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Joaquim Manuel Magalhães, Para Comigo Lisboa, Relógio d'Água, 2018
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Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada de um remoinho.
O meu tumulto ensombra-te.
Um pombo protegido no beiral,
a cabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-se
no papelão do compêndio uma letra
do nosso nome em conjunto,
única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal na confeitaria, sem o padrão ainda,
se convinha, se faltava à aula, na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.
O foro furtivo já desagregava.
Nem te projetaria sequer
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem da neve
e o que for teu vier pela avenida
algo do desaparecimento, quem sabe, te recordará.
Joaquim Manuel Magalhães, Para
Comigo, Relógio d’Água, 2018
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Segredos, Sebes, Aluviões, 2.ª ed., Lisboa, Presença, 1985 |
Era
de inverno, em Vila Real. A neve
cobria
as ruas que levavam ao liceu.
Dentro
da confeitaria, as luvas de cabedal
no
tampo de vidro, o vapor da respiração
ligava-nos
entre as conversas de mesas indiferentes.
E
querias olhar para mais dentro de mim.
Os
pombos escondidos nos beirais tapavam
a
cabeça na plumagem de chumbo, cor do céu.
Calados,
afeitos ao silêncio, enlaçámos
em
cada um dos nossos livros a primeira letra
dos
nossos nomes, de modo a desenharem
uma
única letra que não havia em alfabeto nenhum.
Que
bem que estávamos tão mal ali sentados,
a
faltar às aulas, nessa primeira vez
em
que nos acontecia, sem sabermos, um amor.
Tu
não ias adivinhar as leis secretas
que
já nos separavam. Tu não podias
lutar
na via de sangue da minha vida.
Mas
sempre que tombar a neve em Vila Real
20
e desceres a avenida a caminho do café
de
alguma destas coisas, quem sabe, te hás de lembrar.
Joaquim Manuel Magalhães, Segredos,
Sebes, Aluviões, 2.ª ed., Lisboa, Presença, 1985
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Notas:
Segredos, Sebes, Aluviões - O segundo volume de
poesia de Joaquim Manuel Magalhães obedece a um grande rigor construtivo,
anunciado, desde logo, pela tripartição semântica e significativa das três
partes (três dimensões da existência) retiradas ao título. Surpreendente pelo
seu inusitado ancoramento no concreto e na realidade, visível não apenas em
momentos descritivos, como em pequenas estruturas diegéticas, subjaz
melancolicamente a Segredos, Sebes, Aluviões um desejo de cantar "tons
perdidos", um Portugal antigo e da infância ("Tudo em ruínas,/ a
infância, o país perdido"), evocado em objetos e espaços pormenorizados
(cestos, almotolias, a Sagrada Família, a borralheira) (Porto Editora – Segredos,
Sebes, Aluviões na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. Disponível em
https://www.infopedia.pt/$segredos-sebes-aluvioes).
afeitos (v. 9): acomodados,
habituados.
O questionário que se segue é sobre a
leitura do poema “Era de inverno, em Vila Real. A neve”, de
Joaquim Manuel Magalhães, versão publicada na 2.ª edição de Segredos, Sebes,
Aluviões (Lisboa, Editorial Presença, 1985).
1. Selecione, da
lista a seguir indicada, as duas palavras que, em sua opinião, se ajustam
melhor ao sentido das duas primeiras estrofes.
Cumplicidade
Inexperiência
Paixão
Transgressão
Justifique as suas
escolhas, fundamentando a sua argumentação em elementos do poema.
2. Em duas
antologias foram encontrados, sobre este poema, os comentários seguintes:
Comentário A- «Este
poema é sobre a memória de uma
experiência amorosa da adolescência».
Comentário B - «Este
poema é sobre a consciência de
um amor impossível».
Escolha o comentário
que lhe parecer mais adequado, fundamentando a sua resposta em elementos do
texto.
3.
Sobre a poesia de Joaquim Manuel Magalhães, tem sido dito que ela é
marcada, entre outros aspetos, pela referência a um «quotidiano banal»,
pela «interpelação do visual», pela «notação autobiográfica» e pela ideia de
«nostalgia».
Explicite a relevância
de dois destes aspetos, à sua escolha, para a
análise do poema.
CENÁRIOS DE
RESPOSTA
1. Na apresentação dos
argumentos para cada palavra, a resposta pode referir, entre outros, os
seguintes aspetos:
- Intimidade garantida
pela proximidade, por referência, por exemplo, aos versos 4-6, 9-12;
- …
- dificuldade de
compreender o(s) sentimento(s) vivido(s), por referência, por exemplo, aos versos
14-15;
- …
- intensidade de um
sentimento pressentido, por referência aos versos. 9-12, 14-15;
- …
- menção do incumprimento
de um dever e/ou de uma certa clandestinidade dele decorrente, por referência,
por exemplo, aos versos 7-8, 13-14;
- …
2. A fundamentação do comentário
julgado mais adequado pode incluir, entre outros, aspetos como:
- a referência à vida
escolar e à vivência de um amor, sustentando-se, por exemplo, nos versos 1-2,
14-15;
- …
- a referência ao facto de
o poeta ter consciência do que tomava impossível o amor entre os dois, sustentando-se,
por exemplo, nos versos 16-18;
- …
3. A explicitação dos aspetos
considerados relevantes para a análise do poema pode incluir, entre outros,
elementos como:
- dois jovens estudantes,
numa confeitaria, num dia de escola, por referência, por exemplo, aos versos
3-5, 10-14; '
- …
- pormenores dos
ambientes, por referência, por exemplo, aos versos 1-4, 7-8;
- …
- menção de Vila Real, do
liceu e de uma memória afetiva, associada à utilização de formas verbais e
pronominais de 1.ª pessoa, por referência, por exemplo, aos versos 1-2, 5-6,
9-11, 19;
- …
- desejo de o momento ser
recordado, por referência, por exemplo, aos versos 19-21;
- …
(Fonte: Exame Nacional do
Ensino Secundário. 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de
março). Curso Científico-Humanístico de Línguas e Literaturas. Prova escrita de Literatura Portuguesa n.º 734 e respetivos
critérios de correção. Lisboa, GAVE, 2006, 1.ª fase)
Segredos, sebes, aluviões. Évora, Publicações e Dicções, 1981
(Tiragem única de 600 exemplares. Edição rejeitada pelo autor)
JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
"Odiaria
ser um totalitário do gosto"
Joaquim
Manuel Magalhães publica neste mês de Novembro a mais recente reunião da sua
poesia tal como a pretende preservar: Para Comigo. O poeta, o mais instigante
ensaísta da poesia portuguesa, eminente tradutor de, entre outros, Kavafis,
afirma querer concentrar-se apenas na escrita dos seus versos.
Seria difícil imaginar um poeta
português de quem se aguardasse com tanta expectativa um novo livro de poemas
como Joaquim Manuel Magalhães. Representa, na poesia portuguesa, algo diferente
de um ponto de ruptura. A sua poesia constitui uma realidade muito menos
unívoca. E, por isso, incomparavelmente mais aliciante. Nunca à sua escrita
interessou o grito excessivo, fosse ele a declaração inflamada, ou a recusa
“moderna” de uma prosódia próxima do falar, do discurso, da vida. Se usou e usa
metros tradicionais, também subverte a unidade do verso, com processos que
variamente boicotam o que é apenas a aparência plácida da tradição.
Contrariando um entranhado viés
cultural, o do “francesismo” (de que já Eça se sentia culpado), aproximou-se da
tradição anglo-saxónica. Poetas norte-americanos tão diferentes como e. e.
cummings, Wallace Stevens ou Frank O’Hara, mas também ingleses, como Philip
Larkin, Thom Gunn, Ian Hamilton, ou Michael Hofmann, poderão ter criado
afinidades, mas nunca continuidades ou seguidismos, na poesia de Joaquim Manuel
Magalhães. Intersectava-os uma recusa muito heterogénea da grandiloquência, a
expressão sóbria e desafectada, um apego indesmentível ao fugitivo “real”. Esse
mesmo que viria a ser, entre nós, motivo de tantos desentendimentos, logros e
mal-entendidos, num certo mundinho por vezes crismado de “meio”. É ainda
possível ler, em Para Comigo: “Apenas o real.” Talvez não por
acaso, dois livros de Joaquim Manuel Magalhães se chamaram Consequência
do Lugar, um título autónomo e uma reunião de parte da sua poesia.
Estreado com Poemas (edição
policopiada num envelope de António Palolo, 1974), desde cedo na sua bibliografia
levou a cabo aquela que é a mais radical operação de reescrita da poesia
portuguesa. Muito antes de chegarmos ao mais recente momento desse dinâmico
reescrever, Para Comigo (Relógio D’Água, 2018), encetou
diversas alterações, dentro dos poemas que integravam cada título autónomo. Em
cada novo livro de poesia que publicava, ia rasurando e reagrupando, excluindo
conjuntos, ou reduzindo-os em número de composições — numa imparável ordem de
reescrita. Quando pela primeira vez coligiu os poemas que “pretend[ia]
preservar”, como então escreveu, em Alguns Livros Reunidos (Contexto,
1987), fazia-a já “com inúmeras alterações”. E, uma vez mais, havia deslocações
modificadoras de poemas, os quais, em certas instâncias, transitavam de um para
outro grupo de textos. Nessa primeira reunião, autonomizaram-se dois livros que
longamente permaneceriam isolados: Os Dias, Pequenos Charcos (Presença,
1981), Segredos, Sebes, Aluviões (Presença, 1985). Mais tarde,
quando voltou a reunir, em Consequência do Lugar (Relógio
D’Água, 2001), “o conjunto de livros que”, dizia, “sinto serem a primeira parte
de uma obra que se pôde ir continuando”, manter-se-iam igualmente
autónomos: Uma Luz com Um Toldo Vermelho (Presença,
1990), A Poeira Levada pelo Vento (Presença, 1993) e Alta
Noite em Alta Fraga (Relógio D’Água, 2001). Foi, no entanto, Um
Toldo Vermelho que mais intensificou a acção reorganizativa e
modificadora da poesia reunida de Joaquim Manuel Magalhães. Uma “Nota” que
encerrava o livro decidia, liminarmente: “Este volume constitui a minha obra
poética até 2001, a que acrescento um poema publicado em 2005. Exclui e
substitui toda a anterior.” São palavras para serem tomadas à letra. Assim foi,
e será, ao que tudo indica. Um Toldo Vermelho aglutinava num
só volume livros anteriores submetidos a profundas e decisivas alterações. Um
gesto que eliminava diversos nexos frásicos, carregando o tom elíptico, optando
por uma textura muito menos narrativa do que declarativa. Mais do que relatar
uma situação, a sua poesia passou a constatar o núcleo, o sumo de tudo. Ao
longo de todo este processo, não se deve reter apenas o processo da escrita,
mas o que parece ser uma vontade de declarar obliquamente. Talvez seja
desaconselhável fixar demasiada importância num cotejo literal e obsessivo de
variantes. Não apenas porque se trataria de um exercício de futilidade, mas por
estarmos diante de realidades textuais que mutuamente se excluem. Se daqui
resulta um paradoxo, poderá ser razoavelmente indiferente. No entanto, Um
Toldo Vermelho e, sobretudo, o novo Para Comigo parecem
compelir uma leitura autónoma do que se concentrou num só livro. Para
Comigo constitui, hoje, o que Joaquim Manuel Magalhães pretende
preservar e fixar da sua poesia.
Tocado pelo serialismo de Anton
Webern, transportou para a sua poesia actual a preocupação com a
individualidade sonora de cada palavra que comparece nos seus poemas, de forma
a evitar a repetição vocabular e a promover a exclusão sistemática de
sonoridades que lhe desagradam na nossa língua. Todas estas preocupações,
contudo, não devem fazer pensar numa poesia formalista, como a de Joaquim
Manuel Magalhães de forma nenhuma é.
O processo de reescrita da sua
poesia prévia parece-lhe comparável ao que fez Carlos de Oliveira com as
notificações que foi fazendo aos livros dele?
Carlos de Oliveira é um dos poetas portugueses do séc. XX que eu mais admiro.
