sexta-feira, 20 de setembro de 2013

AI FLORES, AI FLORES DO VERDE PINO (D. Dinis)


              
             

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Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
              Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
              Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
              Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi 'á jurado!
              Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu bem vos digo que é san'e vivo:
              Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu bem vos digo que é viv'e sano:
              Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é san'e vivo
E seera vosc'ant'o prazo saído:
              Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado:
              Ai Deus, e u é?


           
D. Dinis (CV 171, CBN 533)
           
              
Glossário:
v. 1 ‑ pino: pinheiro.
v. 3 – u é: onde está?
v. 8 ‑ do que pôs comigo: sobre aquilo que combinou comigo.
v. 14 ‑ sano: saudável, são.
v. 20 ‑ seera vosc’ant’o prazo saído: estará convosco antes de terminar o prazo.
           
           




           
           
VERSÕES MUSICAIS
                        

Originais
Desconhecidas

       
Contrafactum

Ai flores, ai flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de José Augusto Alegria, Pedro Caldeira Cabral

Ay flores, Ay flores do verde pino 
Versão de José Augusto Alegria

Flores de verde pino      versão audio disponível
Versão de José Augusto Alegria, Mondeguinas - Tuna Feminina da Universidade de Coimbra
       
Composição/Recriação moderna

Ai flores de verde pino 
Versão de Maria de Lourdes Martins

Ai flores, ai flores, do verde pino       versão audio disponível
Versão de Victor Macedo Pinto

Ai flores! Ai flores!      versão audio disponível
Versão de Miguel Carneiro

Ai flores do verde pinho      versão audio disponível
Versão de Pedro Barroso

Ai, flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de Amancio Prada

Flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de Marta Dias

Ai flores do verde pinho      versão audio disponível
Versão de José Mário Branco

Ai, flores do verde pino 
Versão de José Carlos Godinho

Ay Deus, e hu é?      versão audio disponível
Versão de Barahúnda

Cantigas de Amigo: Ai flores 
Versão de Ivan Moody

Ai flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de Miguel Carneiro, Choral Polyphonico João Rodrigues de Deus

Linhagem 
Versão de Eurico Carrapatoso

          


QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO SOBRE O POEMA
              
Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens.
1. Delimite as partes que compõem o texto, justificando a sua resposta.
2. A questão da fidelidade do «amigo» percorre a cantiga.
Explicite o modo como é tratada por cada uma das vozes presentes no texto.
3. Analise o papel desempenhado pelas «flores do verde pino».
4. Indique três características temáticas do poema que contribuem para a sua inserção no género das cantigas de amigo.
              
              
Cenários de resposta:
1. A estrutura bipartida da cantiga relaciona-se com o carácter dialógico da mesma, uma vez que, nas quatro primeiras estrofes (vv. 1-12), a donzela interroga a Natureza sobre o paradeiro do «amigo», e, nas quatro restantes estrofes (vv.13-24), «as flores do verde pino» respondem à sua interpelação.
2. O «amigo» é referido pela donzela como tendo mentido, faltando a um juramento (v. 11), ou a um compromisso (v. 8). A essa infidelidade, que é imaginada pela própria ânsia e saudade da donzela, é contraposta, pela voz atribuída às «flores do verde pino», uma atitude de fidelidade, pois, segundo essa voz afirma, ele voltará até mesmo antes do prazo combinado
3. A donzela sente temor pela sorte do «amigo», de quem não tem notícias, e cria um interlocutor fictício para desabafar. A esse confidente imaginado – símbolo do seu próprio amor – confessa a sua saudade e inquietação, e dele ouve a seguir o que tanto deseja ouvir: que o amigo está bem e que voltará em breve. Essa personificação benfazeja das «flores do verde pino» estabelece a comunhão da donzela com a Natureza.
4. Na resposta, podem ser indicadas, entre outras, [as] seguintes características:
– representação de um sujeito poético feminino, como falante e como ouvinte;
– lugar central dado à referência ao namorado («amigo», «amado»);
– expressão, por parte da donzela, do desejo de um encontro amoroso;
– interpelação da Natureza como confidente.
           
