EVOLUÇÃO
A Santos Valente
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...
Hoje sou homem ‑ e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...
Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...
Hoje sou homem ‑ e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...
Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
Antero de Quental
TEXTOS DE APOIO
O Absoluto hegelianismo deste soneto justifica-se pela explicação da dialética do ser ‑ o que foi («Fui rocha», «fui…/Tronco ou ramo na incógnita floresta») e o que é («Hoje sou homem») ‑ concentrada na aspiração da liberdade («E aspiro a única liberdade»). O tipo de evolução aqui descrito segue primeiro o princípio biológico de uma passagem material de espécie para espécie ‑ o ter sido rocha para o ser homem ‑ sem que se perca a relação substancial que as liga. As quadras e o primeiro terceto dão conta deste evolucionismo biológico, fechando o soneto com três versos de profunda inspiração hegeliana. Para António Sérgio, o conceito de liberdade aqui apresentado inspira-se no sistema de Hegel apenas por afirmar a «liberdade como mola do mundo espiritual, como impulso e finalidade do Universo»), porém deve acrescentar-se que o principal termo de aproximação é a liberdade do querer ‑ Antero diz adoro e aspiro ‑ tal como em Hegel o principal fim da vontade humana é atuar livremente.
Carlos Ceia, De Punho Cerrado
A doutrina da Evolução segundo Antero de Quental é «extremamente simples», conforme missiva de 26 de Novembro de 1873 a Oliveira Martins:
«A minha doutrina da Evolução é extremamente simples e lógica, e funda -se toda numa única ideia metafísica, o devenir: daí vou deduzindo certas leis culminantes que definem a Evolução, considerando o Cosmos que nós conhecemos e a sua Evolução tal como a Ciência a tem explicado, como um mero exemplo, um exemplar entre milhões de biliões (até ao infinito) onde se revelam as leis fundamentais do devenir.»
A ideia do devenir [devir], ponto de partida e de chegada da teoria anteriana de Evolução, opõe-se à ideia da imutabilidade do Ser. Na doutrina do devir, o Ser passa por uma série de mudanças reais, para alcançar a mais profunda aspiração da Liberdade.
Carlos Ceia, De Punho Cerrado
Cf. a temática deste soneto com a doutrina expressa pelo filósofo nas Tendências Gerais da Filosofia na 2.ª metade do Século XIX «Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciência mede e pesa, mas não explica: é a aspiração profunda de liberdade, que abala as moles estelares como agita cada uma das suas moléculas, que anima o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres conscientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais largas, que torna efetiva a evolução das coisas.» ‑ Cf. ainda a ode «Panteísmo», já estudada, e o que já referimos sobre a filosofia de Hegel.
Recorde-se ainda que a ideia de evolução domina a renovação ideológica da segunda metade do século XIX: a evolução é um dos aspetos da crença no progresso e relaciona-se com a publicação da obra de Darwin, Origem das Espécies (1859), segundo a qual o homem, dotado de consciência, derivara de formas primitivas e elementares. (Cf. versos 1-8).
Notar o contraste entre o passado, isto é, as várias fases da evolução (cf. a escada multiforme) e o presente, termo da evolução, espiritualização da matéria (vs. 9-14): «Fui rocha em tempo, fui... /Hoje sou homem.»
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
1. Identifique e analise a oposição passado/presente, referindo:
- a dimensão biológica da evolução no passado;
- a dimensão espiritual do ser no presente.
2. “Hoje sou homem ‑ e na sombra enorme / Vejo, a meus pés, a escada multiforme"
- Que valor significante você atribui à “escada multiforme”? E ao facto de o homem estar ao cimo dela?
3. Analise a importância que o signo "liberdade" assume:
- no termo do poema;
- no termo da evolução total do Homem.
4. Mostre que o eu lírico se projeta conceptualmente num eu coletivo.
5. Estabeleça a relação entre o soneto "Evolução" e as palavras de Antero que a seguir se transcrevem:
"Se pois a perfeita virtude, a renúncia a todo o egoísmo. Define completamente a liberdade, e se a liberdade é a inspiração secreta das coisas e o fim último do universo, concluamos que a Santidade é o termo de toda a Evolução e que o Universo não existe nem se move senão para chegar a este supremo resultado. O drama do Ser termina na liberdade final do bem.” (Antero de Quental, Carta a Faria e Maia)
E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Plural 12, Lisboa Editora, 1999
COMENTÁRIO DE TEXTO
Faça a análise interpretativa do poema, considerando os seguintes aspetos:
• estrutura interna e justificação
• várias etapas da evolução
• marcas de naturalismo científico
• expressividade dos verbos
• marcas de resistência à evolução
• grandeza e pequenez do ser humano
• expressividade das metáforas
• a liberdade como meta última
• relação do poema com a afirmação: "A Poesia moderna é a voz da Revolução"
J. Guerra e J. Vieira, Aula Viva. Português A. 12º Ano, Porto Editora, 1999
SUGESTÕES DE LEITURA
► Apresentação crítica, seleção, notas e
sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José
Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao
estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/12/evolucao.aspx]