Textos burlescos,
satíricos e eróticos ("soft porn")
do século XVIII – os casos de Bocage e Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut.
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Bocage (1765-1805) |
[SONETO AO VIL
INSECTO]
Emquanto a rude
plebe alvoroçada
Do rouco vate
escuta a voz de mouro,
Que do peito
inflammado sae d'estouro
Por estreito
boccal desentoada:
Não cessa a
cantilena acigarrada
Do vil insecto, do
mordaz bezouro;
Que à larga se
creou por entre o louro
De que a sabia
Minerva está c'roada:
Emquanto o cego
atheu, calvo da tinha,
Com parolas
confunde alguns basbaques,
Psalmeando a
amatoria ladainha:
Eu não me posso
ter; cheio de achaques,
Cansado de lhe
ouvir — "Bravo! Esta é minha!"
Cago sem me
sentir, desando em traques.
Soneto anónimo
contra Bocage
Bocage assim que
soube que fora expulso da Nova Arcádia, antes mesmo que atacasse cada um dos seus
conhecidos antagonistas individualmente, fulminou-os em conjunto, chegando até à
obscenidade.
Contra Elmano
Sadino urrando avança
O estéril Corydon, o vão Belmiro,
Bernardo, o Nenias, lúgubre
vampiro,
Que do extincto Miguel possue a herança;
O curto Quintanilha, o torpe França,
O tonsurado, retumbante Elmiro,
Vibram tiros ao vate, e é cada tiro
Mais froixo, que pedrada de criança.
Elmano solta um ….. eis foge
tudo;
Eis os sócios ganindo ao som do traque,
Quaes do funil appenso os cães no entrudo.
Mas se inda a corja renovar o ataque,
Bocage que fará? Pôr-se de escudo,
Perder doze vinténs n'um Almanach.
Bocage, Soneto
193.
Porto, Livraria Chardron Casa Editora
Sucessores Lello & Irmão, 1902
BOCAGE:
A SÁTIRA E A POESIA ERÓTICA
A
tradição crítica sempre tem considerado a poesia lírica de Bocage de valor
poético preponderante em detrimento da sua poesia satírica e “pornográfica”, de
modo que podemos sugerir que essa tradição permanece com a mesma estética moralizante
dos censores portugueses que proibiram seus ditos versos “libertinos” e
prenderam-no nas masmorras inquisitoriais por heresia e devassidão. Parece que
os críticos e estudiosos da literatura tradicionais dogmáticos jamais se
desprenderam de suas máscaras morais ao analisar a obra dita “depravada” do
poeta Bocage. Talvez eles sentiram uma repugnância refinada, própria dos
moralistas, lançando a poesia erótica de Bocage para debaixo do tapete,
voltando apenas seus olhos para os sonetos líricos que neles subjaz um fundo
psicologicamente conflituoso, nos quais se encontra esfacelado o espírito
agônico do poeta. Na verdade, é preciso realizar um estudo entre esses sonetos
e a poesia erótica, pois ambos se completam e fazem parte do mesmo espírito
criador.
Por
conseguinte, antes de nos determos na poesia pornográfica bocageana, é preciso
rebater o conceito pornografia imposto
pela tradição dogmática e que pode soar, pejorativo nas bocas desatentas de
alguns leitores. O que é que o conceito “poesia pornográfica” quer sugerir?
Será que é a falta de uma interpretação coerente entre o homem-artista Bocage,
sua obra e o meio em que viveu? Não há dúvidas de que o conceito “poesia
pornográfica” visa desmerecer um trabalho artístico que trata da sexualidade de
um modo irreverente com o intuito de romper as barreiras da hipocrisia moral.
Tal conceito já traz implícito um juízo moral da obra, fundado em valores
preestabelecidos. Assim, na visão incoerente do dogmatismo tradicional “poesia
pornográfica” não passa de panfletos “obscenos” e “grotescos” e, portanto,
distante da verdadeira poesia fundamentada na poética do belo em si: afirmamos
sempre que todas as palavras belas e decentes escondem feios pensamentos. Renegar
e ter a poesia erótica de Bocage como planfetária é entendê-la como uma obra da
depravação dos bons costumes do status
quo. Denominá-la “pornográfica” é já atribuir um valor moral como poesia da
sordidez, escatológica, do baixo calão. Essa tradição crítico-dogmática e
acadêmica não compreendeu que a arte de um modo geral deve estar isenta e livre
de qualquer crítica ou valor moral. Moralizar a arte é assassiná-la no pior
sentido do termo.