Tive a sorte de o Eugénio de Andrade ter feito com que nos encontrássemos. Só
estive essa vez com ele, mas ficou-me uma memória inapagável de amabilidade e
generosidade. Era também um homem com uma presença encantadora. Admirei muito
as mudanças que ele introduziu ao quase completo conjunto da sua obra, reunido
a seguir em Trabalho Poético. Lembro-me de ter sentido um grande
prazer em escrever sobre esse facto. É óbvio que tal atitude me marcou. O
Herberto Helder deve ter sido o poeta português desse século que mais alterou a
sua obra, mas desse trabalho nele nunca retirei admiração. (Aliás, se
estivermos atentos, também encontramos uma grande pluralidade de alterações no
Eugénio e no Cesariny, por exemplo. Contudo, também admiro poetas que nunca
nada mudaram, nem uma vírgula, como Jorge de Sena, por exemplo. Odiaria ser um
totalitário do gosto. Prefiro a consciência de cada um poder fazer o que mais
lhe agrada, a ser guarda-fiscal de nenhuma atitude.)
Contudo, eu tive que ir mais
longe para conseguir recuperar um pouco da minha obra que passara a detestar,
por razões não meramente declarativas, mas morfológicas e fonéticas. Pensei
muito e quem me ajudou a perceber melhor o caminho por onde me re-encontrar foi
uma profunda atenção à obra de Anton Webern, tanto musical como teórica. É a
Anton Webern que devo, de facto, tudo o que me fez re-escrever e ficar feliz
com isso.
A sonoridade que busca tem alguma
relação com a sua adopção do Acordo? Parece-lhe que ele o auxilia nessa procura
fonética?
O Acordo Ortográfico não me poderia auxiliar em nada. É uma mera convenção
(ainda gostava de passar por outro antes de morrer). Ajuda a mente a ter de
aprender regras ortográficas novas e esse processo contribui para o cérebro não
se anquilosar em passados. Todas as rotinas de mim mesmo me inquietam, assim
tive de fazer um tanto de ginástica neuronal, uma vez que detesto fazer
ginástica física. Nunca percebi bem estas inquietações de alguns, a começar cá
por casa. A primeira lição da caducidade das ortografias tive-a em muito
pequeno. A minha avó recebeu um recado de uma funcionária, onde lhe dava conta
da necessidade de chegar mais tarde por ter de ir à “miça”. A minha avó tentou
corrigi-la e eu ouvi esta resposta educada: “A senhora percebeu, não foi? Então
não se preocupe.” (Gostei sempre do encantamento do erro, nos outros e em mim.)
As ortografias terão de ter mais
razoabilidade, mas no fundo são convenções com que se pode brincar. A fonética
e tudo o daí para mais dentro já não se compadece com acordos. Dependem do
evoluir da própria língua, tanto por via erudita como popular. Mas estas coisas
aprendem-se ao aprender português. Razões metafísicas para se indispor com isto
não passam da liberdade para alucinar.
Julgo que haverá palavras que eu
ortografo com acentos, por exemplo, sempre que tenho dúvidas de que uma
homofonia qualquer me vá poder fazer perder o sentido do que escrevo. Aí não
sigo o acordo. Mas também no tempo do anterior já o não seguia em várias ocasiões.
Portanto, nada da ortografia me
poderia ajudar nas minhas tentativas fonéticas ou morfológicas. Só existe uma
alteração ortográfica, que pretendo que seja uma homenagem a Pessoa: o modo
como ele grafou “desasocego”. (Embora esta situação, que na edição crítica das
suas obras me entusiasmou e por quem estimei o perspicaz investigador, se
tivesse tornado uma história um pouco suja quando ele aceitou escrever do modo
que toda a gente o fazia, na sua edição vulgar.) Por mim, fiquei muito feliz
por poder manifestar o meu apreço pelo Pessoa e pelo seu Soares de um modo que
não fosse uma citação de outro qualquer facto verbal de todos eles.
Quando muda palavras de lugar no
verso, as desloca, suprime outras, ou acrescenta, responde sempre a um “apelo”
semelhante, a uma vontade igual, uma qualquer razão, ou razões? Que tipo de
razões ou intuições aí haverá?
Como explico no título que dei aos dois conjuntos de poemas, a partir da nova
edição desenhada pela Vera Velez, não há intenção para fora de mim
absolutamente nenhuma. Fiquei contente com a acalmia que em mim se instalou.
Agora nunca mais olharei para este volume na Relógio D’Água. O Francisco Vale e
o Carlos, seu filho, serão as pessoas práticas para tomarem conta do seu
destino. Eu nada mais tenho a introduzir ou a retirar. Os livros passados
desapareceram para mim. Sei que eles existiram, mas não quero saber deles.
Agora volto a ter mente para trabalhar no muito que tenho pronto para isso.
Pela legislação atual, se ainda se lembrarem de mim, podem publicar o que
quiserem de aqui a setenta anos depois da minha morte (que vontade de rir).
Podia dizer o que foi o Galopam [retomado
em Para Comigo] desenhado por Vera
Velez? Não teve edição comercial?
Em 2014, pedi à Vera Velez — ela tem feito livros magníficos — se quereria
fazer uma 2.ª edição de Um Toldo Vermelho e uma edição de um
livro novo chamado Galopam. Ela fez-me dois livros lindíssimos e de
um despojamento de gosto extremo. Assim o senti, quando os fui buscar.
A tiragem de ambos os livros foi
apenas de 100 exemplares cada um. Com esses livros escondi-me da maioria do
público leitor. Nunca foram postos à venda e só os dei a amigos. Nunca ninguém
revelou nada, pelo que estou muito agradecido. Agora que o tempo foi passando,
comecei a sentir-me mais seguro no desprendimento das mundanidades poéticas,
para que não tenho jeito, mais desprendido do mundo das vozes que peroram e até
das imensas gargalhadas que dava quando encontrava na rede comentários. Diziam
mal e eu ficava muito satisfeito. Ao menos, tudo isso me afastou de tornar-me
um poeta vendável em demasia ou um mestre-escola a conduzir discípulos, sempre
detestei e afastei alguém que eu sentisse que era isso. Só consigo gostar dos
poetas que nunca se tornam isso verdadeiramente em vida. Decidi então juntar os
dois livros, neste PARA COMIGO. Foi este o caminho. Certo ou
imperdoável, é-me indiferente.
E em relação à acalmia? Pode
falar dela? Consegue explicar o que é?
Uso acalmia para designar um enfado de que nunca me livrava com os meus livros
de versos. Sempre que me chegavam às mãos não conseguia gostar deles. Quando
comecei a poder juntar livros publicados, tentava resolver a situação com
emendas parcelares. De novo não me sentia bem. Nunca gostei da minha poesia,
mas no fundo tinha-lhe um inquietante amor, precisava daquilo para o meu
dia-a-dia e para o meu equilíbrio íntimo. Não me pergunte porque precisava. Mas
eu sentia que só por aí me libertaria do tédio que foi, para mim, ser professor
durante tantos anos.
Subitamente percebi. Publiquei a
1.ª edição de Um Toldo Vermelho. Mas senti que o livro estava mal
organizado. Precipitara-me sobretudo nas sugestões que dera para a separação
das estrofes. Revi tudo com os livros da Vera [Velez], os quais me mostraram
imenso graficamente. Aprendi com ela acerca do espaço dos versos num livro.
Sobretudo fui capaz de perceber que podia aplicar a ambos os livros os meus
intuitos. Agora juntei-os e, repito a palavra, “acalmei” de todo aquele
fervilhar. Nunca mais, sinto-o com segurança, mexerei em Para Comigo.
Melhor dizê-lo mais enfaticamente que nunca mais o lerei. Só se alguém me
apontar alguma gralha ou outra, o que eu reencaminharei para o Francisco e o
Carlos se quiserem voltar a publicá-lo em qualquer altura.
Estou tão grato a tanta gente que
me ensinou. À Judith Beatriz de Sousa que me deslumbrou com a literatura no
liceu de Vila Real, onde tive a felicidade de ela estar antes de vir a fixar-se
no Camões de Lisboa. Nunca esquecerei Maria Helena da Rocha Pereira ou Vítor de
Aguiar e Silva, na horrível Coimbra, gigantes e ambos atentos ao miúdo que lhes
devia largar tanto disparate. Depois aprendi a própria forma como eu gostaria
de ensinar com Vitorino Nemésio. Tudo tão bom e de imensa sorte.
E posso perguntar alguma coisa
sobre esse “muito que tem pronto”?
Pode. Escrevi nestes anos imensa coisa. Não consigo escrever, mesmo pequenas
notas, sem as minhas canetas de tinta permanente, os objetos que mais adoro e
de que preciso em uníssono com os bicos muito grossos e os papéis por onde a
tinta corre com prazer acrescentado. Dependo completamente delas para escrever
seja o que for, nem as listas do que trazer do supermercado consigo fazer sem
elas.
Tudo aquilo que escrevi foi
passado a fotocópias e desordenei por completo a própria ordem arbitrária.
Depois guardei. Era uma montanha de fotocópias, mais de cinco mil, bastante
mais.
Saí do país com aquilo. Fui para
a Grécia, Atenas. Durante três anos, mais de um mês cada ano, arranjaram um
hotel com duas mesas no quarto de que eu não saía, a ver o que fazer com
aquilo. Claro que saía, mas sempre no continente. Quem andava pelas ilhas era o
Pratsinis e a mulher e o João. Sempre me dei mal com o mar e não era por se
chamar Egeu ou Jónico que me punha a querer andar por ele.
Esse trabalho resultou em imensos
grupos de um poema só, talvez demasiado longos, ainda não sei. Grupo atrás de
grupo vou eu começar a escrever agora, sem me lembrar de outra coisa senão a
pequena vibração que lhes senti. Vamos a ver o que acontecerá. Se um livro, se
dois. Isso ainda não sei. Até pode ser que resultem três. Por isso usei a
palavra muito, é a que eu ouço de mim para mim.
O seu poema Homossexualidade,
concebe-o como libelo, síntese, nota, “documento histórico”, no sentido em que
possa fazer especialmente referência (oblíqua ou não) a uma época específica?
Ou foram (são?) todas as épocas assim? Ou há outro sentido, tensão
organizadora, motivação?
Quando escreviHomossexualidade foi um pouco por sentir que Portugal
estava a afastar-se de vários países que eu respeitava. A maior mágoa, devo
confessá-lo, foi o atraso relativamente a Espanha. Não acredito na função
social da poesia, mas escrevê-lo foi tornar tudo mais óbvio para quem me
tivesse lido. Desde a minha primeira publicação que nunca abdiquei de que a
base do que escrevia tinha a ver com a minha identidade sexual. Fala um pouco
da crítica portuguesa que nunca ninguém tivesse referido esse elemento essencial.
Foi um espanhol (Miguel Casado) e um francês (Fernando Curopos) quem,
naturalmente, falou pela vez primeira nessa obviedade e, para mim, banalidade.
Em Junho de 2010, Portugal mudou,
nesse aspeto. Pude logo nesse mesmo mês casar-me com a pessoa com quem vivia
desde os meus 18 anos, em 1964.
Este assunto, todavia, merece-me
umas certas considerações.
Em primeiro lugar, não foram os
homossexuais por si só que conseguiram essa modificação. Foi o facto de a
realidade da luta que começara, no mundo Ocidental, com os Stonewall
Riots e se expandira pouco a pouco por todo esse mundo que começou a
mostrar um caminho de afirmação a muitos homossexuais, se não a todos os
homossexuais. Essa afirmação foi tendo múltiplos ecos expansivos. Mas só
começou verdadeiramente a atuar no mundo social quando as/os heterossexuais
compreenderam essa mesma luta. Foi o convencimento das/dos heterossexuais que
conseguiu imenso ajudar a alterar as leis. Eles estavam maioritariamente nos
locais que podiam proceder a essas alterações e fizeram-nas acompanhados por
vários homossexuais a quem pediram ajuda para proceder a essa alteração. Se
as/os homossexuais se voltarem para uma não relação prática e efetiva com o
mundo maioritário das/dos heterossexuais que os escutam, terão muito a perder.
Bom, isto é um pouco como o que
se passou com o 25 de Abril. Dificilmente a oposição civil ao Estado Novo teria
alguma vez sido capaz de um derrube desse regime, é um facto que nunca o
conseguiu. Foram os militares, talvez só pudessem ser eles, que tudo
derrubaram. Curiosamente nunca quiseram assumir um poder só para si. Pediram
auxílio aos núcleos políticos que se agitavam no tecido português da altura.
Esses políticos ajudaram os militares e o facto é que o novo regime nunca caiu
em nenhuma tirania. Os homens contra a situação puderam avançar por os
militares lhes terem aberto o caminho e pedido a sua ajuda.
O mesmo com as alterações
legislativas de 2010. Os homossexuais sempre combateram por esse espaço de
equidade, mas nada puderam introduzir eles próprios nas leis constitucionais.
