sábado, 17 de janeiro de 2015

Haiku: Um caminho pessoal de despojamento e de procura do essencial




QUINZE HAIKUS JAPONESES
(mudados para português por Herberto Helder)


            Ervas do estio:
lugar onde os guerreiros
            sonham.

*

            Um cuco
foge ao longe — e ao longe,
            uma ilha.

*

            Primeira neve:
bastante para vergar as folhas
            dos junquilhos.

(Bashó)
*

            Libélula vermelha.
Tira-lhe as asas:
            um pimentão.

(Kikaku)

*

Pimentão vermelho.
Põe-lhe umas asas:
            Libélula.

(Correcção de Bashô)

*

Pelo meio do arrozal
vou até à ameixoeira —
para ver o seu perfume.

*

            Pirilampos
sobre o espelho da ribeira.
Dupla barragem de luz

*

            Festa das flores.
Acompanhando a mãe,
            uma criança cega.

(Kikaku)

*

Casa sob as flores brancas.
            Onde bater?
Mancha sombria da porta.

(Kyorai)

*

            Crescente lunar.
O tubarão esconde a cabeça
            debaixo das vagas.

(Shikô)

*

A lua deitou sobre as coisas
uma toalha de prata.
Azáleas brancas.

*

Monte de Higashi.
Como o corpo
sob um lençol.

(Ransetsu)

*

Caracol,
lento, lento, lento — sobe
o Fuji.

*

Um cuco
cuja voz se arrasta
sobre as águas.

(Issa)

*

            Ah, o passado.
O tempo onde se acumularam
            os dias lentos.

(Busson)




Herberto Helder, O Bebedor Nocturno (1961-1966).
Apud: Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990.



Retrato e poema de Matsuo Bashō
 pelo artista Yokoi Kinkoku, 1820 (Era Edo)


a vida demora tanto
como um aguaceiro de inverno
diz Sôgi

                     *

polvilho os meus ouvidos
com incenso
e assim ouço melhor o cuco

                     *

quero contemplar uma flor
à primeira luz do dia
para ver a face de um deus

                     *

o coração viajante não se enraíza
antes quer ser
braseira ambulante

O Eremita Viajante, Matsuo Bashô. Lisboa, Assírio & Alvim, 2016. Tradução: Joaquim M. Palma



Traduzir qualquer haiku é uma tarefa arriscada e, talvez mesmo impossível. A exactidão da forma dificilmente se consegue transpor para o português sem sacrificar a fidelidade às palavras e, sem a exactidão da forma, grande parte da armadilha de simplicidade do poema na sua língua original se esfuma. Por exemplo, cada haiku deve incluir num dos seus três versos um kigo, uma palavra ou ideia associável a uma estação do ano. Um exemplo simples: para os japoneses a palavra cigarra tem uma particular ligação agradável com paisagens de verão. Para um português esta ideia poderá não parecer estranha, mas em muitas outras culturas a cigarra pouco mais será do que um ruído que incomoda. Muitas destas palavras-estação perdem a sua função quando passadas para qualquer outra língua e afastam o leitor para perigosamente longe do ponto de partida. Mas as dificuldades vão muito para lá destes exemplos.

Traduzir Bashô, provavelmente o melhor praticante do género, é o Risco entre os riscos. Também por isso, Joaquim M. Palma, ciente da impossibilidade última de traduzir um haiku, apresenta o seu trabalho como versão, que é, afinal de contas, a tradução possível para o português. Não se pense, contudo, que se trata de um trabalho menos exigente. Ao passar Bashô para outra língua, um bom tradutor deve ser muito menos isso e muito mais leitor-autor. A compreensão da origem e a constante comparação com outras soluções de tradução, se possível no maior número de línguas possíveis, é fundamental e o longo ensaio introdutório de Joaquim M. Palma evidencia esse trabalho. Mas a parte do autor está noutro lugar, na capacidade invejável de compreender a linguagem poética de Bashô e de a converter naquilo que seria, indubitavelmente, um poema na língua de chegada capaz de deixar a mesma deliciosa impressão capturada no japonês. Este é o verdadeiro teste do bom tradutor de haiku, o conseguir ser também autor, e Joaquim M. Palma supera-o com distinção.


