domingo, 20 de junho de 2010

RENÉ CHAR: ALLÉGEANCE



  
    
    
ALLEGEANCE
    
Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima? 
    
Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L'espace qu'il parcourt est ma fidélité. Il dessine l'espoir et léger l'éconduit. Il est prépondérant sans qu'il y prenne part. 
    
Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son trésor. Dans le grand méridien où s'inscrit son essor, ma liberté le creuse. 
    
Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas?
    
René Char
(L'Isle-sur-la-sorgue - Vaucluse, 1907 - Paris, 1988)
Fureur et Mystère (1948)
     
    
     
      
      
OBSERVÂNCIA
    
Nas ruas da cidade está o meu amor. Pouco importa a onde vai no tempo dividido. Já não é o meu amor, qualquer um pode falar-lhe. Ele já não se lembra; quem ao certo o amou?
    
Procura o seu par no desejo dos olhares. O espaço que percorre é a minha fidelidade. Ele desenha a esperança e ligeiro despede-a. Ele é preponderante sem tomar parte em nada.
    
Vivo no fundo de si como um destroço feliz. Sem que ele saiba, a minha solidão é o seu tesouro. No grande meridiano onde inscreve o seu curso, é a minha liberdade que o escava.
    
Nas ruas da cidade está o meu amor. Pouco importa a onde vai no tempo dividido. Já não é o meu amor, qualquer um pode falar-lhe. Ele já não se lembra; quem ao certo o amou e o ilumina de longe para que não caia?
     
René Char
    
    
      
    [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/20/allegeance.aspx]

segunda-feira, 14 de junho de 2010

I HAVE BEEN HERE BEFORE (Dante Gabriel Rossetti)

Autorretrato, Dante Gabriel Rossetti

 



    

SUDDEN LIGHT


I have been here before,

But when or how I cannot tell:

I know the grass beyond the door,

The sweet keen smell,

The sighing sound, the lights around the shore.

        

You have been mine before,—

How long ago I may not know:

But just when at that swallow’s soar

Your neck turn’d so,

Some veil did fall,— I knew it all of yore.

        

Has this been thus before?

And shall not thus time’s eddying flight

Still with our lives our love restore

In death’s despite,

 

And day and night yield one delight once more?


Dante Gabriel Rossetti (1828-1882)









[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/14/Sudden.Light.aspx]   

terça-feira, 8 de junho de 2010

JOHN KEATS: A THING OF BEAUTY IS A JOY FOR EVER

    
John Keats, por Joseph Severn, 1819

   
   
    
A thing of beauty is a joy for ever: 
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o'er-darkened ways
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
'Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven's brink.
Nor do we merely feel these essences
For one short hour; no, even as the trees
That whisper round a temple become soon
Dear as the temple's self, so does the moon,
The passion poesy, glories infinite,
Haunt us till they become a cheering light
Unto our souls, and bound to us so fast,
That, whether there be shine, or gloom o'ercast;
They always must be with us, or we die.
     
John Keats (Londres, 31 de outubro de 1795 - Roma, 23 de fevereiro de 1821)
Endymion: A Poetic Romance, Londres, Taylor and Hessey, 1818
    



     
A BELEZA EM CADA SER É UMA ALEGRIA ETERNA
     
A beleza em cada ser é uma alegria eterna:
o seu encanto torna-se maior e nunca se há-de perder
no nada; reservar-nos-á ainda um refúgio
de paz, onde adormeceremos, habitados por sonhos
suaves, uma íntima plenitude, uma respiração branda.
Comecemos, assim, a tecer em cada manhã
uma grinalda de flores para nos unirmos à terra,
apesar do desalento, da ausência daqueles
cuja nobreza amávamos, dos dias cheios de escuridão,
de todos os caminhos insalubres e misteriosos,
abertos para os nossos anseios; sim, apesar de tudo,
uma forma de beleza afasta o sudário
das nossas almas sombrias. Assim é o sol, a lua,
as antigas ou novas árvores cuja bênção faz germinar
a sombra sobre os humildes rebanhos; os narcisos
e o mundo verdejante que os cerca; e os límpidos rios
que para si criam um dossel de frescura
durante as estações ardentes; os silvados do bosque
enriquecidos pelo belo, nascente esplendor das rosas;
e, também, a magnificência do destino
que imaginamos para os mortos poderosos;
e as histórias encantadoras que lemos ou escutamos:
fonte inesgotável duma imortal bebida,
que vem do limiar do céu e para nós se derrama.
    
E não é apenas durante algumas horas breves
que ficamos presos a estas essências; assim como as árvores
murmurando à volta dum templo logo se tornam
tão amadas como o próprio templo, também a lua
e a paixão da poesia, glórias inifinitas, tantas vezes
nos assombram, até serem uma luz vivificadora
para a alma, e tão estreitamente nos cingem
que, fique a brilhar o sol ou se apaguem os céus,
para sempre hão-de existir em nós, ou morreremos.
    