Foi a crescente atenção dos heterossexuais politicamente representativos que,
sem dúvida aconselhando-se com homossexuais, que permitiu essa mudança. Num
certo sentido foram os heterossexuais quem permitiu a abertura aos homossexuais
e ajudou na alteração legal. Foi um trabalho duro por parte das/dos
homossexuais, mas foram heterossexuais quem pôde legislativamente avançar.
Hoje, quando ouço ou leio
referências a uma pseudo-heteronormatividade fico muito crispado. Primeiro,
porque foram as/os heterossexuais a prescindir dos direitos que tinham para
aceitar e incluir a pluralidade das orientações sexuais. Segundo, por terem
tornado inteiramente iguais às deles todas as prerrogativas legais. Terceiro,
porque entre as/os heterossexuais sempre houve distinções comportamentais muito
claras, tal e qual quanto as havia entre as/os homossexuais (por isso invocar
libidos pessoais tornando-as dogmáticas é não saber pensar: a libido é
inelegislável e do foro sempre enigmático e belo de cada indivíduo). Todos os
que falaram antes nessa heteronormatividade foram pensadores e ativistas que
estavam a tentar pôr a claro as suas reivindicações. Depois de todas essas
alterações em tantos países é um tanto absurdo repisar nelas nesses países. Se
pensarmos em termos da globalidade das nações sem dúvida que teremos de ter
sempre essa ideia presente, mas não entre os que já não têm normatividade
contra que reagir. Não me esqueço, porém, que o movimento LGBTI será sempre de
continuar ativo e nós a não nos afastarmos dele.
O problema das normatividades
encontra-se sempre preso não às maiorias sexuais, mas a quase todas as
religiões que sufocam o mundo. São as religiões que introduzem essas
normatividades e as fazem atuar. Não vale a pena perder mais tempo com esta
óbvia questão.
Por uma questão de verdade
meramente biográfica, tenho alguns grandes amigos que são profundamente
católicos e, por acaso, inteiramente heterossexuais. Foi onde encontrei sempre
um espírito completamente livre em questões sexuais. Talvez por neles o facto
religioso não necessitar nunca de se tornar um facto de moral oblíqua. Deve
haver outros assim noutras religiões. Mas eles são indivíduos, as religiões são
massificações alienantes.
Só para concluir. Hoje em dia
persiste a doença mais difícil de curar: a fobia. Penso que muita gente padece
dessa fobia, entre as/os heterossexuais e entre as/os homossexuais. Mas isso é
uma outra questão. Há por exemplo uma fobia, para lá da junção dos sexos, que
diz: só a esquerda aceita o ser homossexual (uma parvoíce absoluta). Alguns
dessa mesma esquerda portaram-se ridiculamente, fobicamente, quando um membro
de um partido de direita se afirmou como homossexual. Fiquei envergonhado com o
que li e ouvi. Este é um caso de homofobia por parte de homossexuais, o que me
desgosta porque parecem esquecer-se dos séculos que se viveram e se esquecem do
respeito que devemos pelas opções de cada um.
Num poema seu, anterior, leio:
“Detesto a poesia. Essa tarefa/ debruada de troca social.” Detesta? O que acha
mesmo sobre a poesia? O que lhe apetece dizer sobre ela?
Repare. Embora a fonética da palavra “detesto” me mostre que está a referir
poemas que me desagradam já, afirmo-lhe que continuo a pensar que detesto a
poesia. Aquela que surge para ser poesia, a que se afirma antes de tudo o mais
como cartão-de-visita, a que apressadamente procura de imediato um pedestal.
Escrevem-se várias coisas que o tempo se encarregará de esquecer ou a que o
tempo (dizendo melhor, o contínuo refazer dos gostos pelas várias épocas) lhes
atribuirá um sentido. Querer ver para além disto, no imediato, sempre me
pareceu má teoria (não sei se existe alguma boa sobre este assunto) e mau
impulso. Sempre combati as imensas teorias com que me fui defrontando (tenho o
testemunho de imensas pessoas de que nunca me ouviram defender nenhuma, pelo
contrário sempre procurei desligar delas a sua atenção aos versos — é o acaso
de se ser professor. Sempre me ri dos que se punham em bicos de pés para serem
avistados com papéis agitados ao vento dos leitores. Isso mesmo em que me
pareço tornar agora, não é?
Há aquele poema seu, em que lhe
dizem, depois de 74, que podia “deixar em paz os poetas ingleses”. Agora de que
nacionalidade seriam esses poetas? Já não seriam espanhóis?
Desculpe, mas eu não disse nada disso. Quando a seguir ao 25 de Abril me dirigi
ao Diário de Lisboa onde sempre escrevi sobre a poesia inglesa
que ia saindo, umas coisas pouco boas, mas que podiam talvez desviar para fora
do francesismo dominante as atenções de quem podia ler. Cheguei lá e levava um
texto sobre George Steiner (que não era um poeta). Publicaram-no, mas chegou um
engajado qualquer ao pé de mim a dizer-me, com a alegria que ambos
partilhávamos, que podia deixar de escrever sobre poetas ingleses. A insinuação
era de que eu era livre agora para poder escrever sobre poetas portugueses o
que, no seu pensamento, eu não faria por causa da censura prévia, sei lá. Nunca
mais escrevi nada para esse jornal, sobretudo pelo choque de não perceberem que
eu não estava a escrever nada contra o meu desejo. Eu quis escrever aquilo. Já
antes eu havia falado sobre muitos poetas portugueses e continuaria a fazê-lo
depois.
Em poesia portuguesa, o que é que
o Joaquim Manuel Magalhães não “deixa em paz”? Ou seja, o que é que lê com
prazer, interesse, vontade?
Sobre poesia portuguesa eu creio ler tudo, mesmo a situação atual de a melhor
poesia estar em livros que não aparecem nas livrarias, por serem publicados em
editores sem distribuição. (Também isso é irrelevante, porque também já não há
livrarias.) Leio porque leio, é um hábito que me ficou desde que me lembro,
desde a altura dos meus 14/15 anos a amar a poesia da Florbela e do Gomes
Ferreira. Tive um pai extraordinário, que só queria para mim o que eu quisesse,
abriu-me uma conta numa livraria que ele depois pagava. Nunca pensou que eu lhe
fosse gastar tanto dinheiro em livros, ainda por cima sendo ele um homem que
nunca gostara de ler, poderia ter gostado, mas não gostou. O meu pai é uma
figura cimeira na minha vida, um pouco mais acima de outro cimo que é a poesia
portuguesa (sem esquecer que sempre a li em contraponto com a poesia de várias
outras línguas). Nessa altura já era capaz de ler em francês e em inglês e em
espanhol. Nunca fiz uma leitura provinciana da nossa poesia, por isso me
espanto com as cotoveladas que os poetas dão uns aos outros por causa do seu
lugarzinho efémero. Mas hoje sei bem que sempre foi assim e encolho os ombros.
O que lhe sugere uma cidade, como
Lisboa, sem livrarias? A situação no Porto não é excessivamente diferente,
ressalvadas algumas excepções.
Mostra-me um demasiado vazio, sobretudo por nesses armazéns apenas se
encontrarem estes livros inúteis que dizem ter um público. Um gosto público que
se abastece de nada, nem sequer sabe se gostará de ler. Gosta de ler o que para
ali está. Mas em Londres, Paris, Madrid também já não há livrarias ou boas
casas para poder comprar discos. Encontrei uma em Berlim, mas também já deve
ter desaparecido. Falam em globalização. Mas onde encontrar tanto o antigo como
o novo a não ser nas Amazon europeias ou equiparáveis? (Digo europeias por as
de fora da Europa obrigarem a desalfandegações incomportáveis e abomináveis.)
Parece que os das alfândegas se estão a vingar das que perderam.
Passa-se isso com tantas lojas
tão úteis, como por exemplo as boas que existiam ligadas às belas-artes. Toda a
gente se lembra de outras ainda, por certo.
Parece-lhe que o “momento” da
poesia portuguesa é especialmente interessante?
Não sei nada de momentos, apenas sei de sentimentos. Tenho muito bons
sentimentos para com a nossa escrita poética em volta do início dos anos 70. Já
sabe que não irei falar do poeta pelo qual tenho mais afeto, por uma questão de
decoro.
Desde essa altura e avançando por
ordem decrescente de idades, começava por referir obras de Alberto Pimenta,
Fernando Assis Pacheco, António Franco Alexandre, Paulo da Costa Domingos, Rui
Baião e Gil de Carvalho. Quase pela mesma altura, apareceu a obra do agora
silencioso Fernando Luís Sampaio. Também José António Almeida. Mais adiante Rui
Pires Cabral e José Miguel Silva, logo a seguir a eles Manuel de Freitas.
Também Jorge Roque, mas ele é transgénero, escreve prosas e eu leio-as como
poemas, não se deve zangar por eu dizer isto, espero bem. Não lhe parece que é
para sentir uma emoção feliz?
Espero não me esquecer de alguém.
Que me insinuaria?
Entre os mais novos, estou muito
atento a três. Frederico Pedreira, Sebastião B. Cerqueira e Fábio Neves
Marcelino.
Lembro-me, ou creio que me
lembro, de dizer que traduzir era bom para não escrever, ou (o tom pareceu-me
esse) porque não escrevia, porque traduzia. Se me lembro bem, e disse isto,
ainda se aplica, para si? Continua a traduzir? Posso saber alguma coisa sobre
isso, e sobre o que acha da tradução, tal como a faz?
Pergunta excelente para poder continuar a responder à anterior. Ler poesia
estrangeira sabendo a língua original é um ato de tradução muito profundo.
Quando me deu para traduzir, só traduzi porque gostava de o fazer com alguns
autores. Porque num certo momento da minha vida gostava dessa atividade. Hoje
não gosto, por isso não me vejo a traduzir mais seja o que for. Tal como não me
vejo a escrever mais artigos sobre qualquer coisa. Perdi o gosto e foi uma boa
conquista, pois pude caminhar mais para dentro de mim. Continuo, porém, esse
ato de tradução que é ler em línguas estrangeiras, sobretudo os que vão sendo o
mais recente, sem o que sufocaria.
Nesse campo, contudo, parece-me
que só houve uma tradução que me tivesse dado e continue a dar um grande gosto.
Foram os poemas todos que Kavafis nos quis deixar. É a única tradução completa
e talvez a que tenha menos erros. Mas não sou eu quem se deve pronunciar. Só um
crítico que saiba mesmo grego moderno. Os que não sabem ou devem ficar calados
ou não trepidar não sei por que mecanismos pessoais. Foi para mim uma tradução
fulcral, não só pelo desde sempre tão amado poeta, como pela companhia da
figura imensamente culta que partilhou comigo a tradução, o Nikos. Estou sempre
a aprender coisas sem fim com ele, mesmo fora do campo estrito de Kavafis. Às
vezes passamos um dia a falar e ao fim do dia traduzimos uma estrofe. Havia um
intuito de traduzir os poemas inacabados que ficaram depois da sua obra, mas já
nem isso me apetece, não iria acrescentar grande coisa, apenas satisfazer
curiosidades. Não quero, repito, perder mais tempo com outras coisas que não
sejam os meus versos.
Devo depreender que não quer
dizer mais sobre o ter deixado de querer traduzir e escrever artigos?
Ter deixado de traduzir ou de escrever artigos foi um ato de limpeza que
resultou de um modo retumbante comigo. Traduzir é perder tempo, dá muito
trabalho, a maior parte das vezes as coisas ficam tortas em português e
percebemos logo que não resultam bem e não pode ser de outra forma. Os artigos
têm um peso que nos entristece, percebemos no sangue quanto tudo é passageiro e
ficamos sem fôlego para o que gostamos mesmo de viver ou escrever. Agora
percebo isso. Ajudou-me a respirar melhor, como a poesia sempre faz. E a ter
todo o tempo que me resta (e que será sempre pouco) apenas para me entregar a
ela.