A poesia haiku com a sua postura não didática, centrada no momento e no presente, frugal na expressão e ligada à Natureza constitui uma afirmação de valores que vão contracorrente dos valores hodiernos da comunicação pessoal e social e da vida quotidiana das sociedades industrializadas. Assim, escrever haiku não é linearmente equivalente a escrever qualquer outro tipo de poesia: pressupõe - como dizia um dos seus maiores cultores, Matsuo Bashô - a procura de um conjunto de valores, uma via de transformação pessoal que aproxima o caminhante de uma visão do mundo da qual emerge a atitude e a escrita haiku. Um caminho pessoal de despojamento e de procura do essencial. (...)

David Rodrigues, Prefácio a De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea
Coimbra, Terra Ocre Edições, 2010. ISBN 978-972-8999-95-7


*

O haiku é uma forma tradicional de poema japonês. Este tipo de poema obedece a regras e é por isso fácil de construir. Tem apenas uma estrofe, composta por três versos.
Os versos devem ter no seu conjunto 17 sílabas, distribuídas do seguinte modo:
– Cinco sílabas no primeiro verso.
– Sete sílabas no segundo verso.
– Cinco sílabas no terceiro verso.
A temática destes poemas é a Natureza (as plantas, os animais, a chuva, o sol, a lua, os jardins, etc.)
É escrito no Presente do Indicativo, como se o Poeta presenciasse naquele momento a cena que descreve.
Exemplos:
A- bri-sa- su-a-ve
Si-len-ci-o-sa- pas-sei-a
Na á-gu-a- do- la-go

No- chão- do- jar-dim
U-ma- lu-a - va-ga e- len-ta
So-lu-ça- so-zi-nha




PROPOSTA DE EXPRESSÃO ESCRITA:

Escreve um haiku, procurando cuidadosamente as palavras mais adequadas. Segue as seguintes pistas de escrita:
– Esmera-te nos adjetivos (frágil, silencioso, vago, lento, diáfano, transparente, solitário, dolente, etc.) e nos elementos da Natureza que escolheres (o lago, a flor, o sol, a árvore, a colina, o prado, o caminho, a flor, o sapo, o nenúfar, a pedra, etc.)
– Conta as sílabas de cada verso apenas até à última sílaba tónica.

Alzira Cabral, Mil Textosdestacável da revista Noesis n.º 72, Janeiro 2008.



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domingo, 11 de janeiro de 2015

Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas para vê-las golfar sangue (Herberto Helder)






Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas
para vê-las golfar sangue. É quando
a pedra está a prumo, quando a estaca
solar se crava atrás das casas e amadurece
como uma árvore.
Mas também ouvi a água bater directa
nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava
condenado
ao extravio mortal. Era um dom que me fundia
à substância primária
do terror.
E à riqueza e energia. E à tremenda
doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa
das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra
rotativa.

E que leão me beijou boca a boca, juba e cabelo
trançados numa chama única?
Esse beijo afundou-se-me até às unhas.
Aparelhou-me para besta
soberba, para o sono, o brilho, a desordem
ou a
carnificina. De que leite ardido, de que matriz
ou opulência terrena,
nos vem a danação? Se a pedra
tem uma raiz buscando vida em que teias de carne,
há em cima um Deus agudo,
de fenda no casco, e braços tão abertos que apanha todo o basalto,
como uma estrela elementar. Atrás
das rosáceas
desabrochadas. Do movimento de estátuas
arcangélicas plantadas no refluxo
da pedra. Boca: 
bolha de sangue.

