LIÇÃO DE COISAS
A exatidão serena de uma flor
Aconselha-me em vão
A encher de paz e sem amor
O revolto e impreciso coração.
Ó luz tão verdadeira,
Que dás o verde tenro e o branco puro,
Eu dava a vida inteira
Para ser monte ou muro!
Mas ao homem não valem
Desejos minerais:
Aves, flores, que se calem!
Hei-de ser como os mais.
Nem florido no orvalho como a rosa,
Nem azul como o monte arredondado.
Ó imaginação, só tu és dolorosa!
O maior mal ainda é o imaginado.
A exatidão serena de uma flor
Aconselha-me em vão
A encher de paz e sem amor
O revolto e impreciso coração.
Ó luz tão verdadeira,
Que dás o verde tenro e o branco puro,
Eu dava a vida inteira
Para ser monte ou muro!
Mas ao homem não valem
Desejos minerais:
Aves, flores, que se calem!
Hei-de ser como os mais.
Nem florido no orvalho como a rosa,
Nem azul como o monte arredondado.
Ó imaginação, só tu és dolorosa!
O maior mal ainda é o imaginado.
Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida, Lisboa, Ática, 1953
EXPLORAÇÃO DO POEMA «LIÇÃO DE COISAS»
O poeta que tanto interesse nos mereceu pela extraordinária originalidade de muitos dos seus poemas que afirmam a sua vasta cultura e uma apurada sensibilidade, mesmo neste breve e menos hermético poema, se revela um pensador curioso.
O poema é formado por quatro quadras, com rima cruzada, mas de métrica muito irregular e, portanto, com um ritmo variável; ligeiro nos versos curtos (binário, em geral), em especial na 2.ª e na 3.ª quadras; mais lento nos versos mais longos, como acontece na última quadra (e, portanto, ternário, com evidência). A rima é consoante e são agudos os da 1.ª e os 2.º e 3.º versos da 3.ª Todos os mais são graves.
Não há aliterações significativas a nível fónico, o transporte observa-se nos três primeiros versos da 1.ª quadra, no 3.º da 2.ª e no 1.º da 3.ª Em todos os outros há pausas predominantemente fortes marcadas pelo ponto final, pelos dois pontos e pelo ponto de exclamação ‑ três vezes, muito oportunos dentro do sentido da poesia. Sentimos abundantes os sons nasais (a exprimir um certo fechamento no desencanto) onde, excluindo o u, aparecem todas, com predomínio do em (en) que se combina mesmo com o e fechado em verde tenro e aparece proximamente repetido em homemvalem. Também o som on em monte arredondado e com as quatro dentais vincam a forma do monte.
Observemos o poema, a nível de linguagem e de conteúdo.
As coisas que, segundo o título, transmitem uma lição ao poeta são: uma flor, aluz, as aves, principalmente.
Olhando para uma flor, ele verifica a sua exatidão serena (personificando-a) que oaconselha (de novo a animização), mas inutilmente: «A encher de paz e sem amor / O revolto e impreciso o coração.» Algumas considerações nos sugerem estes dois versos. Como pode o poeta encher de paz o coração, sem amor? ‑ primeiro momento negativo. Ora a flor aconselha a paz ao poeta porque tem revolto e impreciso o coração. Qualquer dos adjetivos justificam a necessidade de paz que o poeta não tem, pois o coração não só é revolto, não pacífico, como é também impreciso ‑ não sabe o que quer. É precisamente esta imprecisão que vai justificar os desejos absurdos formulados nos dois últimos versos da 2.ª quadra: «Eu dava a vida inteira / Para ser monte ou muro!» ‑ desejo que lhe é suscitado pela luz: «Ó luz tão verdadeira, / Que dás o verde tenro e o branco puro.» À flor classificou-a de exata e serena, à luz classifica-a de verdadeira,adjetivo animizante superlativado pelo advérbio tão; e é verdadeira porque não falseia as coisas, neste caso, as cores: o verde tenro e o branco puro. Realçamos os adjetivos porque nos parecem muito significativos ‑ verde tenro ‑ constitui uma sinestesia visual e táctil, mas ambas as expressões são de sentido concreto; branco puro, já não oferece uma sinestesia e o substantivo concreto está qualificado por um adjetivo de sentido abstrato - puro → pureza, embora puro possa significar a superlativação de branco → branco, branco.