Exame Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 10.º e 11.º Anos de Escolaridade, Prova 734/1.ª Fase, Lisboa, Gabinete de Avaliação Educacional, 2009.
             
         
ANÁLISE DE UM POEMA MEDIEVAL
               
Elabore um comentário da composição, orientando-se pelos seguintes tópicos:
              
-          Apresentação (identificação; género; presença nos cancioneiros; autor)
-          Estrutura externa/ versificação;
-          Tema;
-          Assunto;
-          Estrutura interna;
-          Análise interpretativa;
-          Simbologia;
-          Dimensão histórico-cultural (coordenadas espacial e/ou temporal);
-          Conclusão.
         
          
Cenário de resposta:
        
«Ai flores, ai flores do verde pino» é uma cantiga de amigo da autoria de D. Dinis, presente nos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional com os números 171 e 568, respetivamente. 
Do ponto de vista formal, esta cantiga paralelística perfeita, dialogada, é constituída por oito coplas , cada copla tem um dístico de decassílabos graves (1ª parte) e hendecassílabos graves (2ª parte) de rima monórrima e um refrão monóstico pentassílabo agudo. O esquema rimático é: aaB. 
Nesta composição é abordado o tema da saudade; quanto ao assunto, cheia de saudade do seu amigo que se demora a menina interpela as flores, que a tranquilizam. 
Na primeira parte (coblas I a IV) a donzela traduz o seu estado de espírito e a saudade pelo amigo. Aqui, ela entra em diálogo caracterizando-se indiretamente como ansiosa («Se sabedes novas do meu amigo/amado», «Ai Deus, e u é?») e indicando que o namorado está ausente; zangada («Aquel que mentiu do que pôs comigo/mh’á jurado») e, ele, diretamente caracterizado, mentiroso. 
Na segunda parte (coblas V a VIII) a Natureza, personificada e humanizada, tranquiliza a donzela. As flores respondem-lhe com a revelação de que o amigo está de saúde («E eu bem vos digo que é viv’e sano/san’e vivo») e comparecerá de acordo com o combinado («E será vosc’ant’o prazo saído/passado»).

No entanto, acaba a cantiga e ela continua preocupada como confere a própria estrutura paralelística cuja técnica do leixa-prém e a manutenção do refrão adensam o clima tenso transmitido na cantiga. 
Se quisermos fazer uma leitura do vocabulário utilizado e da simbologia para que nos pode remeter, é possível descobrir os intervenientes da relação amorosa. Assim: «as flores do verde pino» constituem uma invenção poética cujo referente será, sim, a flor do pinheiro, mas também e sobretudo a «flor del bels pis» (da poesia provençal, occitânica), isto é, o símbolo do amor invencível. Portanto, às flores se associa o campo lexical de beleza, delicadeza, sensibilidade, feminilidade e aroma e a este campo lexical se liga a imagem que existe na poesia trovadoresca da donzela. O pinheiro, pela força, apoio, segurança, robustez, masculinidade, braços (ramos) simbolizará o amigo. A relação entre os dois jovens, cheios de esperança, é transposta para a ideia de verde, que significa imaturidade, juventude e esperança. 
As coordenadas espácio-temporais que extraímos deste poema remetem-nos para os primórdios da nacionalidade, época do estabelecimento das fronteiras territoriais, quer pelo uso dos vocábulos «san’e vivo», quer pela autoria do texto. O ambiente é rural.

A concluir, D. Dinis apanhou nesta composição de inspiração popular uma característica tipicamente portuguesa, a saudade, podendo mesmo considerar-se um tema eminentemente nacional, pois reflete condições em que se formou o nosso país: a reconquista cristã.
         
José Carreiro, Ponta Delgada, 2002-01-07.
         