E há uma palpitação soturna, uma
delicadeza no cerne: o osso vertebral que assenta
ao meio, no ânus:
o falo — e em torno
gira a catedral. Lenta dança de Deus, da escuridão.
para o alto.

O leve poder da lua apenas queima os olhos.

Herberto Helder, Flash. Abril 1980.
Apud Poesia TodaLisboa, Assírio & Alvim, 1990



Notre Dame Gargoyle - Paris, Jen White (upload 25-04-2011)




Notre Dame Gargoyle Waterspouts por Danielle A. Davey




Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.

Herberto Helder, Última Ciência. 1985, revisto em 1987.
Apud Poesia TodaLisboa, Assírio & Alvim, 1990



Gargouille de la cathédrale Notre-Dame de l'Annonciation de Moulins.
Foto de Vassil, 07/07/2009


quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Dois satíricos do século 18 - Bocage e Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut

Textos burlescos, satíricos e eróticos ("soft porn") do século XVIII – os casos de Bocage e Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut.

Bocage (1765-1805)


[SONETO AO VIL INSECTO]

Emquanto a rude plebe alvoroçada
Do rouco vate escuta a voz de mouro,
Que do peito inflammado sae d'estouro
Por estreito boccal desentoada:

Não cessa a cantilena acigarrada
Do vil insecto, do mordaz bezouro;
Que à larga se creou por entre o louro
De que a sabia Minerva está c'roada:

Emquanto o cego atheu, calvo da tinha,
Com parolas confunde alguns basbaques,
Psalmeando a amatoria ladainha:

Eu não me posso ter; cheio de achaques,
Cansado de lhe ouvir — "Bravo! Esta é minha!"
Cago sem me sentir, desando em traques.

Soneto anónimo contra Bocage


Bocage assim que soube que fora expulso da Nova Arcádia, antes mesmo que atacasse cada um dos seus conhecidos antagonistas individualmente, fulminou-os em conjunto, chegando até à obscenidade.

Contra Elmano Sadino urrando avança
O estéril Corydon, o vão Belmiro,
Bernardo, o Nenias, lúgubre vampiro,
Que do extincto Miguel possue a herança;

O curto Quintanilha, o torpe França,
O tonsurado, retumbante Elmiro,
Vibram tiros ao vate, e é cada tiro
Mais froixo, que pedrada de criança.

Elmano solta um ….. eis foge tudo;
Eis os sócios ganindo ao som do traque,
Quaes do funil appenso os cães no entrudo.

Mas se inda a corja renovar o ataque,
Bocage que fará? Pôr-se de escudo,
Perder doze vinténs n'um Almanach.

Bocage, Soneto 193.
Porto, Livraria Chardron Casa Editora Sucessores Lello & Irmão, 1902