Nunca gosto de falar de poesia de
um modo tão abstrato, sinto-me ridículo. Por isso digo que o que aconteceu com
as traduções de poemas e com os artigos tem a ver com uma alteração radical
dentro de mim. A casa da praia e o que havia em Lisboa foi tudo vendido depois
de termos passado a viver aqui. Senti-me tão bem neste largo espaço que já nem
compreendia como viver fora dele. É cerca de uma aldeia da freguesia do
Carvalhal, que pertence ao Bombarral, fica a três quartos de horas de camioneta
direta até Lisboa. Mas é mais do que suficientemente longe, está longe de ser o
que chamamos um arrabalde. O Carvalhal é muito bonito, mas eu vou sobretudo ao
Bombarral. É uma vila meia morta, com ruínas, uma grande mata e onde as pessoas
são muito simpáticas. Gosto daquela tranquilidade meio ativa, do café a que
vou, entre outras coisas mais. Fazer esta escolha foi muito benéfico. Deixar as
outras casas, como deixei as traduções e os artigos, fortaleceu-me as “emotions
recollected in tranquility” (do Wordsworth de quem gosto muito e que foi o
primeiro poeta que tratei nas minhas primeiras aulas) com muito mais vigor e
com uma passagem do tempo muito boa. No fundo está tudo como bom estrume donde
os versos brotem. Senti sempre Lisboa como uma pequena cidade absurda, vou lá
para um ou outro pequeno afazer e logo volto. Que ninguém pense em bucolismo,
sou o invés desse tema. Pense-se antes num “hortus conclusus” (no seu
sentido latino original, sem qualquer ligação ao modo como o cristianismo o
folclorizou) até onde me chega (graças à internet) o recente de tudo quase dois
dias depois de ter sido posto à venda. Talvez se trate, também, de
extravagância, uma coisa de que gosto imenso.
Nota: Esta entrevista foi feita
por escrito. As perguntas e demais textos seguem o Acordo Ortográfico de 1945.
JMM segue o Novo Acordo Ortográfico. “Aderi ao acordo ortográfico
imediatamente, um acordo é algo irrelevante para a língua, só os místicos
fumarentos supõem que é importante, mas não passa de uma renovação de
feitiços.” (JMM)
Joaquim
Manuel Magalhães, um poeta não domesticável /premium
Depois de quase 10 anos em silêncio e um
corte radical na sua poesia, surge agora um novo livro, "Para
Comigo", onde promete continuar a afugentar leitores e todos os que querem
vasculhar a sua vida.
Foi um
dos poetas mais amados e mais seguidos da poesia portuguesa recente até à
publicação, em 2010, de Um Toldo Vermelho, um livro que contem
aquilo que Joaquim Manuel Magalhães considera ser o que se salva de tudo o que
escreveu. O gesto teve a força de um cataclismo para os leitores e admiradores:
muitos não lhe perdoaram, outros recusam-se a tentar sequer ler o que resultou
de todos os cortes, rasuras, substituições. Dos 21 livros publicados restam
pouco mais de 100 páginas que voltarão a ser revistas e cortadas e publicadas
em edição de autor, em 2014.
Nesse
mesmo ano surge Galopam e nova edição autor. Cerca de 100
exemplares para distribuir por amigos. Quase uma década depois do gesto
iconoclasta que, de resto, sempre esteve latente quer no conteúdo, quer na
forma da sua escrita, reaparece com Para Comigo (Relógio D’
Água). A obra, que chegou agora às livrarias, reúne a terceira e derradeira
versão de Um Toldo Vermelho e Galopam. Finalmente
em paz com o seu passado poético, Joaquim Manuel Magalhães diz-se pronto para
começar uma nova fase da sua vida.
Fomos
visitá-lo à casa que partilha com o poeta João Miguel Fernandes Jorge, perto do
Bombarral. Mudaram-se para lá há mais de 20 anos. As árvores, os arbustos, as
flores que João Miguel plantou nessa altura cresceram e formam um pequeno
bosque colorido a lembrar a Europa do Norte. Joaquim diz que “não tem jeito”
para jardinagem mas “adora o bosque, especialmente em dias de chuva”. Este ano
aconteceu terem ambos livros novos a sair na mesma editora e na mesma semana. É
a primeira vez que tal acontece em mais de quarenta anos de relação. Também não
têm o hábito de mostrar um ao outro o que vão escrevendo, apenas o fazem quando
os livros estão prontos. Quem lhes conhece as obras sabe como são dois
universos totalmente distintos.
A casa
cheia de livros e quadros é um refúgio familiar e acolhedor. Alheios ao que se
passa no meio literário, nas academias, nas redes sociais, vêm cada vez menos a
Lisboa, preferem as Caldas da Rainha onde têm amigos e Joaquim já não se
imagina a ser empurrado para relações, atenções, leituras que não quer.
Tornou-se ainda mais seletivo e exigente, mas a generosidade para com os outros
é igual: uma das premissas desta entrevista era poder falar sobre os bons
livros de poesia que 2018 lhe deu. Prefere falar da poesia dos outros. Sobre a
sua é parco e assertivo, sem direito a elucubrações líricas que, de alguma
forma, sirvam para “vistoriar” aquilo que ele acolhe, recolhe ou despede.
Defende aguerridamente o seu direito à mudança e está-se nas tintas para o que
os leitores querem dele, se se sentiram traídos, se vão lê-lo ou não. De
qualquer forma já tinha avisado:
“Melhor
não lesse
quem por dever
E se interpretou aqui
um exercício de sintaxe
uma retórica minada de prosódia
independente de biografia,
por favor não atrapalhe.”
(Um Toldo
Vermelho, 2010)
No seu
ensaio Com Voz Torva e sem Arrependimento, Maria
Filomena Molder defende que JMM retirou da sua poesia toda a sedução, mas
manteve o demoníaco, a torpeza e a astúcia. Com Agustina, sabemos que nenhuma
sedução “retém os nossos passos nem constrói monumentos de paz, pelo contrário
a produz uma virtude de pacotilha que é a submissão” e, tanto a vida como a
poesia de JMM sempre se pautaram por uma vivência radical da liberdade, a sua e
a dos outros. Não perceber que na raiz da obra Magalhães se encontra mais a
rebeldia e o acidente que a busca de verdades ou a afirmação identitária que
parece hoje ser a demanda de todos artistas. “Sou a vida que me atravessa”,
declara nesta tarde de domingo e chuva. “Só escrevo a minha biografia”. Com a
mesma ênfase recusa todas as ideias feitas e todas as expectativas que se
colaram à sua poesia e à sua pessoa.
Para
Comigo é assim o livro mais radical de JMM. Toda a
narratividade desapareceu, toda a imagem concreta, direta desapareceu, restam
palavras antigas, esquecidas, palavras novas como se pronunciadas na primeira
manhã do mundo. Resta (e não é pouco) uma toada, uma musicalidade que evoca as
Cantigas d’ Amigo, as canções tradicionais que aos poucos se sobrepõe a tudo e
se torna viciante. É quase impossível ler este livro sem a ajuda de um
dicionário e isso pode ser muito frustrante para os leitores porque impede que
se entre no poema logo à primeira ou segunda tentativa. É preciso ficar ali,
aceitar o desnorte, a asfixia, a sensação que tudo aquilo nos escapa como uma
língua desconhecida. O tempo e o espaço volatilizaram-se, não há boias nem
botes salva-vidas.
Talvez,
nunca como agora a poesia de JMM esteja tão impregnada de real. Já não é um
real evocado, descrito, já não há cidades, nem quartos, nem corpos. O real é
essa contínua sensação de afogamento, de perda, de estranhamento, de incerteza
naquilo a que chamamos dias e horas, factos, acontecimentos. O real é tudo o
que não sabemos como explicar. Como nomear, como agarrar. É esse
estilhaçamento que encontramos neste livro, onde só um passado remoto se
parece salvar. Um passado feito de minérios, plantas, restos de vozes, restos
de imagens, uma natureza metamórfica em oposição a materiais sintéticos,
artifícios técnicos, fraudes de strass e musselina. Houve um tempo em que JMM
era menino, usava calças de surrobeco (burel/lã) e tinha uma bisavó alemã que
lhe dirigia imprecações, vivia entre montanhas imóveis e estava atento a tudo o
que ainda não possuía nenhuma história…
“Bugalho.
Cárcere carteiro.
Razia, buril
Furtava o
confim azinhaga.
Ia ter contigo.
Cio num botão de sal.
Ponteei-o, sépia vinil.
Grés a
calcinar.
Comedida veemência.
Ideia e saga.
À tardinha anda passear.
Cicatriza-te
em mim.”
(Para
Comigo, Um Toldo Vermelho, 2018)
Depois de
ter sido crítico literário, professor catedrático na Faculdade de
Letras, retirou-se para o bosque. Desistiu do meio literário
português? Porquê?
Não,
nunca usaria para mim a palavra desistir, diria que nunca lá estive
pessoalmente. Mas penso ter estado sempre atento, como hoje ainda estou, às
palavras vagantes dos outros. Fiz duas ou três amizades que resistiram a muitos
escolhos, sobretudo porque não gostei de grupos literários, preferi sentir-me
livre e observar de fora com a maior atenção. Mesmo catedrático, tal como
alguns outros colegas meus, não me acomodei, mantive toda a atenção e sempre
falei do mais antigo e do mais novo, num ímpeto que tinha a ver comigo como
pessoa e com os alunos a quem pude prestar mais atenção. Fiz sobretudo isso e
muito menos tornar-me um angariador de posições afastadas dos alunos para me
promover económica ou socialmente. Nunca procurei sequer ser um catedrático de
uso externo, como também se faz.
De
qualquer forma nunca teve uma relação fácil com esse “meio literário”.
A primeira pessoa (de qualidade) que conheci quando cheguei a Lisboa foi o
Manuel Gusmão. Depois o João Miguel [Fernandes Jorge] e logo a seguir o António
Palolo. Ele foi o nosso primeiro amigo conjunto e nós sentimos logo a diferença
que era estar com alguém das artes plásticas e alguém do meio literário. As
pessoas das letras dão menos atenção ao novo e são muito mais conflituosas. Nos
artistas essa atenção ao novo não era conflituosa. O espírito sempre foi outro,
mais aberto. Por isso, toda a minha vida me relacionei mais com gente das artes
plásticas que da literatura. Ainda hoje os meus grandes amigos são das artes.
No final dos anos 60 não era tão conflituoso, mas havia os grupos fechados. E
eu detesto a situação de grupo. Aos poucos, o ambiente literário foi-se
tornando mesquinho e eu infelizmente voltei a perceber essa mesquinhez quando
apareceu a internet, os blogues, as redes sociais e as pessoas começaram a
mandar-me coisas que eram ditas aí. Eu pressenti logo que a internet potenciava
a malignidade e que quanto mais medíocre fosse uma pessoa mais ela era capaz de
escrever coisas insultuosas. Lembro-me de já então pensar: olha aqui está a
nova PIDE. Podem dizer o que quiserem e como ninguém lhes exige que se
justifiquem ficam impunes.
Também
foi sempre muito crítico em relação à massificação da cultura.
Isso hoje atenuou-se muito em mim. Mas essa posição vinha de coisas muito
íntimas como o facto tão simples de eu precisar muito de solidão. Eu preciso mesmo
de solidão. Eu preciso mesmo de não me sentir empurrado para fazer coisas, para
leituras, para as palavras… Mas hoje em dia o que mais me incomoda já não é
isso mas a circulação de um discurso de ódio. A ideia de que existe crítica
literária é falsa já, pela simples razão de que os próprios jornais se
aglomeraram a essa net tão típica. Coisas para a paciência e para ver o que
virá a suceder.
No
entanto, começou a sua carreira na televisão, no final dos anos 60.
O
programa chamava-se “Os Homens, os Livros e as Coisas”, foi em 1969.
Depois do 25 de Abril as pessoas pensaram que eu tinha sido expulso da
televisão. Mas na verdade o que aconteceu foi uma pequena história fascinante:
quando acabei o curso era muito novo e o catedrático Joaquim Gonçalves
Rodrigues, um homem ligado ligado ao regime, chegou a dirigir a Mocidade
Portuguesa e se considerava um “fatimista”, veio convidar-me para ficar a dar
aulas na Faculdade de Letras. Mas disse-me que para isso gostava que eu
deixasse de fazer programas na televisão. Eu, muito espantado, perguntei-lhe
“mas porquê?”. E ele respondeu: “Porque eu acho que você agora deve estudar,
aprofundar, tem que ir investigar muito lá para fora, a televisão vai torná-lo
superficial”. Senti que aquele homem me tinha dado uma lição de vida
extraordinária. E que aquele homem era de uma extrema inteligência nas suas
relações com os outros. Percebi o que estava em causa e deixei a televisão.
Pode a
poesia sobreviver à girândola consumista que tudo engole, a um público pouco
lido e sobretudo pouco disponível para o atrito ou está destinada a ser sempre
para uma elite reduzida?