            
DOM DINIS O REI-TROVADOR
            
Dom Dinis, nascido em 1261 e tendo data de falecimento em 1365, é o rei que assume o poder logo após o Estado de Portugal ter sido consolidado por seu pai o rei Afonso III, teve um reinado um tanto diferente do Demais.
Sua preocupação já não era tanto a conquista de terras, mesmo que nesse período o sul peninsular ainda estivesse sob domínio dos mouros e por vezes ou outra, fosse necessário se ocupar de algumas querelas políticas, eclesiásticas e conflitos pessoais com seu irmão que pretendia o trono, seu interesse estava direcionado à cultura de sua nação.
Dom Dinis chegou a receber o cognome de Lavrador, por ter se destacado ao aplicar em plantações dos “imensos pinhais de Leiria” como fala João Ameal em Breve Resumo da História de Portugal, página 23. Tinha também os olhos voltados para o Comércio e a Marinha, contudo seus cuidados foram além desses fatos. O rei trovador foi responsável pela substituição do latim bárbaro pela língua vulgar portuguesa na redação de atos e processos judiciais e criou o “estudo geral” que derivou a primeira universidade, a Universidade de Lisboa transferida em 1308 para Coimbra.
Não foi sem razão que D. Dinis foi considerado o “príncipe dos trovadores” (Do Cancioneiro de D. Dinis, p.11), bisneto de Sancho I, o mais antigo trovador português e neto de Afonso X, o Sábio de Castela, autor das Cantigas de Santa Maria, possuía nas veias a arte poética.
Sua produção artística soma o número de setenta e seis cantigas de amor, cinquenta e duas cantigas de amigo e dez de escárnio e maldizer, essas também se diferenciam das demais cantigas de escárnio dos outros trovadores, a linguagem do rei é mais branda e ameniza as críticas com pequenas insinuações ao invés do despudor nas palavras usadas.
           
A lírica trovadoresca galego-potuguesa e suas características nas cantigas de D. DinisMonografia apresentada por Karin Feldkircher à disciplina Orientação Monográfica II em Letras, como requisito parcial à conclusão do Curso de Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Sandmann. Curitiba, 2006.
            
          


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
      
  Poesia trovadoresca galego-portuguesa: síntese didática

 Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Littera: a presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais).

Programa televisivo "Neste lugar onde... a poesia dos trovadores" da série Um mais um igual a um. Natália Correia, Carlos Alberto Vida, RTP, 1981.
       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/20/ai.flores.do.verde.pino.aspx]

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

CANTIGA DE AMIGO (Adriano Correia de Oliveira)


 
         
           
CANTIGA DE AMIGO


Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar:

Que ao que levou meu amigo
Há de a noite encarcerar
Dentro de fel e vinagre
Sua boca há de fechar.

Com sete chaves de treva
E fechaduras de neve
Que ao que levou meu amigo
Há de a febre devorar.

Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar:

Sobre a parede mais fria
Suas tripas há de o dia
Pendurar em argolas de veneno
Sua carne há de queimar.

Com carvões de acetileno
Mai-lo sangue que há de arder
Que ao que levou meu amigo
Há de a noite decepar
Há de o dia ver morrer.

Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar:

Sobre a parede mais fria
Suas tripas há de o dia
Pendurar em argolas de veneno
Sua carne há de queimar
Com carvões de acetileno.

Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar.
            
Adriano Correia de Oliveira, Gente de aqui e de agora (álbum musical), 1971




            
Através da recuperação e glosa do verso “se sabedes novas do meu amigo”Adriano Correia de Oliveira entra num jogo intertextual com a cantiga de amigo Ai flores, ai flores do verde pino”, do rei-trovador D. Dinis.

Repare-se no recurso a alguns processos formais próprios da poesia trovadoresca medieval, tais como: o verso curto, uso de arcaísmos (“sabedes”,“Mai-lo”); o refrão composto apenas por um dístico; o paralelismo estrutural com recurso à transposição de alguns versos entre estrofes (alteração da ordem). É possível também reconhecer ecos intertextuais do romanceiro popular português, a propósito do uso recorrente da construção com o verbo havercomo auxiliar, seguido da preposição de e de um verbo no infinitivo:


“Dentro de fel e vinagre
Sua boca há de fechar.”


“Pendurar em argolas de veneno
Sua carne há de queimar.”
            


(“Cantiga de Amigo”, A. C. de Oliveira)


A mesa donde comeres,
logo se há de escachar;
e a cama donde dormires,
em fogo s’há de abrasar.”
            