BOCAGE: A SÁTIRA E A POESIA ERÓTICA

A tradição crítica sempre tem considerado a poesia lírica de Bocage de valor poético preponderante em detrimento da sua poesia satírica e “pornográfica”, de modo que podemos sugerir que essa tradição permanece com a mesma estética moralizante dos censores portugueses que proibiram seus ditos versos “libertinos” e prenderam-no nas masmorras inquisitoriais por heresia e devassidão. Parece que os críticos e estudiosos da literatura tradicionais dogmáticos jamais se desprenderam de suas máscaras morais ao analisar a obra dita “depravada” do poeta Bocage. Talvez eles sentiram uma repugnância refinada, própria dos moralistas, lançando a poesia erótica de Bocage para debaixo do tapete, voltando apenas seus olhos para os sonetos líricos que neles subjaz um fundo psicologicamente conflituoso, nos quais se encontra esfacelado o espírito agônico do poeta. Na verdade, é preciso realizar um estudo entre esses sonetos e a poesia erótica, pois ambos se completam e fazem parte do mesmo espírito criador.
Por conseguinte, antes de nos determos na poesia pornográfica bocageana, é preciso rebater o conceito pornografia imposto pela tradição dogmática e que pode soar, pejorativo nas bocas desatentas de alguns leitores. O que é que o conceito “poesia pornográfica” quer sugerir? Será que é a falta de uma interpretação coerente entre o homem-artista Bocage, sua obra e o meio em que viveu? Não há dúvidas de que o conceito “poesia pornográfica” visa desmerecer um trabalho artístico que trata da sexualidade de um modo irreverente com o intuito de romper as barreiras da hipocrisia moral. Tal conceito já traz implícito um juízo moral da obra, fundado em valores preestabelecidos. Assim, na visão incoerente do dogmatismo tradicional “poesia pornográfica” não passa de panfletos “obscenos” e “grotescos” e, portanto, distante da verdadeira poesia fundamentada na poética do belo em si: afirmamos sempre que todas as palavras belas e decentes escondem feios pensamentos. Renegar e ter a poesia erótica de Bocage como planfetária é entendê-la como uma obra da depravação dos bons costumes do status quo. Denominá-la “pornográfica” é já atribuir um valor moral como poesia da sordidez, escatológica, do baixo calão. Essa tradição crítico-dogmática e acadêmica não compreendeu que a arte de um modo geral deve estar isenta e livre de qualquer crítica ou valor moral. Moralizar a arte é assassiná-la no pior sentido do termo.
Ao contrário dessa tradição crítico-estética, percebemos que a poesia satírica e “amorosa” de Bocage é belamente rica porque está transplantada em uma linguagem viva e humanista, apesar de um certo retoricismo, que reflete o calor das ruas, a acrimônia do moralismo da saciedade servindo como desmascaramento da tartufice, da corrupção e do sistema político e social que reprime o natural instinto da sexualidade através de suas instituições; porque mostra que a sexualidade é vista pela sociedade e, principalmente, pela Igreja como uma atividade suja e ímpia e, portanto, antinatural de modo que notamos na sociedade de um modo geral uma espécie de neurose religiosa impregnada em seu inconsciente coletivo. Neurose esta já diagnosticada por Nietzsche em sua Genealogia da Moral.
Um exemplo clarividente desse desmascaramento social é a “Pena de Talião” e a “Epístola a Marília” seguida de outras entre as amigas Olinda e Alzira. A “Epístola a Marília” rendeu a Bocage a censura e a masmorra pelas irreverências antimonárquicas e anticatólicas, por parte da Intendência Geral da Polícia Portuguesa. No tocante à “Pena de Talião”, Bocage deu a luz a esta sátira na Taverna do Nicola entre copos de vinho e tragos de cigarros e cuja crítica ácida está dirigida ao padre José Agostinho de Macedo que havia censurado Bocage por conta do tom egolátrico do prólogo à tradução dos “Jardins” de Delille. Aqui, além de um desafeto pessoal, trata-se de um embate entre duas tradições diferentes: o padre-poeta que parece pertencer ao dogmatismo estético de um lado, e do outro, Bocage que pertence à tradição pródiga como um Gregório de Matos e muitos outros. A sátira ao padre não é só a crítica à pessoa do padre, mas a toda tradição que ele representa e como tal à própria sociedade que nela jaz enraizada. É a crítica aos bons costumes e suas etiquetas refinadas, aos eruditos que escrevem com esmero “palavroso” destituído de qualquer ética entre ação e pensamento: “segue o que tens de cor mas não praticas / serás o que não és, o que não foste”, satiriza Bocage o representante sacerdotal e guia dos aparatos e bons costumes sociais que age e fala com denodo e racionalidade.
Com relação à “Epístola a Marília” seguida das “Epístolas Entre as Amigas Olinda e Alzira, o poeta critica o sistema político-social que oprime com seu “dogma funesto” o natural instinto sexual. Este sistema pode ser entendido como as várias instituições que compõem a sociedade como o Estado, a Igreja e a família, cuja mentalidade esta cristalizada pelos valores católicos de repressão moral à sexualidade, desvelando, ao mesmo tempo, a hipocrisia e as contradições entranhadas no corpo dessas instituições.
Da mesma forma que “sistema da política opressora”, que inventou o “freio” para a “Boçal credulidade”, a sociedade como um todo, os pais, como está explícito em algumas passagens das epístolas, coagem suas filhas, utilizando-se da “triste educação” para impedir que elas descarreguem os seus “transportes”, os seus desejos de amor. Mais vitais. No matrimônio, mesmo assim, com toda a pureza possível. Ora, essas moças com seus desejos, seus “transportes” reprimidos, impossibilitados de amar e saciar o instinto natural, acabam se atormentando psicologicamente, “funesto”. E para complicar, elas tinham de unir seus umbigos com alguém de sua classe social, principalmente as moças da nobreza e da burguesia com um jogo de interesses por trás.