Sempre
se leu pouco. Sempre se leu pouco poesia. Dantes as distâncias e os preços
afetavam o pouco acesso aos livros. Mais antes ainda, aquilo sobre que pousavam
as palavras era para um reduzido número, optou-se por a cantar, para servir em
festas da cidade e dos ricos senhores que as governavam. Às vezes, esses
senhores acontecia gostarem mesmo do que ouviam e patrocinarem alguns para
escreverem para eles ou para os seus espaços em que agrupavam rolos com
palavras.
Hoje em
dia vive-se uma época com coordenadas sociais diferentes, naturalmente, e isso
repercute-se nas compras, o que afeta as editoras que vivem estritamente para a
venda. Eu creio que, mesmo assim, a disponibilidade para a leitura deve ter-se
alargado a uma percentagem maior de gente. Só que essa percentagem é sobretudo
de gente que acredita na publicidade e se habituou a aconselhar-se com ela. O
fito da publicidade é impingir produtos. O que é impingido, porém, não se pode
afastar muito do gosto geral. Os escritores estão atentos a isso. A publicidade
acaba por os auxiliar se se inscreverem no que a publicidade entende por gosto
geral.
Foi
sempre assim. Hoje parece-nos mais evidente, sei lá. Houve livros muito bons
que tiveram uma difusão por via do gosto geral, estou a pensar
em Werther como um exemplo. Houve livros muito maus que se venderam
enormemente, como A Rosa do Adro, de já nem sei que autor e que se
tornaram esquecimento. Todos os anos em que andei em escolas e liceus e
faculdades como aluno, eu via claramente que todos os meus colegas não liam,
raramente encontrei uma exceção a isto. Quando me tornei professor, descobri
que também a maioria dos meus colegas, próximos da literatura, não liam para lá
dos seus interesses imediatos, isto é, liam o que lhes era preciso. Gostam de
se sentir especialistas, aquilo que mais mata a literatura e o seu ensino.
Alguns até tentaram ser poetas, um ou outro teve editoras, mas na sua maioria
eram maus, poucos foram os que sobreviveram desse modo. Deve haver várias
pessoas que passaram por esta realidade. Talvez outros não tenham passado, como
em tudo.
A poesia
pode criar dificuldades, rugosidades que a afastam desse gosto geral ou apenas
o alcançam mais tarde no tempo. Há poetas que continuam a publicar tijolos e as
editoras podem não se importar, pois eles supostamente vendem, pois se souberam
aproximar de um gosto geral na maneira da sua organização de palavras e sentimentos.
Outros não conseguem, não se importam, não querem desistir da sua conceção
construtiva de emoções e de buscas. Se escolherem esse caminho, se o tiverem
escolhido em momentos longínquos já no tempo, sempre teriam pouca repercussão.
Depois há os poetas maus e os prosadores maus, isso é outra questão.
Por mim
não gostaria de me tornar um poeta de leitores, por feitio. Da mesma maneira
pela qual não gosto de ter demasiados amigos, tenho amigos, mas não muitos.
Contudo, a poesia e não o poeta sempre foi para quem quiser.
“ — O que
achas que ele fez?
— Uma coisa que esteve sempre a fazer e que só ele pode fazer.
— O quê?
— A reler os seus versos hoje e a recolher os despojos, que com os
batimentos das ondas ficam lavadas de ouro e imundice em vez de os embalsamar:
é que, mesmo profetizando contra si próprio, conseguiu não ter o coração de
cinza.”
(Maria
Filomena Molder, sobre Joaquim Manuel Magalhães em Dia Alegre, dia Pensante,
dias Fatais)
Enquanto
crítico literário evitava o atrito que não evitava enquanto poeta?
Nunca
escrevi sobre nenhum livro de que não gostava. Preferia silenciar-me. O
problema foi mesmo eu deixar de viver bem com esse trabalho. Aquilo criava-me
confusão, desestabilizava-me. Embirrei com o que estava a fazer, de tal modo
que nem quis reunir em livro esses últimos textos. Quando me mudei para aqui
percebi que tinha que me dedicar a uma coisa só. É muito importante haver quem
discuta os livros. Sobretudo isso; quem discuta. Agora na internet as pessoas
não discutem nada. Manifestam bronquidões e não se justificam porque estão no
anonimato. Se o não estão, limitam-se a formar um impulso qualquer que lhes dá
e não é nunca qualificado. Esta coisa da internet das redes sociais e das
caixas de comentários é profundamente cobarde, não cultural. Causa-me
preocupação e temo que seja a partir dela que nasçam novas tiranias. Pois
aquilo já está configurado para ser o ser. Ao mesmo tempo, vontade de ferir o
outro e alienação. Esta leva sempre a ditaduras. Uma sociedade inteira ali
metida pode destruir a sociedade do diálogo, da complacência, do aprofundamento
de ideias.
A
internet faz-me lembrar o que foram, no princípio do século XX, os movimentos
de alteração da literatura. Dou um exemplo: o Manifesto anti-Dantas do Almada
Negreiros. O Almada era um autor que, quando confrontado com as pessoas da sua
geração, era um escritor menor e um artista menor. Ele é contemporâneo de gente
magnífica como o Santa Rita Pintor, o Sá-Carneiro, sobretudo o Pessoa. Também
este teve que reagir ferozmente em defesa do Raul Leal ou do António Botto ou
da Maçonaria, mas agiu com uma finura, uma ironia tão subtil, uma genialidade
que o Almada nunca conseguiu. Para mim o Manifesto anti-Dantas é um bom
equivalente absoluto das redes sociais: é o escrever por ódio e para dar nas
vistas.
Um dos
homens que eu mais admiro na literatura portuguesa é Jorge de Sena. Mas ele tem
duas coisas que não percebo por serem talvez negativas: a agressividade
resultante do seu ressentimento muito ligado ao seu imaginário. Ele estava fora
e isso levou a que muita gente o procurasse ignorar ou não lhe prestasse a
devida atenção. Penso muita vez que um poeta violento pode atirar assim por se
pensar não amado. No fundo, é um caso muito complicado para ele mesmo.
Nos anos
80 falava da “bertrandização” da cultura e hoje isso tornou-se mais evidente
que nunca com os conglomerados editoriais e a progressiva marginalização
das editoras e livrarias independentes.
Eu
não vejo as coisas assim. Porque isto fez com que aparecessem muito mais
pequenas editoras que são muito importantes. E na Assírio & Alvim comprada
restam dois grandes poetas que eu admiro, Herberto Helder e António Franco
Alexandre. Embora o pareça, não foi um grande triunfo para a Porto Editora.
Limitou-se a esses dois. Para mim o grande problema das editoras portuguesas
foi o incentivar muito um gosto que é fácil, sobretudo na ficção. Perceberam
que quanto mais banal fosse um livro mais vendia e então passaram a apostar
apenas nisso. Há um grande desequilibro entre a quantidade de ficção publicada
e a sua qualidade.
Durante
estes últimos anos publiquei dois livros em edição de autor. Isso fez-me feliz.
Agora pensei que estava a ser um pouco cobarde em continuar a fazer livros só
para os amigos. Então de novo entreguei a palavra ao difícil encontro com essa
figura que é o leitor sem cabeça. Contudo, mesmo agora, não sei o que vou fazer
a seguir.
A minha
admiração vai toda para o que fazem as pequenas editoras. E ainda há umas
pequenas livrarias em Lisboa, a Letra Livre e a Paralelo W e agora a Poesia
Incompleta, onde consigo encontrar os livros que vão saindo nessas pequenas
editoras, e aí podemos encontrar muito boa poesia, sobretudo mais afoita do que
a dos conglomerados.
Por
exemplo?
Dou
um exemplo de uma coisa muito boa que saiu em edição de autor, as pequenas
ficções de Maria de Fátima Borges chamadas Vai Chover Amanhã. A
autora vive nos Açores, é a melhor ficção que eu li neste ano. Ela tinha
publicado na Cotovia e depois nunca mais conseguiu editar. Um livro de um uso
admirável da nossa língua. Histórias que são simultaneamente ternas e de uma
grande densidade. Outro livro que me fascinou pela mágoa, por algum sentimento
soterrado, Ultimato, de Diogo Vaz Pinto, (na Língua Morta) uma
aventura verbal espessa, torva e subtil muito atrativa e bem conseguida.
Outro, Shots de Manuel de Freitas, (na Averno) uma obra exímia
de envolvimentos culturais, construída com elementos muito pessoais, doces
mesmo quando surge alguma amargura. Dois livros de Paulo da Costa Domingos, (na
Frenesi) Jocasta e Dizimar, breves e muito densos,
com uma escrita sempre singular, em grande tensão sintática e declarativa. Uma
incógnita chamada Iluminuras, de um certo Théodore Fraenckel (na
Douda Correria), sobre o qual eu tenho uma opinião muito peculiar: admirei
sempre a poesia de Fernando Guerreiro, um poeta que pode ser considerado um dos
precursores destas editoras pequenas, quase sem distribuição nos grandes
escaparates. Sempre gostei do peculiar uso do seu olhar e, mais pessoalmente, o
facto de ele, sem sequer imaginar, me salvar tantas vezes, no espaço de
trabalho ora o bar da faculdade ora a própria faculdade em si, com a sua
simples presença. Agora saiu este livro e eu acho que é um pseudónimo do
Fernando Guerreiro (a menos que ele me desminta). O último, é de alguém que tem
editora menos restrita e poder nos jornais, o que não representa para mim nada
que me incomode, Pedro Mexia. Aderi de imediato a este Poemas
Escolhidos (na Tinta da China). Com um título oblíquo, desafiante na
sua maneira próxima de quem o lê, na sua auto expressão. A sua obra organiza-se
e cria um livro bem consistente, com poemas de uma placidez por vezes até
amarga, para mim sempre envolventes.
São
livros que eu experimento como muito centrais no âmbito da renovação da nossa
linguagem poética durante este ano e por isso sinto a necessidade de os
referir.
Todos
eles são intensamente diferentes entre si e isso é muito bom. Sempre me
incomodaram muito os grupos na poesia portuguesa; os Surrealistas, a Poesia 61,
coisas tacanhas que só sobressaíram porque lá dentro tinham poetas muito bons,
como o imenso Cesariny e o António Maria Lisboa ou a Luiza Neto Jorge.
Imagine-se o que seria hoje o Orfeu se não tivesse tido o Fernando Pessoa e o
Sá Carneiro? Era um conjunto de pessoas interessantes e nada mais.
A sua
forma de lutar contra a tal “bertrandização” é frequentar apenas pequenas
livrarias e pequenas editoras independentes?
Gosto
muito das pequenas editoras, onde também se publica o bom como o mau como o
sofrível. Gosto muito também de livros de autor. Veja a Maria de Fátima
Borges; vive na Ribeira Grande de S. Miguel. A Joana não pode imaginar a
porcaria dita cultural que por esse arquipélago viceja nos pequenos jornais
provincianos, nas opiniões de que se deveriam envergonhar, nos autores que por
ali existem. Se ela não pode respirar nessa envoltura, fica em casa e publica o
seu livro longe de todos. Haveriam de a publicar no continente, ao menos,
depois em qualquer outro sítio. Mas o continente já é o que é para si próprio.
A ninguém interessa uma pessoa que mal sai da sua terra e se habituou
habilmente à sua carapaça, que deve ser muito bem escolhida. Não escreve muito.
Então com algum dinheiro guardado dá-se ao prazer de publicar de maneira a não
ser incomodada.
Uma vez
entrei numa livraria, uma Bertrand, e perguntei por um livro. Era de uma
pequena editora, mas tinha tido distribuição. A senhora que me atendeu
disse-me: «Não, não temos. Nós só vendemos livros de editoras sérias.»
Portanto, os conglomerados são o que são. Editoras sérias. Não vale a pena
bater mais no ceguinho.
Escreveu
“o poeta maior é aquele que, por um lado, enceta um diálogo com o passado
deixando que em si se ouça a força da tradição, na memória e, por outro lado,
sabe desligar-se da convenção, da tradição indo além do que já foi feito numa
cultura”. Quem são os seus poetas maiores?
Há
poetas maiores entre os quais escolheria certos poetas trovadorescos e, no
domínio estrito do português, um ou outro no Cancioneiro de Resende: podem ter
escrito somente um poema excelente que a literatura não os esquecerá.
Houve António Ferreira e houve Camões. A seguir ao humanismo e ao
maneirismo não encontro nenhum poeta. Há muitos, mas eu não tenho o gosto
ajustado a eles, o que pode ser, sem dúvida, uma injustiça, daquelas que o
gosto prega. Só o venho a encontrar em Cesário, em Pessanha, em Pessoa
e em Sá-Carneiro. A seguir ainda não sei, ainda não houve tempo para
a distância capaz de compreender e sedimentar. Mas há alguns que, sem eu ter
dúvidas, me parecem grandes ou a caminho disso. No século XX tivemos muito bons
poetas e também já nestes inícios do século XXI. Mas terão todos de esperar um
pouco mais. Não me levem a mal.