Referimos os desejos absurdos do poeta desejando ser monte ou muro. Para o primeiro serviria o verde tenro; para o 2.°, o branco puro. O que nos parece, porém, é que o poeta podia dar a vida inteira por alguma coisa de mais válido do que um muro. Mas a imaginação é tola.
E, agora, o temos na 3.ª quadra a lamentar a insensatez do homem que concebe desejos minerais, ele que pertence ao reino animal. A opositiva mas deita por terra o inconcebível desejo formulado na 2.ª quadra, apesar do conselho que recebe daexatidão serena de uma flor e da consciência de verdade que lhe é dada pela luz. Por isso surge uma frase exclamativa, carregada de autoridade, a sugerir como que um protesto, uma rejeição: «Aves, flores, que se calem!» Não está expresso o verbo declarativo mas ele está subjacente à oração: «que se calem!». Por isso digo que se calem ‑, aves e flores. As aves surgem pela primeira vez neste conjunto de coisas que lhe servem de lição. Mas o poeta não se conforma com essa lição e a frase exclamativa com o conjuntivo tem sentido imperativo ‑ ele não aceita a lição. «Hei-de ser como os mais.» Não foge à vulgaridade, apesar das lições que as coisas lhe dão, e a forma perifrástica é uma afirmação da intenção que o move: hei-de ser.
Mas é na última quadra que o poeta condensa o que de mais significativo nos sugere o poema. Se há-de ser como os mais, se não foge à vulgaridade, se tem de seguir o seu destino, lamentavelmente, apesar das suas ambições, não será nada, como sugere nas frases paralelas anafóricas que constituem os dois primeiros versos da quadra: «Nem florido no orvalho como a rosa, / nem azul como o monte arredondado.» Duas coisas lhe servem de comparação relativamente aos seus anseios: a rosa ‑ flor, o montearredondado. Embora ele só tivesse referido desejos minerais ‑ como impossíveis ao homem, embora ele tivesse dito que «... dava a vida inteira / Para ser monte ou muro!», a verdade é que o primeiro verso da última quadra passa pelo reino vegetal. O poeta pertence ao reino animal, mas, no seu sonho impossível, desejaria pertencer a outro reino. No vegetal, é a flor, mais particularmente, a rosa que o atrai ‑ cor, perfume, forma até, talvez, os espinhos, justificarão esta preferência? No mineral é o monte que, à distância, tem um tom azulado. E monte, porquê? Pela vastidão que ele, poeta limitado, não possui? Pela força latente, que faz brotar a floresta? Pela altura, que lhe permite uma maior distanciação do rasteiro, do mesquinho em direção ao infinito? Ao absoluto? E, quando diz arredondado, não será para significar (ultrapassando a rima) a ausência de arestas, de escarpas que tornam difícil o acesso e, portanto, transpondo, para o mundo do homem, desejar que este seja acessível, tratável, como tal monte?
O pensamento do poeta, a partir das coisas, divagou, concebeu desejos, sonhou irrealidades. E aí o temos, nos dois últimos versos do poema, a culpar a sua imaginação desenfreada que o arrasta voluptuosamente e tanto o faz sofrer! De facto, ao longo da poesia de Nemésio foi-nos possível verificar a facilidade com que o poeta transita através das ideias, parando aqui, saltando acolá, mas sempre conseguindo prender a nossa atenção, surpreendida e curiosa, mas firme para não se perder nos meandros do seu pensamento. Foi essa a impressão que nos ofereceu nos programas televisivos em que se revelou um cavaqueador curioso, dispersivo, por vezes, mas nunca incómodo. Ora a leitura mais vasta e profunda dos seus poemas completou essa visão agradável, completou e, até, superlativou o apreço em que o tínhamos, pois, na verdade, não é fácil um humanista como ele, manobrar com tanta exatidão e com tanto à-vontade, assuntos que são do domínio da ciência, como vimos em Limite de Idade.