Ao
contrário dessa tradição crítico-estética, percebemos que a poesia satírica e
“amorosa” de Bocage é belamente rica porque está transplantada em uma linguagem
viva e humanista, apesar de um certo retoricismo, que reflete o calor das ruas,
a acrimônia do moralismo da saciedade servindo como desmascaramento da
tartufice, da corrupção e do sistema político e social que reprime o natural
instinto da sexualidade através de suas instituições; porque mostra que a
sexualidade é vista pela sociedade e, principalmente, pela Igreja como uma
atividade suja e ímpia e, portanto, antinatural de modo que notamos na
sociedade de um modo geral uma espécie de neurose religiosa impregnada em seu
inconsciente coletivo. Neurose esta já diagnosticada por Nietzsche em sua Genealogia da Moral.
Um
exemplo clarividente desse desmascaramento social é a “Pena de Talião” e a “Epístola
a Marília” seguida de outras entre as amigas Olinda e Alzira. A “Epístola a
Marília” rendeu a Bocage a censura e a masmorra pelas irreverências
antimonárquicas e anticatólicas, por parte da Intendência Geral da Polícia
Portuguesa. No tocante à “Pena de Talião”, Bocage deu a luz a esta sátira na
Taverna do Nicola entre copos de vinho e tragos de cigarros e cuja crítica
ácida está dirigida ao padre José Agostinho de Macedo que havia censurado
Bocage por conta do tom egolátrico do prólogo à tradução dos “Jardins” de
Delille. Aqui, além de um desafeto pessoal, trata-se de um embate entre duas
tradições diferentes: o padre-poeta que parece pertencer ao dogmatismo estético
de um lado, e do outro, Bocage que pertence à tradição pródiga como um Gregório
de Matos e muitos outros. A sátira ao padre não é só a crítica à pessoa do
padre, mas a toda tradição que ele representa e como tal à própria sociedade
que nela jaz enraizada. É a crítica aos bons costumes e suas etiquetas
refinadas, aos eruditos que escrevem com esmero “palavroso” destituído de
qualquer ética entre ação e pensamento: “segue o que tens de cor mas não
praticas / serás o que não és, o que não foste”, satiriza Bocage o
representante sacerdotal e guia dos aparatos e bons costumes sociais que age e fala
com denodo e racionalidade.
Com
relação à “Epístola a Marília” seguida das “Epístolas Entre as Amigas Olinda e
Alzira, o poeta critica o sistema político-social que oprime com seu “dogma
funesto” o natural instinto sexual. Este sistema pode ser entendido como as
várias instituições que compõem a sociedade como o Estado, a Igreja e a
família, cuja mentalidade esta cristalizada pelos valores católicos de
repressão moral à sexualidade, desvelando, ao mesmo tempo, a hipocrisia e as
contradições entranhadas no corpo dessas instituições.
Da
mesma forma que “sistema da política opressora”, que inventou o “freio” para a
“Boçal credulidade”, a sociedade como um todo, os pais, como está explícito em
algumas passagens das epístolas, coagem suas filhas, utilizando-se da “triste
educação” para impedir que elas descarreguem os seus “transportes”, os seus
desejos de amor. Mais vitais. No matrimônio, mesmo assim, com toda a pureza
possível. Ora, essas moças com seus desejos, seus “transportes” reprimidos,
impossibilitados de amar e saciar o instinto natural, acabam se atormentando
psicologicamente, “funesto”. E para complicar, elas tinham de unir seus umbigos
com alguém de sua classe social, principalmente as moças da nobreza e da
burguesia com um jogo de interesses por trás.