John Keats, “A thing of beauty is a joy for ever”
Tradução de Fernando Guimarães
Poesia Romântica Inglesa, Relógio D'Água, 1992
     
    
Morgan Library: manuscrito de “A thing of beauty is a joy for ever”, ENDYMION: A POETIC ROMANCE, John Keats 


    [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/08/keats.aspx]

terça-feira, 1 de junho de 2010

LOUISE BOURGEOIS & HILDA HILST (OU AS “OBSCENAS SENHORAS D”)





Hilda Hilst
Louise Bourgeois

(Paris, 1911 - Nova Iorque, 2010)

Mapplethorpe Gallery Photo

(São Paulo, 1930 - 2004)
    




eu quero ficar
que se deite aqui e sinta comigo os murmúrios, palavras que deslizam numa teia
   
  
São Paulo, Massao Ohno/Roswitha Kempf/Editores, 1982
    
   
    
Louise Bourgeois, ARANHA, 1997 
Louise Bourgeois, Spider, 1997
   
  
  
  
  
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
   
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.   
Que este amor só me veja de partida.
   
  
Hilda HilstCantares do sem nome e de partidas
São Paulo, Massao Ohno, 1995
Disponível em: https://musadopoeta.files.wordpress.com/2016/01/poesia-completa-hilda-hilst.pdf
   
   
   
   

Louise Bourgeois, A FAMÍLIA, 2008   
Louise Bourgeois, The Family, 2008
   
   
   
Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
   
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas.
   
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.
    
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
    
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.
   
   

    
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/01/Bourgeois_2600_Hilst.aspx]

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quinta-feira, 27 de maio de 2010

ANTERO

    
      
ANTERO
    
O reino que procuro é perdido
e vago, sombra de um sonho inquieto
em que me invento e me desfaço.
Ilhas que foram minhas, as despeço
    
por sobra de matéria e de concreto
 – estorvo de lava, sal, um sol finito
ferindo o puro brilho da Ideia.
Ao rosto que desenho sobre o vidro
    
responde um outro de perfil incerto
– anjo, demónio, cavaleiro ou morte.
E, neste jogo a que me entrego e lanço,
    
um fogo me consome em seu amplexo:
fosse eu como os demais, suor e sangue
e sexo!
    
Urbano Bettencourt
Antero (com desenhos de Alberto Péssimo)
Arganil, Editorial Moura Pinto, 2006
            
    
     
    
          
Colecção Antero de Quental (BNP)
    
     
      
                
      
         
        
O COMBOIO INEXISTENTE
       
Quando acabou de arrumar a bagagem, modesta, Antero sentou-se. Era o único passageiro do compartimento, mas este seria, seguramente, um luxo efémero. Lá fora, uma chuva miúda erguia uma cortina de poeira, através da qual uma luz tímida se infiltrava. Para lá dela pressentia-se talvez a extensão rumorosa do mar nesse início de Setembro. E perpassava em tudo um difuso sentimento de abandono e de perda, uma nostalgia sem razão aparente. Ou talvez a sua razão única e suficiente fosse precisamente o facto de alguém entrar num comboio e preparar-se para partir; neste caso, qualquer estação seria sempre um lugar de melancolia. Mas também isso não era assunto definitivo. Não estava ele ali, pronto a arrancar e levado por um projecto optimista que o enchia de esperança no futuro e nos trabalhadores da sua ilha?

Na plataforma em frente, havia agora uma agitação mais acentuada, os passageiros cruzavam-se desordenadamente, nalguns casos as malas chocavam entre si e o som que provocavam esbatia-se contra o gesto e o olhar irritado de quem se sentia perturbado na sua marcha. Um novo passageiro entrou no compartimento. Deixou no ar uma saudação esquiva e sentou-se também, mergulhando na leitura do jornal. Antero pôde, por isso, reparar nos seus olhos claros sobre um rosto oblongo e no tom ruivo da barba e dos cabelos crespos. Traços não muito vulgares a sul, antes fariam pensar num remoto parentesco flamengo. Mas a associação talvez fosse uma simples consequência das indagações que desenvolvia sobre a própria ascendência.