É
possível chegar a ser um grande poeta sem conhecer bem aquilo que nos precede?
A
minha atenção para os mais novos tem exatamente a mesma dimensão com aquilo que
já existe, que já foi feito. Tem que haver esse conhecimento do que já foi
feito senão não sabemos usar, manobrar a Língua. A nossa capacidade de lidar
com a Língua depende do mais aprofundado conhecer, quer do seu passado, quer da
sua evolução. Eu ficaria sem pé se não conhecesse a poesia antiga e a poesia
mais recente. Se eu não conhecer o mais novo fico no nevoeiro, mas se não
conhecer os antigos é como se perdesse completamente o pé. É uma situação que
me custa a imaginar. A poesia tem poucos leitores porque não há este
conhecimento e as pessoas habituaram-se à superficialidade. A poesia não depende
da venda, nem sequer da publicação de um livro. A poesia pode ser apenas uma
circulação dentro de nós e com essa circulação nos vamos ao encontro de outros
livros. Se a poesia que circula dentro de um poeta não for mais do que um
diktat, mal vai o poeta. Repare-se como poetas recentes, o Eugénio de Andrade
ou o Herberto Helder tinham um conhecimento profundo do ‘antes’.
Porém,
considera que os poetas menores também fazem falta…
Para
mim é evidente que tudo brota de um terreno bem preenchido de adubo. Tem de
haver uma flutuação plural de gostos, de conseguimentos falhados, de escolhas,
de sinalização das boas e das más escritas. Daí pode surgir um ou outro poeta
capaz de perceber e de irromper.
Também
escreveu que há uma certa poesia portuguesa que é “uma sabotagem esplêndida
iniciada com os modernismos…”. Há muitos impostores e imposturas na
literatura em geral e na poesia em particular?
É
provável que haja imposturas, a começar pelas necessidades publicitárias, cá e
por todo o lado. É evidente que na poesia também. Quer um exemplo português
entre vários? Manuel Alegre, não que ele seja por si próprio uma impostura, uma
vez que deve acreditar no valor do que escreve. Mas porque instituições sem
vergonha e critério ajudam a torná-lo uma impostura.
“Gente da
minha idade, outros mais novos do que eu, devem a si [Herberto Helder] nunca
terem conseguido ser melhores. Também se não fossem de você, valha a verdade,
seriam pigmeus de outro (…) A poesia portuguesa que se lhe seguiu só era
interessante quando não estava colada a si”. Depreendemos deste seu texto que
não gosta de autores que não descolem do mestre, que escrevam apenas
epigonicamente?
Eu
só consegui começar a escrever coisas para que pudesse olhar, quando me
libertei, como é comum a todas as adolescências, de José Gomes Ferreira e
também de Florbela. Depois veio Herberto contagiar-me. Mas eu tinha consciência
disso. Portanto, só quando me li e não encontrei nada desses três é que comecei
a mostrar a mostrar os meus versos, muito antes ainda de pensar em publicá-los.
Se começo a ler um autor e sinto que é influenciado por mim, não gosto. Detesto
alguém que me siga.
Reza a
história que o Joaquim terá sido o fundador do chamado “Grupo do Cartucho”, que
abriu uma forma de realismo na poesia portuguesa. Mas talvez não tenha sido bem
assim…
Bem,
isso não é a história, são as historietas. Coisas que certos néscios resolveram
inventar. Esse Cartucho começou assim. Disse ao pai do João, com quem muito
simpatizava e com quem falava imenso, que me apetecia publicar um livro que
fosse papéis amarrotados com poemas impressos e atirados para dentro de um
cartucho como “aquele ali” [estava um pousado numa beira lá em casa]. Enquanto
o João se afastou logo da minha ideia, o pai dele entusiasmou-se. Disse-me que
o fizesse, ele me daria os tais cartuchos, os fios e uma pequena máquina para a
eles fixar os fios da embalagem. Eu iria começar essa ideia.
Uns dias
um pouco adiante, encontrámo-nos com o António num bar de Óbidos. Não me lembro
absolutamente nada acerca da razão, mas estava lá o Moura Pereira. Quando disse
ao António o que ia fazer, ele ficou logo entusiasmado, começou a falar de
juntarmos aos poemas figos secos e castanhas, por aí fora. Claro que eu só
queria papéis amarrotados com poemas impressos. O João entusiasmou-se com o
facto de o António entender a ideia e quis entrar, abdicando do seu sozinhismo.
Por uma questão de delicadeza, não sei quem entendeu alargar a presença ao
quarto elemento. Não gostei muito, mas calei-me. Assim surgiu o “Cartucho”.
Parece
que foi um grupo deliberado, se tudo foi assim ocasional? Ninguém pensou em
nenhum intuito programático e limitaram-se a mandar-me poemas seus para esse
efeito. Tinha esse grupo o intuito do real? As pessoas lembram-se de coisas,
vem um e lembra-se de mais qualquer uma. Se a exprime cai no poço do equívoco.
“Apenas o
real
Diferendo.
Árduo impacto.
Drenam o visível,
Atípico e controverso
zarcão.
Superfície
e miragem,
Passaporte, coturno.”
(Para
Comigo, Um toldo vermelho, 2018)
“Regressar
ao real”, como escreveu num poema. Ainda é isso que deseja, o Real?
Esse
regressar ao real que escrevi num poema era uma reação ao que me cercava, ou
seja, os ditames da Poesia 61. Que eram apenas manobrismos de toda a ordem e eu
não percebia porque é que tinham banido os grandes escritores de uma mera
geração anterior determinante, que sempre estiveram ligados ao real, que
funcionava neles como o suporte de uma ideologia. Uma coisa premente naquela
altura. Eu não estava a falar em termos de futuro mas de passado. Regressar ao
real, ao realismo queria eu, porque gostava de Cantigas de Amigo, do Fernão
Lopes, dos Lusíadas e, porque gosto muito, do Cesário Verde. Essa oposição que
era feita à nossa tradição poética mesmo que muito recente desagradava-me. Era
uma coisa bolorenta. Para mim o “regresso ao real” era tão só o regresso à
poesia de que eu mais gostava. E depois pegaram logo nesse verso como se fosse
uma bandeira minha quando eu nunca tive bandeiras. É tão curto como isto. Não é
ditame nenhum. O que a poesia viesse a ser era com ela. Na verdade comecei por
escrever esta frase num ensaio sobre António Osório em quem tinha havido esse
retorno e depois voltei a usar a ideia em três versos nada ideológicos ou
programáticos. Agora, na última versão, já só tem três palavras: apenas o real.
Eu não
tenho culpa que não haja pessoas que saibam ler-me e não percebam as coisas que
eu escrevo. Isto não é, nunca foi, um programa. Foi, quando muito, uma lamúria.
Porque havia gente que estava a ser hostilizada, quer pelo Estado Novo quer
pelas ditas atitudes de maus poetas dos anos 60.
Eu gosto
muito da Luiza Neto Jorge, mas a Poesia 61 era mesmo um grupo de ataque, de
exclusão, o inverso da minha maneira de ser. Ainda hoje. Porque para mim a
poesia sempre foi uma forma de diálogo, mesmo que seja um diálogo de confronto,
mas ainda assim um diálogo e não exclusão. A poesia quando deixa de ser diálogo
é uma coisa pavorosa porque entra no circuito do banimento. Sempre compreendi a
poesia como um espírito de diálogo, uma atenção acesa a todos os outros que
procurassem um poeta.
Outra das
coisas que o Joaquim Manuel Magalhães trouxe também para a poesia portuguesa
foi a narratividade, algo muito marcante para muitos poetas das gerações
seguintes.
Hoje
já não sou nada narrativo. Isso desapareceu completamente. Mas foi outra fuga.
Foi a minha fuga dos ingleses e americanos que eram muito narrativos. Embora,
actualmente, eles próprios estejam a afastar-se dessa narratividade. Há poetas
novos de que gosto muito, o americano de origem vietnamita Ocean Vuong onde a
narratividade é só uma insinuação; o inglês Andrew McMillan, em quem
dificilmente encontramos uma precisa narratividade. A primeira poesia que me
marcou vinda desse universo foi o Dylan Thomas, onde eu encontrava narrativa e
não gostava; a par de transbordamento grandiloquente de calculadíssimas
metáforas. Acabei por decidir fazer uma tese de doutoramento sobre ele, o Dylan
Thomas, em vez de fazer uma tese sobre o Philip Larkin de quem eu gostava muito
mais. Dava-me mais gozo o confronto.
O
confronto é-lhe fundamental, não é?
É.
Mas
detesta a agressividade. Não é um paradoxo?
Não,
não é. O confronto é uma necessidade de ir ao encontro do outro e consentir que
ele se aproxime de nós com uma sua divergência qualquer. A agressividade é um
ato de prepotência, o murro e a bofetada (e a vontade de extermínio) que eram
situações sempre invocadas nos chamados manifestos vanguardistas. Dentro dos
fascismos e do bolchevismo. Perante a hecatombe que foi o trágico século XX, em
que esses manifestos futuristas soviéticos ou do ocidente europeu, dadaistas,
ou expressionistas, a civilizações vacilou. Muito a custo se foi erguendo até
aos dias de hoje. Não me chamem pós-modernista, por favor; eu estou muito
dentro, no meu gosto, do modernismo de Pound e de Eliot, dos anos 10 do
século XX em que eles atuaram dentro de um espaço esvaziado pela morte (a
primeira guerra). Mas só muito depois dessa data, Pound se tornaria um
criminoso real e Eliot se converteria num seguidor da ala mais conservadora do
anglicanismo. Até ao advento do fascismo ocidental, a obra destes dois foi uma
força na minha formação.
Muito
cedo e num tempo adverso assumiu a homossexualidade publicamente, nomeadamente
através de uma poesia onde esta aparecia profundamente ligada ao afeto. Se as
canções nunca falavam do amor homossexual, a sua poesia passou a falar.
Descobri
a minha identidade sexual, não a minha realização sexual, quando andava ainda
na escola primária. Tinha noção de para quem gostava de olhar. Isso vem de
antes da adolescência. Eu tive essa capacidade porque tinha a silenciosa
atenção de um heterossexual esclarecido, o meu pai. Foi determinante. A partir
daí não tive mais medo de nada. E um facto é que nunca ninguém me hostilizou
pessoalmente. Exceto dois futuros jornalistas de nada, que, em meados dos anos
60, na casa do Nuno Júdice, nos receberam fingindo que estavam a tocar-se entre
eles. Uma coisa ridícula em que nem sei como o Júdice consentiu. Por mim,
limitei-me a soltar uma gargalhada e sair dessa casa idiota.
A partir
de que momento é que percebeu que era esse o caminho, cortar, tirar, mudar,
refazer tudo o que tinha escrito antes?
Pode
deixar de ser este o caminho. Eu não sei o que vai acontecer a seguir. É a
poesia que me conduz a mim e não eu a ela. As coisas aconteciam-me.
Acontecia-me por vezes escrever um poema que eu achava poder ser interessante.
Como me aconteceu escrever milhares de outros que rasguei. A minha poesia
esteve sempre a mudar. A mudança mais drástica resultou do facto de, finalmente,
eu me ter encontrado bem com um livro, que foram esses dois que fiz em edição
de autor. Porque esse Um Toldo de 2010, eu também não me
encontrei bem com ele, não gostava da construção do livro. Por exemplo, havia
poemas em que eu pedi para colocarem cada estrofe numa página. Devia estar
maluco. O leitor não é obrigado a perceber um maluco. (risos) Eu não fui
inteligente nesse livro. Só me encontrei verdadeiramente com estes dois livros
o novo Um Toldo Vermelho e Galopam que agora
estão reunidos no Para Comigo.
Muitos
leitores seus não lhe perdoam esta mudança drástica, não percebem onde quer
chegar, o que aconteceu para ter feito alterações tão profundas naquilo que era
a sua poesia.
Não
há nada que perceber. Eu senti-me bem com estes novos livros. Não faço aquilo
que fazia antes, que era assim que um livro era publicado eu passava a não
gostar dele. Ficava com pena de não gostar do livro e começava logo a mudar um
bocadinho aqui, um bocadinho ali. Mas isso trazia sempre coisas atrás que
sempre me mantinham no desagrado. Então resolvi atalhar caminho. Não por
palavrinhas, não por imagens, mas por radicalizações gramaticais. Ajudaram-me
imenso, livraram-me de tanta ganga…
Mas
tornou-se uma poesia muito mais difícil. Desnorteia-nos, deixa-nos sem chão.