Bocage, no entanto, percebe que toda essa repressão sexual que a sociedade impõe à suas famílias é em vão, porque para ele os instintos naturais da sexualidade brotam da própria natureza, como claro está nas epístolas: “Pensam os rudes pais, que sopeá-las / alcançam extinguir o voraz fogo / que sobra da natureza e que ela ateia” (Epístola VI – Alzira a Olinda). Assim, essa repressão sexual, que é fundamentalmente de cunho religioso, só faz arraigar o remorso e os tormentos e, como bem notou Nietzsche, os instintos que não se descarregam para fora, interiorizam-se e conseqüentemente rebelam-se contra si mesmos. Isso porque a opressão pesa o corpo psicofisiologicamente fazendo com que todo o mecanismo fique envenenado consigo e com o mundo. Daí, o sentimento de culpa e o pessimismo como sintomas dessa opressão, como foi visto nas cartas de Mariana do Alcoforado com seu conflito entre carne e espírito, entre a mulher e a beata.
A exaltação do amor físico (na verdade, não vemos outro amor elevado que o amor físico) percorre as epístolas IV, V, VI e VII com relatos de atos e prazeres amorosos entre Olinda e Alzira, longe do platonismo fictício de uma sociedade que enxergava pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente escondido. Nesses relatos, Bocage despoja-se de qualquer preconceito ou depravação pelo fato de ele naturalizar a sexualidade e não vê-la como suja e pecaminosa. Aliás, depravados e preconceituosos foram os seus censores que viram mal em algo tão natural. Os relatos amorosos das amigas não são atos moralmente libidinosos ou doentios. Ao contrário, Bocage pretendia mostrar quão benéfica é a sexualidade para o animal homem que lhe proporciona um estado de bem-estar, fruto da catarse do êxtase amoroso, tornando-o mecanismo fisiológico leve e satisfeito por ser a sexualidade uma necessidade vital, jamais um crime. Esse pensamento está explícito nas palavras de Olinda a sua amiga Alzira: “Agora, e só agora me parece/ que começo a existir: reproduzir-me uma total mudança na minha alma. / o mundo para mim já tem encantos; sob outras cores vejo mil objetos, / que a fantasia me pintou tristonhos: / propício amor abriu-me os seus tesouros, / a natureza seus tesouros me abre”. Alzira convertida pela a amiga do pecado (acreditamos que a origem da neurose sexual do ocidente encontra-se neste símbolo de decadência da humanidade ‑ o pecado): “Sei que o primeiro ensaio dos prazeres / em vez de sufocar ativas chamas / centelhas transformou em labaredas / infundiu-lhes vigor inextinguível. / a ardência dos desejos combatia receio oculto, sem nascer do pejo.” Eis a conversão de Alzira, na visão de Bocage, ao instinto natural da sexualidade deixando de preocupar-se com as diatribes da sociedade moralista.
Nessas epístolas poéticas, Bocage parece buscar o retorno do homem e da mulher à natureza, à inocência da sexualidade sem a neurose do pecado, fruto da moral ocidental, como opressão da sexualidade: “Se existe um Deus, a natureza o oferece; / tudo o que é contra ela, é ofendê-lo”. Parece evidenciar que Bocage desejava a revalorização das paixões tão caras à civilização grega antiga, a qual via sexualidade como símbolo vital de perpetuação da vida, apesar de Bocage ter uma concepção de natureza muito próxima a concepção de Roussean, mais como uma natureza deísta, com certos elementos cristãos. Mas o que importa era o naturalismo de Bocage, livre de qualquer valor moral, em relação à sexualidade, obscurecido e não compreendido pela sociedade da época setecentista.
Portanto, como vimos, na poesia dita “pornográfica” de Bocage considerada de menor valor poético pela tradição crítica despótica, foi apreciada por nós como uma obra de suprema beleza pelas concepções apresentadas nas suas entrelinhas. Nós que não apreciamos a arte com olho moral mediante etiquetas prescritas do eruditismo de favhada. Numa sociedade tartufos, Bocage foi o único espírito autêntico, pois sua poesia foi feita, não pelo intelecto fingidor, instintivos. Além do que foi exposto aqui, acreditamos que a sátira e as epístolas como toda a obra de Bocage precisam de uma interpretação mais abrangente para ser compreendida como um todo, e assim se compreenda o espírito, o Dáimon do poeta.
Infelizmente, Bocage não resistiu. O belo animal em Bocage foi domado pelos mercadores de alma da religião. O genioso poeta foi vencido como o foi Gregório de Matos pelos hipócritas moralistas. Tornou-se um pecador arrependido dando razão aos seus algozes, renunciando aos valores cristãos. Tudo o que ele disse embelezou em suas criações poéticas foi-se pelo ralo. No fundo, o seu arrependimento significou a negação de tudo que ele acreditava anteriormente. Mas talvez ele não tenha sido o culpado. Talvez o único culpado pela sua genuflexão tenha sido a própria sociedade que o gerou... O importante é que sem Bocage não teríamos conhecido a sociedade mesquinha de sua época, nem tampouco refletiríamos a nossa moderníssima sociedade com a triste conclusão de que as gerações passam, mas o espírito de porco permanece o mesmo. Para que destruamos esse espírito talvez seja necessário outros Bocages mais duros e inocentes, “além do bem e da moral”.

