se serpente, / A dar pulos, a crescer… / É-se morcego ou veado… / E anda-se assim encantado, / Enquanto a fada quiser!”



*


É de 1883 a edição do Tesouro Poético da Infância, organizado e prefaciado por Antero, uma espécie de «lira infantil», colhida nos Romanceiros e Cancioneiros e nos poetas do século, com especial relevo para João de Deus, não se esquecendo igualmente de introduzir alguns poetas brasileiros como Castro Alves, Casimiro de Abreu e sobretudo Junqueira Freire cuja poesia o entusiasma a ponto de o considerar um dos primeiros poetas do seu século se não tivesse morrido aos 24 anos. Para este livro, Antero escreveu um encantador poema de 23 sextilhas As Fadas, o que para ele, «poeta do género apocalíptico, teria constituído um verdadeiro tour de force».
        
O essencial sobre Antero de Quental, Ana Maria Almeida Martins, 
Lisboa, Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, p. 33.
        
*
             
Há quem defenda que a literatura infanto-juvenil se inicia nos séculos XVII e XVIII com os contos de fadas, fábulas e adaptações de obras de aventuras (Perrault, La Fontaine, Fénelon, Swift) com o objectivo de educar, moralmente, jovens e crianças.
Mas foi nos séculos XIX e XX que a literatura infantil desabrochou, como afirma José António Gomes (Para uma história da literatura portuguesa para a infância e a juventude.Lisboa: Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, 1998, p. 69): “é no século XIX que assistimos à verdadeira génese de uma literatura para a infância em Portugal. Muitos investigadores defendem que a literatura infantil surgiu em Portugal no século XIX com a geração de Antero de Quental, Eça de Queirós e Guerra Junqueiro. Todavia, outros contradizem essa asserção”.
        
Ana Maria Pereira Vieira Barbosa, Análise das Representações de género e seus valores na Literatura Infanto-Juvenil e na Formação da Criança, tese de mestrado apresentada à Universidade do Minho, 2009, p. 21
        


             
LEITURA ORIENTADA DO POEMA “AS FADAS”
           
1. Preenche a coluna B, de maneira a responderes aos elementos da coluna A, de acordo com os versos 1 a 70 do poema “As fadas”:
          


A


B


• Onde vivem as fadas




• Um exemplo de rima, neste poema




• Como ocupam as fadas o seu tempo




 Uma comparação




• Número de estrofes do poema


          
2. As fadas têm grandes poderes.
Copia do texto palavras/expressões onde se diz o que as fadas dão às crianças, para as tornar:
• ricas;
• sábias.
          
3. “as riquezas das fadas / São sabidas, celebradas / Por toda a gente que as viu…” (versos 16-18). Diz a que riquezas se referem o poeta nesta expressão.
          
4. Imagina como se sentiria um menino que visse a sua fada madrinha e escreve duas palavras que descrevam o seu estado de espírito.
          
5. Escreve duas quadras sobre fadas, considerando os seguintes aspetos:
• compara-as a alguma coisa (objeto, elemento da natureza, pessoa, animal, cor, …);
• usa uma onomatopeia (por exemplo, em relação à varinha de condão);
• expressa os teus sentimentos sobre esses seres imaginários;
• escreve os versos a rimar.
          
Etapas 5. Língua Portuguesa 5º Ano. Livro de Testes
Madalena Relvão, Graça Trindade e Mª de Lourdes Santos. Edições Asa, 2011.
                    
           
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  Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/04/06/fadas.aspx]