Usa maioritariamente palavras que desconhecemos, palavras antigas cujo
significado já ninguém lembra.
Nunca
fui um poeta de grande público. De qualquer forma até pode acontecer que se
atenue essa estranheza e alguém surja que já se habitou a esta nova toada. Mas
não me tornei um escritor hermético. Está lá tudo às escâncaras. Só não repito
o que digo. Todas essas palavras remetem para a minha infância. Quando era
muito criança saía de casa da minha avó, ia brincar para a rua de terra batida,
fazia uns buracos e depois deitava água e fazia umas bolinhas. Ia fazendo,
fazendo até ter dez bolinhas. Enquanto eu brincava as mulheres, os rapazes
passavam por mim e aquelas conversas, aquelas palavras entrecortadas que eu
apanhava permanecem em mim até hoje. Podem ser um tanto arrevesadas, mas nunca
o foram para mim.
“Cinzentos
em fusão os olhos uma ousadia.
O tapete de cairo picava-nos uníssono.
Afugentei o navio
Que para mim navegava.”
(Para
Comigo, Galopam, 2018)
Maria
Filomena Molder escreveu no seu ensaio “Com a Voz Torva e Sem Arrependimento” (Dia
Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais) que a partir do livro Um Toldo
Vermelho (2010), o Joaquim apagou a sedução da sua poesia.
Sim.
Aconteceu, não fiz de propósito. Simplesmente enveredei por uma respiração
nova. Mas eu sei que tudo o que eu escrevi para trás existe, que há
bibliotecas, que as pessoas podem ler aquilo. No entanto, como só vai poder ser
re-editado 70 anos depois de eu morrer, quero lá saber. Se aparecerem poemas
desses na internet é de novo um fartar vilanagem que não terei a oportunidade
de ler, pois lhes sou indiferentes.
Essa nova
respiração visa, em última instância, chegar ao silêncio?
O
que eu quis foi simplesmente não me repetir. É um trabalho a partir de mim. Os
que verdadeiramente gostavam da minha poesia compreendem a minha mudança. Não
destruí nada, não foi uma coisa que eu persegui, foi um lugar de mim a que
cheguei. E quando aqui cheguei, senti, pela primeira vez na vida, que gostava
da minha poesia. Finalmente gosto do que fiz, portanto a partir daqui não vou
alterar mais nada, vou escrever outras coisas.
E que
coisas são essas?
São
coisas que já estão escritas e agora têm que ser aglutinadas e onde,
curiosamente, eu me aproximo de novo de uma certa discursividade. Mas é preciso
que se perceba que isto não é um combate por nada. É só a minha vida de
escrita.
Há um
livro onde declara que o seu apreço profundo “vai sempre para poetas onde se
respira muito amplamente esse “seja o que for” que a poesia pode ser.” É isso
que gostava que os leitores se permitissem encontrar nos poemas do livro Para
Comigo, que acaba de publicar?
Não
sei nem quero saber dos leitores. Se tivesse alguns, o que preferia era que me
deixassem chamar-lhes a atenção para os poetas de quem gosto. Só isso seria
bom.
Considera
que ler poesia não é descodificar ou decifrar mensagens, e a sua preocupação
não é gerar consensos, granjear admiradores.
A
poesia, ela, ergue-se em torres solitárias e tem de tratar das suas torres, o
que lhe causa imenso trabalho. Ou então entender que são torres de atenção, de
acompanhamento. Ou mesmo torres de convívio: há sempre uma sala com cadeiras
onde um poeta se pode sentar com os outros da literatura de quem gosta.
Tem
dedicado parte da sua vida ao ofício de traduzir e tem uma visão muito exigente
do que é e não é uma boa tradução.
Para
mim só é tradução o que aparece em versão bilingue e possa ser comparado por
aqueles que conheçam as duas línguas. Não encontro que seja tradução aquilo que
não tendo sido escrito pelo poeta que se está a traduzir se transforme em
português bonito. Muitas vezes estamos a ler poetas de outras línguas num
português supostamente aliciante quando na língua original aquilo não o era. Há
tradutores que escrevem aquilo que eles querem escrever e não o que o poeta
realmente escreveu. Defendo uma tradução equidistante; nem literal, nem bonitinha
mas uma tradução que se possa fazer. E nem tudo se pode traduzir, especialmente
em poesia. Eu, por exemplo, sou incapaz de traduzir poetas que tenham esquemas
rimáticos. Cada tradutor deve reconhecer os limites da sua liberdade e da sua
literalidade.
Kavafis,
ao qual dedicou tanto tempo da sua vida, foi um poeta determinante para si?
Não.
É muito mais determinante o Cesário Verde. É verdade que também gostei muito do
T. S. Eliot,, como lhe disse, mas hoje já não gosto tão profundamente e, o que
o Eliot escreveu a partir de 1926, irrita-me. Sobretudo, irrita-me a critica
dele, é muito pedante. Pior: ele criou grupos de seguidores, a sua Teoria
Crítica deu origem ao New Criticism americano, e a
outras felonias.
Nos anos
90 deu-nos a conhecer, através das suas traduções, vários poetas espanhóis.
Continua a seguir a poesia espanhola?
Continuo
a seguir todas as poesias de que conheça a língua. Temos de reconhecer os
nossos limites e expressar que de línguas que não sabemos pouquíssimo podemos
com rigor conhecer. Apoiar-me na tradução de alguns, o que é sempre uma opção
arriscada, talvez me alerte, me ajude, mas bem sei que não poderei nunca lá
chegar por esse modo cego.
Qual a
sua opinião sobre a política cultural portuguesa atual?
Bem
gostava que começasse a existir uma política cultural consistente e que não
mudasse de governo para governo. Mas como? Para que serve o Instituto Camões a
não ser para que uns tantos se preguicem? Para que serve o Ministério da
Cultura? Se esta ministra e este primeiro-ministro não conseguirem resistir ao
populismo, está tudo arrumado. Um dia haverá alguém que não andará a pagar
milhões dos contribuintes para organizar viagens sempre aos mesmos escritores,
normalmente maus escritores. Mesmo se fossem bons, para que serviria gastar
sempre tanto dinheiro só para eles andarem daqui para acolá no mundo? De
autarquia para autarquia. De bacoquice em bacoquice. Uma política
cultural tem de ser respeitável. Assim não é. Haveria de encontrar-se a qualidade
no cinema, nas artes, no teatro, etc. Mas como se conseguirá esse objetivo, se
o mecenas Estado não é capaz de se elevar acima das banalidades comuns? Nem
sequer reforça o seu apoio, com tanto livro e tanta obra magnífica esquecida.
Anda sempre atrás dos vivos que o procuram e que tem de manter calados.
Um
governo que conseguisse, no domínio da cultura, estabelecer uma plataforma
escrita de aceitação permanente de situações culturais, ganharia a minha total
admiração nesse domínio específico. Mas a está a ver isso possível? No fundo,
esta questão incomoda-me muito pouco. Se querem feiras que façam feiras. Nem
dou por elas. Só me pus a pensar nisto por sua causa. Veja lá o que me provoca
nos neurónios e eu a julgar que esses assuntos estavam esquecidos dentro de mim.
Há quem
pense que o Joaquim Manuel Magalhães é um homem de direita, no entanto diz
sentir que estamos a viver o melhor momento político desde o 25 de Abril.
Mas
eu nunca fui de direita. Eu era contra o partido comunista, mas hoje também já
não sou tão anticomunista, embora possa alterar as minhas posições. Não me
importo nada que sejam de direita e gostem de mim. Nunca me senti de direita.
Mas se a extrema-direita gostasse da minha poesia, então eu teria que revê-la
ainda mais (risos). Eu respeito muito as pessoas de direita como da esquerda.
Tanto me alegra que goste de mim alguém do Bloco de Esquerda como do CDS.
Agora,
estou a adorar este governo. Nunca houve desde o 25 de Abril um governo com o
qual eu me sentisse tão bem, tal como nunca houve um Presidente da República
que eu admirasse como admiro este. Ele sabe ser, com muita dignidade, um motor
de contenção de erros vindos do Governo e da oposição. Tem tido sempre um
discernimento de perceber quando a esquerda não errava e quando a esquerda
errava e o mesmo com a direita. E depois do Cavaco Silva… Tenho uma admiração
enorme por este quadro político que foi criado no país. Pelo menos deixámos de
ser tão economicamente perseguidos enquanto cidadãos. Continuamos a viver mal,
mas respiramos e vamos mantendo, sobretudo se pensarmos nos mais pobres, um
pequeno equilíbrio digno.
Nunca
ninguém o consegue apanhar pois não? Está sempre a transformar-se noutra coisa,
em permanente metamorfose…
Só
escrevo a minha vida, o que se atravessa na minha vida. Mas não é só a minha
vida, é também o que leio, o trabalho que a própria Língua opera em mim. E
estou sempre atento aos outros, mesmo aos que, como me diz, não simpatizam
comigo ou rejeitam o que eu escrevo. Que posso eu fazer?
JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
O
regresso do mestre bonecreiro
Depois
do radical corte que operou, em 2010, com a sua obra poética e crítica, a
última grande figura tutelar da poesia portuguesa reafirma aquele gesto, e abre
margem para novas visões e revisões num novo livro: Para Comigo.
Para que
o tempo se mostre, que outra perspectiva mais clara há do que colocar uma pedra
entre coisas de natureza perecível? Como uma mágica, a sua imóvel ênfase levará
a que, em seu redor, tudo envelheça. Uma pedra sobre um assunto basta, por
vezes, como denúncia daquilo que deve o seu poder inquietante a um certo
arranjo das circunstâncias.
No início
de 2010, quando Joaquim Manuel Magalhães surpreendeu os seus leitores ao
publicar “Um Toldo Vermelho” – volume que terminava com um aviso de que
esse livro excluía e substituía toda a obra poética anterior –, conseguiu
provocar algum tumulto. Esse premeditado efeito veio subtrair aquela obra à
cadeia de nexos que corporizara, numa articulação com os textos ensaísticos que
este crítico-poeta publicou ao longo de décadas, nessa que permanece como a
mais influente leitura da poesia portuguesa contemporânea.
Para a
persuasão dos seus argumentos, JMM soube valer-se de um efeito de exemplaridade
da sua própria obra poética, que sinalizava a par e passo as descobertas do seu
exercício crítico, como quem prova a carne e, através da carne, sabe reflectir
uma lição e modelo, instituindo também “uma certa genealogia”.
No “novo
pacto” que preconizara – primeiramente numa recensão a um livro de António
Osório, mais tarde transposta para versos, no poema “Princípio” –, Magalhães
argumentava que, em face do desgaste a que se chegara numa urgência de arrancar
a voz a “efeitos de recusa”, talvez só restasse, por fim, rejeitar esse
precipício que via desenhar-se “no meio de frases destruídas,/ de cortes de
sentidos e de falsas/ imagens do mundo organizadas/ por agressão ou por
delírio”. Assim, e em nome da diferença, depois de um tão deslumbrado
alheamento, a tarefa do poeta que buscasse “voltar junto dos outros”, talvez
não pudesse ser feita senão num “regresso às histórias e às/ árduas gramáticas
da preservação”.
Uma
década mais tarde, num ensaio que integra o volume “O Mosaico Fluido”, de 1991,
Fernando Pinto do Amaral devolve criticamente o eco que a poesia de JMM
manifestou, e fala de “uma narratividade que não receia descer a pormenores de
índole quotidiana ou biográfica; uma atenção descritiva que se volta para tudo
o que rodeia e impressiona o sujeito, mesmo e sobretudo certas realidades menos
tradicionalmente ‘poéticas’; uma vontade confessional que, sem atingir a ênfase
umbilicalmente derramada de outros autores, não abdica, ainda assim, de
conseguir uma comunicação afectiva de tom intimista com o leitor; enfim, algo a
que, numa óptica global, poderíamos chamar, um pouco apressadamente (...) um
retorno à ânsia de mimesis em relação ao real, perdidas as ilusões de fazer da
escrita um instrumento radicalmente alterador, o poeta remete-se ao sábio uso
de uma linguagem por vezes na fronteira com a música, essa especial conjugação
de palavras, sons e ritmos, esse fluxo verbal ‘muito cantável’ que a tradição
insiste em considerar poesia.”