Bocage,
no entanto, percebe que toda essa repressão sexual que a sociedade impõe à suas
famílias é em vão, porque para ele os instintos naturais da sexualidade brotam
da própria natureza, como claro está nas epístolas: “Pensam os rudes pais, que
sopeá-las / alcançam extinguir o voraz fogo / que sobra da natureza e que ela
ateia” (Epístola VI – Alzira a Olinda). Assim, essa repressão sexual, que é
fundamentalmente de cunho religioso, só faz arraigar o remorso e os tormentos
e, como bem notou Nietzsche, os instintos que não se descarregam para fora,
interiorizam-se e conseqüentemente rebelam-se contra si mesmos. Isso porque a
opressão pesa o corpo psicofisiologicamente fazendo com que todo o mecanismo
fique envenenado consigo e com o mundo. Daí, o sentimento de culpa e o
pessimismo como sintomas dessa opressão, como foi visto nas cartas de Mariana
do Alcoforado com seu conflito entre carne e espírito, entre a mulher e a
beata.
A
exaltação do amor físico (na verdade, não vemos outro amor elevado que o amor
físico) percorre as epístolas IV, V, VI e VII com relatos de atos e prazeres
amorosos entre Olinda e Alzira, longe do platonismo fictício de uma sociedade
que enxergava pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente
escondido. Nesses relatos, Bocage despoja-se de qualquer preconceito ou
depravação pelo fato de ele naturalizar a sexualidade e não vê-la como suja e
pecaminosa. Aliás, depravados e preconceituosos foram os seus censores que
viram mal em algo tão natural. Os relatos amorosos das amigas não são atos
moralmente libidinosos ou doentios. Ao contrário, Bocage pretendia mostrar quão
benéfica é a sexualidade para o animal homem que lhe proporciona um estado de
bem-estar, fruto da catarse do êxtase amoroso, tornando-o mecanismo fisiológico
leve e satisfeito por ser a sexualidade uma necessidade vital, jamais um crime.
Esse pensamento está explícito nas palavras de Olinda a sua amiga Alzira: “Agora,
e só agora me parece/ que começo a existir: reproduzir-me uma total mudança na
minha alma. / o mundo para mim já tem encantos; sob outras cores vejo mil
objetos, / que a fantasia me pintou tristonhos: / propício amor abriu-me os
seus tesouros, / a natureza seus tesouros me abre”. Alzira convertida pela a
amiga do pecado (acreditamos que a origem da neurose sexual do ocidente
encontra-se neste símbolo de decadência da humanidade ‑ o pecado): “Sei que o
primeiro ensaio dos prazeres / em vez de sufocar ativas chamas / centelhas
transformou em labaredas / infundiu-lhes vigor inextinguível. / a ardência dos
desejos combatia receio oculto, sem nascer do pejo.” Eis a conversão de Alzira,
na visão de Bocage, ao instinto natural da sexualidade deixando de preocupar-se
com as diatribes da sociedade moralista.
Nessas
epístolas poéticas, Bocage parece buscar o retorno do homem e da mulher à
natureza, à inocência da sexualidade sem a neurose do pecado, fruto da moral
ocidental, como opressão da sexualidade: “Se existe um Deus, a natureza o
oferece; / tudo o que é contra ela, é ofendê-lo”. Parece evidenciar que Bocage
desejava a revalorização das paixões tão caras à civilização grega antiga, a
qual via sexualidade como símbolo vital de perpetuação da vida, apesar de
Bocage ter uma concepção de natureza muito próxima a concepção de Roussean,
mais como uma natureza deísta, com certos elementos cristãos. Mas o que importa
era o naturalismo de Bocage, livre de qualquer valor moral, em relação à
sexualidade, obscurecido e não compreendido pela sociedade da época
setecentista.
Portanto,
como vimos, na poesia dita “pornográfica” de Bocage considerada de menor valor
poético pela tradição crítica despótica, foi apreciada por nós como uma obra de
suprema beleza pelas concepções apresentadas nas suas entrelinhas. Nós que não
apreciamos a arte com olho moral mediante etiquetas prescritas do eruditismo de
favhada. Numa sociedade tartufos, Bocage foi o único espírito autêntico, pois
sua poesia foi feita, não pelo intelecto fingidor, instintivos. Além do que foi
exposto aqui, acreditamos que a sátira e as epístolas como toda a obra de
Bocage precisam de uma interpretação mais abrangente para ser compreendida como
um todo, e assim se compreenda o espírito, o Dáimon do poeta.