Bibliografia:
BOCAGE, Manoel. Antologia Poética. Org. Maria Lajolo. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
NIETZSCHE, Frederico. Genealogia da Moral – 2ª dissertação. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Pirro Korisco,
https://pt.scribd.com/doc/144803079/RESENHA-BOCAGE-A-SATIRA-E-A-POESIA-EROTICA#download








A ARTE DE DAR PEIDOS
Ensaio teórico-físico e metódico de 1751


História de um peido que fez fugir o Diabo, pondo-o a fazer papel de parvo.

Um homem, que o Diabo atormentava há já algum tempo, não conseguindo resistir às insistências desse espírito maligno, cedeu-lhe mas com três condições:
1.º Pediu-lhe uma grande quantidade de ouro e prata, e o Diabo trouxe-lhe tudo o que pediu.
2.º Exigiu ser tornado invisível, e o Diabo ensinou-lhe como fazê-lo.
Finalmente, não sabendo o que lhe exigir como terceira condição e querendo colocar o Diabo numa situação que ele não conseguisse resolver, e não estando a sua esperteza a ajudá-lo, viu-se assaltado por um medo excessivo, e foi esse medo que, por acaso, lhe forneceu a solução. Conta-se que, nesse momento crítico, lhe saiu um peido ditongo, cujo estampido parecia o de um tiro de morteiro. Aproveitando ajuizadamente a ocasião, disse ao Diabo: «Enfia, se conseguires, este peido no buraco de uma agulha, e serei teu». Evidentemente, o Diabo não conseguiu fazê-lo, apesar de o tentar, enfiando o peido de um lado e puxando do outro lado com toda a força dos seus dentes. Para mais, assustado com o estrondo de tal peido, que o eco avolumara, confundido e envergonhado por ter feito figura de parvo, fugiu a toda a pressa e libertou assim o desgraçado do perigo iminente que correra.*