“Um Toldo
Vermelho” causou bastante perplexidade e mereceu as maiores reservas da parte
da crítica, com Luís Miguel Queirós (crítico que deve a preponderância das suas
leituras menos a uma fulgurante intuição pessoal do que à capacidade de
realizar censos e representar uma opinião alargada) a mostrar-se céptico
quanto à possibilidade de JMM impor a sua vontade, substituindo os antigos
poemas pelas novas versões, que daqueles detinham meros vestígios, detritos,
ecos aprisionados entre ruínas. Mas, entretendo essa hipótese, Queirós
sustentou que, em termos práticos, o gesto sacrificial e prenhe de violência do
poeta significaria apenas que “a poesia portuguesa contemporânea teria perdido
um dos seus nomes mais relevantes e, triste contrapartida, teria ganho um poeta
de uma deprimente mediocridade”.
Volvidos
oito anos, e com um longo silêncio de permeio, Magalhães regressa para emendar
a mão. “Um Toldo Vermelho” deveria ter sido o último livro, ou o único – a obra
completa –, mas agora, segundo disse na primeira de duas entrevistas (as
primeiras em décadas), também este já não vale, e é mais outro livro que deve
ficar como vaso quebrado, porque (imagine-se) se tratou de um acto um tanto
precipitado; e se o poeta não abdica do golpe de ruptura, começou a ver nele
outros desacertos, portanto: “deitem-no fora, ignorem”. Aqui, o leitor diz,
desculpe, sr. autor, mas: merda! Mais de não sei quantas revisões e reuniões,
conselhos de guerra e o raio, tanta algazarra, tantas baixas, e não, ainda não
era aquela; agora é que é!? Na justificada suspeita face aos caprichos do
autor, o mais natural é que o leitor, ao saber da edição de uma nova reunião do
que ficou para trás, pergunte qual será o prazo de validade de “Para Comigo”.
Estamos
de volta às versões de antigos poemas – ex-poemas, no fundo –, como se o poeta
os houvesse submetido a um efeito de penitência, entregando o corpo, para sair
reduzido a detalhes carbonizados, num minimalismo grotesco, a gramática
implodida, sínteses com o cilício à perna; a própria linguagem torna-se
excremencial, e os poemas, que ainda temos impregnados na memória como melodia
aparecem aqui reduzidos aos “ossos que não se desfazem quando um corpo arde”. Resta
uma espécie de desgosto e luto, o ver sacrificados versos tão marcantes a uma
teoria desfiguradora, num livro-tese que parece deleitar-se com uma forma de
necrologia de um cada vez mais incerto passado poético.
No meio
de arritmias, frases destruídas, da própria sintaxe macerada, e de uma variação
que se fica por cortes de sentidos, estas versões parecem boas para telegramas
enviados através de linhas inimigas, à espera que do outro lado algum leitor
possa recompô-los, devolvê-los à sua digna e comovente força humana, em que é
central um balanço entre a aspereza e o alto grau de sedução, entretecendo
esses “recônditos rumores” que traduzem, a um tempo, as frases que escapam da
boca de uma língua que sonha e os murmúrios que escuta de outras, num tão profícuo
diálogo além fronteiras.
A estas
novas variações do exercício de irada rejeição que começou com “Um Toldo
Vermelho” está subjacente uma nova articulação crítica que, agora sim, soçobra
nos seus vícios retóricos, na necessidade de forçar à sensibilidade dos
leitores um laxante teórico que, se não deixa de ser curioso nas suas
premissas, se mostra atrozmente limitante quando aplicado aos versos, os quais,
na melhor das hipóteses, inspiram a nossa piedade: “Na cómoda/ um mortiço
talher./ Eremita painel./ Lúdica inflação,/ gonorreia.// O malversado recoloca/
o sardónico pluvial/ no íntimo equinócio.// O nexo do planeta inunda/ bidé,
hidrângea, a campina rubi./ Rútilo tumor/ de vaia folhetim.// O cardo, o
rícino/ disseminam.// O promontório./ Um passe aflito./ Carbúnculo, assédio à
prova./ O precipício.”
JMM
quer-nos dar a comer pão com vidros e ainda quer ouvir que o acepipe está uma
delícia. É bom que o leitor e o crítico rasguem o canal digestivo todo, dêem
quantas voltas forem necessárias para não lhe vir dizer simplesmente que isto não
presta. Nem é que o leite esteja azedo, ou que a dobrada a tenham servido fria,
é que o poeta pirou de excessos de teoria, de um desejo de radicalidade não
acompanhado nem pelos poemas e nem sequer pela língua, que sai disto como se se
estivesse a tentar aplicar-lhe princípios da cozinha molecular, mas não para
enriquecê-la, antes para embrutecê-la em nome de uma austeridade tresloucada.
Como se a alta cozinha pudesse dar um salto senil e permitir-se estratégias de
alimentação forçada, uma vez que, como ficou claro, depois da publicação de “Um
Toldo Vermelho” foi o público da poesia que não se dispôs a comer daquele pão.
Ainda que
a prosódia imponha um gosto traumático à língua, exarando os versos de
repetições, é o exercício que se torna repetitivo, como alguém que se converte
a uma religião tarde na vida, e prova a sua fé por via de uma extrema devoção;
devoto a um ponto em que se julga marcado por estigmas, se arrepende de tudo,
revisitando o passado, numa purga brutal, produzindo uma poesia que mais não
faz que auto-penitenciar-se. É evidente que, após o tumulto inicial, logo o
desesperado golpe que se quis segundo uma disciplina de samurai, revelou a
inquietação de um puro vândalo, ao sacrificar aquilo que tornava a sua poesia
admirável, coesa, uma obra atravessada pela vida de um homem, entregando-a num
eco estropiado, como se não houvesse mais a possibilidade de cantar fosse o que
fosse, nem o desencanto nem outro real que não a experiência do martírio diante
das hélices devastadoras do ruído. E tudo o que restasse fosse uma gravação
cheia de cortes, sendo impossível escutar-se um só verso na sua inteira e
disponível graciosidade, ficando apenas estilhaços, uma cadeia de absurdas
mnemónicas. E o leitor, ao invés de amar os versos, agora é como se tivesse de
aturá-los em nome de uma antiga afeição, ouvi-los gemer das mazelas de uma
bomba de fragmentação...
A lição,
diz o poeta que a foi buscar a Anton Webern. Terá pretendido alcançar o estilo
mais depurado, cristalino, um extremo de concisão e intensidade, evitando
repetições (?), mas o que se sente é a camisa-de-forças que a imobiliza, e a
transposição parece demasiado literal, uma forma de fundamentalismo. O verso
fossiliza-se, é um resto, um caco, e é demasiado fácil mostrar como o que se
perdeu foi o ouvido, e a linguagem passou a ser o reflexo da própria
catástrofe. “Sedimento depredado./ O físico perito na afronta.// Conluio de um
infiltrado, presumo/ que de prerrogativa./ Tetina rebarbadora,/ um afrodisíaco
sebento.// Tribo contrita e devoluta./ Ameno bário de harpia./ Não devoram na
fome,/ não acumularam todavia/ pânico laboral.// Sábios em economia acessória,/
pelotão de acne no ripanço./ O vitríolo exímio/ na retina.// Aterro de
continente falsário./ Degredam uma sobra./ A sarjeta.”
Entre os
tantos enterros que proporcionou à sua obra, e as diversas vezes que voltou
para profanar os sucessivos túmulos, a bibliografia de JMM tem a sua própria
biografia, uma bastante dramática. Mas não são apenas os saltos daqui para ali,
os cortes e emendas, são as disposições testamentárias de um autor que publica
e logo se indispõe não só com o antes feito, os poemas, mas ainda, e até mais,
com as leituras deles feitas. Por isso, não abdica da última palavra. Não só
faz e desfaz, se pudesse talvez também perseguisse o leitor até casa, lhe desse
indicações precisas, até a que horas, com que luz devem ser lidos os seus
versos. E se ignorado, ralha, e ainda quer reaver os livros... “Não tinhas que
gostar disto, não era isso o que quis dizer, dá cá, lê assim, não está muito
melhor?, não está?, não está?, não percebes nada.”
Se há
autores que fazem um silêncio atroador para não perturbar a leitura do que
deixaram escrito, outros ficam ali, pendurados no ombro a querer explicar-se, e
guiar o leitor; tornam-se controladores, possessivos não só em relação aos seus
textos como às interpretações. A própria poesia tinha-nos já habituado às
birras e desmandos de um autor que, não tão solitário assim, parecia na verdade
ter a ambição de dirigir uma orquestra, e que também parecia querer compor a
sua audiência, dizendo que queria ser lido por estes e não por aqueles. E
parece haver, de facto, como também notou Luís Miguel Queirós, um Dr. Jekyll
para o Mr. Magalhães, já que, em 2001, numa nota de lucidez na sua anterior
reunião da obra que ficara para trás, no volume “Consequência do Lugar”,
lembrava que “estes assuntos são secundários para o leitor ideal, aquele que só
quer ler e partir para o que é dele com essa leitura. De qualquer forma ficam
estes limites para outros leitores, que procurarão o inútil: vistoriar o que eu
acolho, recolho ou despeço.” E talvez aqui já não fosse o poeta mas, num assomo
de lucidez, o crítico, Dr. Jekyll, que, dando-se conta dos excessos do outro,
introduzia esta ressalva, como um açaime para impedir que o outro se ponha
a morder os leitores, aqueles que não cedem a mordomias para com os autores, e
nem ligam aos anúncios afixados nas vedações e cercas da literatice.
Às
tantas, talvez seja preciso lembrar que é o leitor quem, tendo os livros para
lá, nas estantes, decide se os há-de ler e como, se de trás para a frente, se
saltando, rasgando folhas, sublinhando este verso, riscando aquele. E o autor
que sossegue, já que os livros publicados entram na jurisdição de quem dispõe
deles para dar-lhes o sentido que bem entenda.
Mas se
tantas vezes JMM fez questão de chamar a si de novo os livros, e tantas vezes
com perda para os poemas, e se neste teatro fastidioso, depois de um tão
enfático golpe, uma vez mais regressa e traz novamente uma revisão do programa
(depois de dois livros em edições de autor, fora do mercado – cem exemplares
distribuídos pelos amigos, agora reunidos em “Para Comigo”), o leitor
questiona-se: o que vem a ser tudo isto? Que salsifré, que apoteose busca JMM?
Porque vem dar por escrito uma entrevista, antecipando-se um mês à chegada do
novo livro às livrarias, com o entrevistador e crítico que mais se dobra a
oferecer as costas para que o poeta venha mandar uns recados, dar conta do que
andou a fazer? Só faltou assinar ele mesmo a recensão, com tudo o que o outro
veio repetir, como aluno de primeira fila debitando as palavras que salvou nos
apontamentos. E que outra evidência podia comprovar melhor que o actual
programa não se sustenta sem um pós-operatório complicado, sem que JMM sinta
que tem de ser ele mesmo a preparar a sua recepção, fazer a caminha, usando
lençóis com uma contagem de fios inaudita, servindo-se, para isso, de um
delegado de propaganda literata, crítico de mão mole, dessas em que qualquer um
pega, e de que tantos têm sabido servir-se para assinar o que gostariam de ver
escrito sobre as suas obras?
E é
afinal nesta entrevista, encenando um regresso depois do silêncio, que se
colhem alguns indicadores cruciais para se concluir que “Para Comigo” é ainda
um gesto mais do que um livro de poemas, e um que precisa ser prolongado, pois
não pode ser lido ou apreciado sem orientação crítica. Ora, como o próprio
Magalhães frisou em “Um Pouco da Morte”, “Há, no mais fundo da poesia, uma
sinceridade inimiga da retórica”. Essa sinceridade é o que mais machucado sai
na depredação a que os poemas foram sujeitos. O poeta que quis brincar aos
mestres do silêncio, premeditou a sua reentrada em cena, isto depois do
fracasso em provocar um flagelo, deixando órfãos os que tinham ido beber no seu
charco o reflexo das estrelas. Mas ao contrário da imagem de serenidade, a do
poeta desinteressado da mundanidade, o que transpareceu foi a inquietação de
alguém que desafiou o esquecimento, convencido de que viriam mendigar-lhe
sinais de fumo, fogo, só para ter o esquecimento a respirar-lhe junto ao
pescoço, a fazer o que tão bem faz a tantos e tão admiráveis autores. E aqui
apetece citar “O Homem que Falou”, de Jean Giono, num desses acasos que nos
servem as mais furiosas rimas: “Como podem ver, este homem tinha uma espécie de
sarna a roê-lo em sítios onde não podia coçar-se sozinho.”