Infelizmente,
Bocage não resistiu. O belo animal em Bocage foi domado pelos mercadores de
alma da religião. O genioso poeta foi vencido como o foi Gregório de Matos
pelos hipócritas moralistas. Tornou-se um pecador arrependido dando razão aos
seus algozes, renunciando aos valores cristãos. Tudo o que ele disse embelezou
em suas criações poéticas foi-se pelo ralo. No fundo, o seu arrependimento
significou a negação de tudo que ele acreditava anteriormente. Mas talvez ele
não tenha sido o culpado. Talvez o único culpado pela sua genuflexão tenha sido
a própria sociedade que o gerou... O importante é que sem Bocage não teríamos
conhecido a sociedade mesquinha de sua época, nem tampouco refletiríamos a
nossa moderníssima sociedade com a triste conclusão de que as gerações passam,
mas o espírito de porco permanece o mesmo. Para que destruamos esse espírito
talvez seja necessário outros Bocages mais duros e inocentes, “além do bem e da
moral”.
Bibliografia:
BOCAGE, Manoel. Antologia Poética. Org. Maria Lajolo.
São Paulo: Nova Cultural, 1991.
NIETZSCHE, Frederico. Genealogia da Moral – 2ª dissertação.
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Pirro Korisco,
https://pt.scribd.com/doc/144803079/RESENHA-BOCAGE-A-SATIRA-E-A-POESIA-EROTICA#download
A ARTE DE DAR
PEIDOS
Ensaio
teórico-físico e metódico de 1751
História de um peido que fez fugir o Diabo, pondo-o a
fazer papel de parvo.
Um
homem, que o Diabo atormentava há já algum tempo, não conseguindo
resistir às insistências desse espírito maligno,
cedeu-lhe mas com três condições:
1.º Pediu-lhe
uma grande quantidade de ouro e prata,
e o Diabo trouxe-lhe tudo o que pediu.
2.º Exigiu
ser tornado invisível, e o Diabo ensinou-lhe como fazê-lo.
Finalmente,
não sabendo o que lhe exigir
como terceira condição e querendo colocar o Diabo
numa situação que ele não conseguisse resolver, e não estando a
sua esperteza a ajudá-lo, viu-se assaltado por um medo
excessivo, e foi esse medo que, por
acaso, lhe forneceu a solução. Conta-se que, nesse
momento crítico, lhe saiu um peido ditongo, cujo estampido parecia o de
um tiro de morteiro. Aproveitando ajuizadamente a
ocasião, disse ao Diabo: «Enfia, se conseguires, este peido no buraco
de uma agulha, e serei teu». Evidentemente, o Diabo
não conseguiu fazê-lo, apesar
de o tentar, enfiando o peido de um lado e puxando do outro lado com toda
a força dos seus dentes. Para mais, assustado
com o estrondo de tal peido, que o eco avolumara,
confundido e envergonhado por ter feito figura
de parvo, fugiu a toda a pressa e libertou assim o desgraçado do perigo iminente
que correra.*
_____________________
* Na versão portuguesa desta história, o homem pede ao Diabo: «Agora, pinta-o de verde». (NT)
Problema
Permitam-me, antes
de concluir, que coloque aqui uma questão.
Perguntam-me, em
nome dos músicos, quantos tipos de peidos existem no que se refere às diferenças
de som.
Resposta: Sessenta
e dois. Já que, segundo Cardan, o traseiro produz e forma quatro modos simples de
peidos. A saber, o agudo, O grave,
o reflectido e o livre. Estes modos decompõem-se em cinquenta
e oito. Se acrescentarmos os quatro primeiros, obteremos sessenta e dois sons
ou espécies diferentes de peidos.
Quem quiser que os
conte.
Pierre-Thomas-Nicolas
Hurtaut, 1751
Incrédulo, o leitor interrogar-se-á:
mas então, dar peidos também é uma arte? Se a curiosidade o levou
a pegar neste pequeno livro, a resposta está nas suas mãos. E garanto-lhe: a
incursão por estas páginas revelar-se-á tão divertida como instrutiva. Fica,
porém, o aviso: talvez o opúsculo lhe dê mais para pensar do que está à espera,
pois o que se passa no nosso corpo diz mais sobre nós do que estamos preparados
para admitir.
Publicado
pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, A Arte de Dar Peidos teve tanto sucesso que o autor a
reeditou várias vezes até à sua morte (que ocorreu em 1791). Com o tempo, a
dissertação tornou-se num clássico da literatura cómica, escatológica e
pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis as edições e traduções da
obra no mundo inteiro. Já veremos porquê.