Não esperava grande troca de palavras com o homem diante de si, um pouco à esquerda. O Castelo Branco gostava de repetir que o comboio viera combinar o desfrute da paisagem com o gosto da conversação. Mas a paisagem em si mesma não comovia Antero por aí além; melhor dizendo, só o comovia enquanto objecto já transfigurado pela imaginação lírica. E, quanto a conversas, sentiu de súbito uma saudade imensa e funda do Castelo Branco. Precisava tanto de tê-lo ao seu lado naquele momento, com a têmpera de combatente e a força do coração que lhe davam ânimo e fulgor, quando ele, Antero, se via frente a frente com a realidade. Que falta lhe fazia o Castelo Branco! Só ele lhe preenchia o vazio de senso prático e sabia traçar os rumos concretos para as suas construções abstractas; só no seu ombro encontrava apoio, quando em redor todos os mundos ruíam em cadeia. Um ligeiro soluço marcou o arranque do comboio, depois um andamento hesitante e, finalmente, a marcha normalizada. As imagens do exterior deslizavam sobre a janela como o cenário de um sonho que ele próprio tivesse inventado.

O desconhecido esboçou, então, uma tentativa de comunicação, com umas frases entrecortadas e quase em surdina. E deixou no ar um nome, de que Antero apenas reteve o extremo final, Del Giudice. Sentiu um ligeiro estremecimento interior, a sonoridade fê-lo pensar em Garibaldi... o velho sonho de alistar-se no seu exército. Onde isso já ia... Mas decorreu ainda algum tempo antes que um e outro pudessem chegar ao ponto de falar dos motivos ou acasos da vida que os tinham feito encontrar-se no compartimento de um comboio.

- Vou à procura de uma mulher que saiu de casa atrás de um verso de treze sílabas - declarou Del Giudice, enquanto tentava surpreender no rosto do outro o efeito dessa confissão.

- Não creio que seja uma boa razão para viajar.

- A da mulher ou a minha?

- A sua. Perseguir um verso pode ser um projecto de vida, mesmo que se trate de um verso funesto. Mas lançar-se no encalço de uma mulher por causa disso já me parece intriga de novela de mistério.

E se fosse mesmo? E se um homem decidisse refazer no terreno o roteiro de uma personagem, deixando-se guiar por ela, tentando decifrar aquilo que o seu olhar e o do perseguidor tinham entrevisto? Mesmo sabendo que, no final, a mulher continuará por encontrar.

- O desfecho seria decepcionante.

- Não acho. A própria viagem já seria uma conquista. - E depois de uma breve hesitação: - Mas continuo sem saber que razão ou razões o levam a partir...

- Observações, apenas. Quero avaliar as possibilidades do comboio como meio de propaganda e difusão da revolução. Esta formidável invenção dos tempos modernos poderá contribuir para o esclarecimento e a libertação do povo proletário. Não esqueço que foi através do comboio que a minha geração tomou contacto com as preocupações intelectuais e sociais do nosso tempo. Gostaria de lançar esse projecto na minha ilha.

- Não deixa de ser uma utilização extravagante do comboio.

- Já imaginou o que seria percorrer de comboio uma ilha industriosa como a minha, promovendo sessões com os trabalhadores, levando-lhes as luzes da revolução e fazendo-os aderir às grandes causas e noções de hoje?

E eles estarão dispostos a isso? No final, o desfecho da sua viagem futura talvez venha a ser mais decepcionante que o meu. Vou atrás de uma mulher que existe, e para sempre, desde o momento em que um autor lhe deu vida pela escrita. Você vai atrás de uma vaga figura possível, a revolução. Uma figura tão abstracta como os deuses que você rejeita e para os quais encontrou um sucedâneo que é a sua cópia.

- Aí é que se engana. Com o empenhamento dos espíritos esclarecidos e a preparação da consciência pública, a revolução será uma realidade concreta, transformando a sociedade no ponto de vista político, económico e religioso!

- Gostava de partilhar desse entusiasmo, mas não é fácil. Aliás, já vi escrito em qualquer lado que uma única revolução é possível ou antes inevitável em Portugal: é a revolução anárquica da fome, mas essa não precisa que ninguém a promova, nem pode ser matéria de programas políticos.

- Todos passamos por momentos de desânimo - condescendeu Antero, por fim, antes de os dois se remeterem de novo ao silêncio.

O comboio atravessava agora uma zona de neblina que reduzia o mundo exterior a uma tela cinzenta, sobre a qual um perfil de fantasma irrompia, a espaços, para logo se esfumar na voragem da velocidade. O rumor regular dos rodados produzia no compartimento uma atmosfera de bolha submersa, incapaz de subir à superfície. Sem o saberem, avançavam ambos como se a noite fosse um destino.
      
Urbano Bettencourt, “O comboio inexistente”
in Comboio com Asas (org. Antonio Fournier)
Funchal, Funchal 500 Anos, 2008.
     
     
Manuel Urbano Bettencourt Machado (1949), professor, escritor, poeta. É natural da ilha do Pico e reside em Ponta Delgada
        


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  Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


       

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/05/27/Antero.aspx]