_____________________
* Na versão portuguesa desta hisria, o homem pede ao Diabo: «Agora, pinta-o de verde». (NT)



Problema

Permitam-me, antes de concluir, que coloque aqui uma questão.
Perguntam-me, em nome dos músicos, quantos tipos de peidos existem no que se refere às diferenças de som.
Resposta: Sessenta e dois. Já que, segundo Cardan, o traseiro produz e forma quatro modos simples de peidos. A saber, o agudo, O grave, o reflectido e o livre. Estes modos decompõem-se em cinquenta e oito. Se acrescentarmos os quatro primeiros, obteremos sessenta e dois sons ou espécies diferentes de peidos.
Quem quiser que os conte.

Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut, 1751





Incrédulo, o leitor interrogar-se-á: mas então, dar peidos também é uma arte? Se a curiosidade o levou a pegar neste pequeno livro, a resposta está nas suas mãos. E garanto-lhe: a incursão por estas páginas revelar-se-á tão divertida como instrutiva. Fica, porém, o aviso: talvez o opúsculo lhe dê mais para pensar do que está à espera, pois o que se passa no nosso corpo diz mais sobre nós do que estamos preparados para admitir.
Publicado pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, A Arte de Dar Peidos teve tanto sucesso que o autor a reeditou várias vezes até à sua morte (que ocorreu em 1791). Com o tempo, a dissertação tornou-se num clássico da literatura cómica, escatológica e pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis as edições e traduções da obra no mundo inteiro. Já veremos porquê.
Filho de um comerciante (negociava cavalos), Pierre-Thomas-Nicolas preferiu dedicar-se ao ensino (professor de latim na Escola Militar) e, mais tarde, à literatura, em vez de seguir as pisadas do pai, como este desejava. A sátira não era o seu único domínio. Latinista e gramático encartado, assinou obras de literatura Le Voyage d’Aniers, 1748), de história (Dictionnaire historique de la ville de Paris, escrito em colaboração com o seu amigo Magby, em 1779), de filologia (Dictionnaire des mots homonymes de la langue française, 1775), e até de «medicina» (Essais de médecine sur le flux menstruel, 1754).
Foi, contudo, graças ao texto que o leitor tem entre mãos que Hurtaut se tornou imortal, inspirando mesmo um escritor como Frank Érvart a escrever: «nesta obra mundana e libertina, sopra o vento do espírito das Luzes».
Este falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às suas últimas consequências pois, no fundo, quer lembrar-nos que por baixo das rendas e dos perfumes, temos vísceras como qualquer outro animal e que não devemos envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como afirma, o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que pode e deve ser assumido como uma fonte de prazer. E até de arte, pois dar peidos não custa, custa é saber dá-los.
Erudito, Hurtaut cita abundantemente os autores clássicos (Aristófanes, Cícero e Horácio, entre outros), mas também pensadores mais contemporâneos, para nos lembrar que um bom peido, ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de brincadeira e de prazer, mas igualmente uma arma de guerra ou uma declaração de independência. Além de que um peido dado na boa altura é capaz de virar uma situação a nosso favor, como se verá na histórias do «pobre» Diabo e do Príncipe Peido-Airoso.
A arte de dar peidos é, pois, uma ocasião rara para aprofundar um assunto sobre o qual poucos se debruçam em boa verdade. Hurtaut procura dar a volta à questão, esgotá-la sob todos os aspectos. E se é verdade que, tal como lembra o seu subtítulo, o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituados e os hipócritas (para não falar dos que têm prisão de ventre, ou diarreia, mental), a sua utilidade é inquestionável. 
O que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que o peido tem de dramático (ou trágico-cómico, se preferirem) é vir lembrar-nos que somos imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo ainda antes de morrermos. E contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
A Arte de Dar Peidos não se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das razões porque o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável do peido permanecer hoje uma manifestação tão desconhecida da generalidade das pessoas como o era no século XVIII.~
Por isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto. Deixem-me recordar que este hino aos gases internos vem lembrar-nos que o peido pode ter uma força expressiva extraordinária. Ele está para o corpo como o vento está para o mundo. É um sopro e, logo, divino. Se Deus o criou, ele lá sabe. A Natureza não se engana e os homens mais felizes são os que se soltam sem vergonha. Reter um peido não é bom para a saúde. Todos são bons, defende Hurtaut, porque todos têm a sua razão de ser.
Para além do mais, a escrita de Hurtaut é uma preciosidade, a obra de um virtuoso da escrita satírica, que sabe variar de estilo para criar um verdadeiro mosaico de citações e anedotas inesquecíveis. Ele maneja a língua francesa com uma musicalidade admirável e com a elegância dos escritores da época. 
Roland Barthes escreveu um dia: «Por escrito, a merda não cheira mal». Não sei se concordo, há textos que fedem, e ao dizer isto estou-me a lembrar essencialmente de discursos políticos. A Arte de Dar Peidos, pelo contrário, não ofende nem o olfacto nem a inteligência. Ao transformar o ruído e o mau cheiro numa manifestação de bom gosto e erudição, Hurtaut fez obra de alquimista, defendendo, por exemplo, que não há no mundo som mais mavioso do que o peido de uma virgem. Não admira que a sua obra continue a suscitar a nossa curiosidade e aplauso.
De resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de peidos, concebido por um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma, decerto já o perceberam: a matéria do livro é, nem mais nem menos, do que um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.
“Preâmbulo”, Jorge Lima Alves, Lisboa, 5 de outubro de 2010.
Lisboa, Orfeu Negro, 2010.