Filho
de um comerciante (negociava cavalos), Pierre-Thomas-Nicolas preferiu
dedicar-se ao ensino (professor de latim na Escola Militar) e, mais tarde, à
literatura, em vez de seguir as pisadas do pai, como este desejava. A sátira
não era o seu único domínio. Latinista e gramático encartado, assinou obras de
literatura Le Voyage d’Aniers, 1748), de história
(Dictionnaire historique de la ville de
Paris, escrito em colaboração com o seu amigo Magby, em 1779), de filologia
(Dictionnaire des mots homonymes de la
langue française, 1775), e até de «medicina» (Essais de médecine sur le flux menstruel, 1754).
Foi,
contudo, graças ao texto que o leitor tem entre mãos que Hurtaut se tornou
imortal, inspirando mesmo um escritor como Frank Érvart a escrever: «nesta obra
mundana e libertina, sopra o vento do espírito das Luzes».
Este
falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às suas últimas
consequências pois, no fundo, quer lembrar-nos que por baixo das rendas e dos
perfumes, temos vísceras como qualquer outro animal e que não devemos
envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como
afirma, o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que
pode e deve ser assumido como uma fonte de prazer. E até de arte, pois dar
peidos não custa, custa é saber dá-los.
Erudito,
Hurtaut cita abundantemente os autores clássicos (Aristófanes, Cícero e
Horácio, entre outros), mas também pensadores mais contemporâneos, para nos
lembrar que um bom peido, ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de
brincadeira e de prazer, mas igualmente uma arma de guerra ou uma declaração de
independência. Além de que um peido dado na boa altura é capaz de virar uma
situação a nosso favor, como se verá na histórias do «pobre» Diabo e do
Príncipe Peido-Airoso.
A
arte de dar peidos é, pois, uma ocasião rara para aprofundar um assunto sobre o
qual poucos se debruçam em boa verdade. Hurtaut procura dar a volta à questão,
esgotá-la sob todos os aspectos. E se é verdade que, tal como lembra o seu
subtítulo, o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituados e os
hipócritas (para não falar dos que têm prisão de ventre, ou diarreia, mental),
a sua utilidade é inquestionável.
O
que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de
rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que o peido tem de
dramático (ou trágico-cómico, se preferirem) é vir lembrar-nos que somos
imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo ainda antes de
morrermos. E contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
A Arte de Dar Peidos não
se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão
sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das
razões porque o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável do
peido permanecer hoje uma manifestação tão desconhecida da generalidade das
pessoas como o era no século XVIII.~
Por
isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto. Deixem-me
recordar que este hino aos gases internos vem lembrar-nos que o peido pode ter
uma força expressiva extraordinária. Ele está para o corpo como o vento está
para o mundo. É um sopro e, logo, divino. Se Deus o criou, ele lá sabe. A Natureza
não se engana e os homens mais felizes são os que se soltam sem vergonha. Reter
um peido não é bom para a saúde. Todos são bons, defende Hurtaut, porque todos
têm a sua razão de ser.
Para
além do mais, a escrita de Hurtaut é uma preciosidade, a obra de um virtuoso da
escrita satírica, que sabe variar de estilo para criar um verdadeiro mosaico de
citações e anedotas inesquecíveis. Ele maneja a língua francesa com uma
musicalidade admirável e com a elegância dos escritores da época.
Roland
Barthes escreveu um dia: «Por
escrito, a merda não cheira mal». Não
sei se concordo, há textos que fedem, e ao dizer isto estou-me a lembrar
essencialmente de discursos políticos. A
Arte de Dar Peidos, pelo contrário, não ofende nem o olfacto nem a
inteligência. Ao transformar o ruído e o mau cheiro numa manifestação de bom
gosto e erudição, Hurtaut fez obra de alquimista, defendendo, por exemplo, que
não há no mundo som mais mavioso do que o peido de uma virgem. Não admira que a
sua obra continue a suscitar a nossa curiosidade e aplauso.
De
resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais
louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de peidos, concebido por
um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma,
decerto já o perceberam: a matéria do livro é, nem mais nem menos, do que um
dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.
“Preâmbulo”, Jorge
Lima Alves, Lisboa, 5 de outubro de 2010.
Lisboa, Orfeu Negro, 2010.