Compreendem-se bem os dois últimos versos deste poema, depois desse contacto mais profundo com a sua obra. Afinal, divagou em pensamentos que classificámos de absurdos numa personalidade tão multifacetada como foi a de Nemésio. Mas o final do poema justifica convenientemente a causa da evasão que nos revelou: «Ó imaginação, só tu és dolorosa! / O maior mal ainda é o imaginado!» Neste desabafo sentimos uma reminiscência muito acentuada de Fernando Pessoa ‑ Álvaro de Campos ‑ como aliás a sentimos ao longo da poesia. Este desencanto, que leva a sonhos irreais, é muito característico do heterónimo indicado. Para ele o maior mal era o ter nascido, para Nemésio é o imaginado. A imaginação desregrada é a causadora do grande sofrimento daqueles que não vivem com os pés na terra. E este é um caso evidente.
Na estrutura do poema, consideramos três momentos: ‑ no primeiro constituído pelas duas primeiras quadras temos a apresentação: das coisas e dos anseios do poeta. No segundo momento constituído pela 3.ª quadra e pelos dois primeiros versos da 4.ª temos o desenvolvimento das desencantadas conclusões a que chegou, e o negativismo é anunciado logo na opositiva. Mas que inicia a 3.ª quadra e pelas formas negativas não valem, Nem florido, Nem azul. No terceiro momento, constituído pelos dois últimos versos, temos a conclusão.
O poema resulta da comparação, do confronto do eu com o não-eu o qual leva o poeta a exprimi r um desejo impossível e impensável. Mas, ao terminar, o eu regressa ao seu mundo, para concluir que a causa do seu desencanto, da sua frustração estava em si próprio, na imaginação prodigiosa que possuía. Nemésio confirma, assim, o esquema típico de um poema, conforme dizemos em Literatura Prática – vol. I, pág. 51: No poema cruzam-se dois mundos: o mundo do poeta ‑o mundo do eu e o mundo que lhe é exterior ‑, o do não-eu, que acaba por se fundir, consubstanciar com o do poeta (sujeito → objeto → sujeito). E não foi isto que vimos nesta breve exploração do poema?
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 499-501.
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
1. O poema pode dividir-se em duas partes lógicas.
1.1. Identifique-as.
1.2. Resuma o conteúdo de cada uma delas.
1.3. Refira o valor do conector que as separa.
2. Repare no título do poema.
2.1. Explique de que coisas poderia o sujeito poético aprender uma lição de vida.
2.2. Indique as razões pelas quais o "conselho" da "flor" é "em vão".
2.3. Sublinhe os versos em que o sujeito poético exprime um desejo quase panteísta de identificação com os elementos naturais.
2.4. Interprete a "lição" que o sujeito poético considera que poderia aprender.
3. Ao longo do poema, coração identifica-se com imaginação e paz com ausência de sentimentos. Prove a veracidade desta afirmação.
CHAVE DE CORREÇÃO
1. As duas partes são separadas pela conjunção adversativa Mas.
Na primeira, o sujeito poético exprime um profundo desejo de identificação com a natureza, para assim, despojado de sentimentos, encontrar a paz.
Na segunda, afirma a impossibilidade de aprender esta lição pois a imaginação ‑ a sua capacidade de pensar, de sentir e, portanto, de sofrer ‑ impedem-no de tal.
…
Entre Margens. Língua Portuguesa 10º Ano,
Olga Magalhães e Fernanda Costa, Porto Editora, 2003.
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/29/licao.de.coisas.aspx]