domingo, 28 de dezembro de 2014

ADOLESCENTES REPENTINOS (Herberto Helder)







Adolescentes repentinos, não sabem, apenas o tormento de um excesso
giratório. Com as cabeças zoológicas.
Os anéis nas patas.
Oprime-os para dentro um clarão dançante.
Aquilo que são fora.
A cegueira dos chifres que levantam
como uma enorme estrela
desabraçada. A sua ligeireza busca o peso
da pedra. E o peso que têm
de pura luz sem peso, o movimento sinistro
no chão,
o terror, uma
riqueza violenta — buscam alguém que os toque.
Na boca.

Que os torne transparentes, circulatórios.
E quando as turquesas se cruzam de mão a mão, deixando-as
em brasa,
vê-se que são anjos tocados pelas víboras, anjos
anatómicos e atrozes.
Expostos à lua como animais. Que são escuros
nas espáduas.
Devastam o mundo só de olhá-lo com força.
O sono que os ataca mostra-os
cheios de artérias. E então a delicadeza pesa-lhes
como a morte. Basta tocá-los na cara para que fiquem
brancos. Atravessá-los com o sangue venoso
da insónia, da nossa matéria.

E então a sua carne é uma estrela suada.


Herberto Helder, Flash. Abril 1980.
Apud Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990.




*


Os “[a]dolescentes repentinos”, mesmo que pessoas, são animais, e saliento que a única logia deste fragmento de Flash é a que se lê em “zoológicos”. Animalizados, portanto, os “adolescentes” não sabem, como Patrícia, “nada, nada, nada!”, “apenas o tormento de um excesso/ giratório”, ou seja, apenas a condição debruçada de sua própria condição excessiva, portanto dionisíaca, fundida à natureza. 
Luís Maffei, Do mundo de Herberto HelderRio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 2007.








[Publicação simultânea em: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/12/27/adolescentes-repentinos.aspx]