(romance tradicional “Floresvento”)
           
Detetam-se também algumas coincidências temáticas com o cancioneiro de amigo: o uso do distintivo de género quer no título quer no primeiro verso (“amigo”); o tema da separação e espera ansiosa por parte da amiga; a intuição da figura do mensageiro a quem a amiga transmite os seus recados e de quem espera receber notícias.
Aliadas a estas marcas trovadorescas, encontramos a mensagem ideológica deAdriano Correia de Oliveira, através da crítica e denúncia da repressão do regime que atua pela noite (alusão metafórica do próprio regime e da PIDE) por meio de detenções (“encarcerar”, “Com sete chaves de treva / E fechaduras de neve”, “parede mais fria”, “argolas”, “carvões de acetileno”, “decepar”, “queimar”).
Deste modo, Adriano Correia de Oliveira, à semelhança do que faz, por exemplo,Manuel Alegre no poema Como ouvi Linda cantar por seu amigo José”, utiliza o motivo frequente do cancioneiro de amigo para adaptá-lo à situação político-social de Portugal na época em que foi redigido o texto, intervindo para denunciar e expor as atrocidades perpetradas por uma ditadura desumana e desumanizante.
             
           
Bibliografia / sugestões de leitura:
           
Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Litteraa presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais).



Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena,Sílvia Marisa dos Santos Almeida CunhaUniversidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008.


Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/19/gente.de.aqui.e.de.agora-.aspx]

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

CRÓNICA DE ABRIL (SEGUNDO FERNÃO LOPES)


  


                
CRÓNICA DE ABRIL
(Segundo Fernão Lopes)

A rosa a espada o Tempo a lua cheia
entre Abril e Abril memória e ato
este oculto invisível coração.
E a trote dos cavalos os blindados
(quem me acorda no meio do meu sono?)
«Lisboa está tomada». A rosa e a espada.
Subitamente às três da madrugada.

Andando o Povo levantado andando
Álvaro Pais de rua em rua: «
Acudam
ao Mestre cá ele é filho d
El-rei. D.
Pedro
». Entre Abril e Abril. Memória e ato.
Verás florir as armas: lua cheia.

Saiu de Santarém o Capitão
já o Mestre matou o Conde Andeiro
e Álvaro Pais nas ruas cavalgando:
Matam o Mestre nos Paços da Rainha.

E o microfone às três e tal. E as gentes
que isto ouviram saíram pelas ruas
a ver que coisa era. E começando
a falar uns com outros começavam
a tomar armas. 
Aqui Posto de
Comando
. E soavam vozes de arruído
pela cidade. E assim como viúva
que rei não tinha se moveram todos
com mão armada. E Álvaro Pais gritando:

Acudamos ao Mestre meus amigos
Acudamos que o matam porquê.


E o rouxinol cantou. Ouvi dizer
que na torre soaram badaladas.
O doce cheiro a terra. O respirar
da amada. «E sobre cada povo (Nietzche)
está suspensa uma tábua de valores».
Verás florir o Tempo. A rosa e a espada.
Nel mezzo del camin di nostra vita.
Subitamente às três da madrugada.

E começava a gente de juntar-se
e tanta que era estranha de se ver.
Não cabiam nas ruas principais
cada um desejando ser primeiro
e todos feitos d
um só coração.

Não sei se a História tem um fio se
não tem. Mas já de Santarém partiu
o Capitão. De negro vem vestido
em cima da Chaimite. Ouves? É o trote
das lagartas. Cavalos e cavalos.

O exército da noite e seus blindados.
Ó com quanto cuidado e diligência
escrever verdade sem outra mistura.

Andando o Povo levantando andando
um Major aos seus homens perguntando:
Adere ou não adere? É só. Mais nada.
E o segundo-sargento perfilando-se:
Há vinte anos que espero este momento.

Verás florir o Tempo. E as armas de-
sabrochadas: às três da madrugada.

Soem às vezes altos feitos ter
começo por pessoas cujo azo
nenhum povo podia imaginar.
E pois assim aveio que em Lisboa
um cidadão chamado Álvaro Pais:

Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
Mas isto já ninguém o queria crer.

Continuidade. Descontinuidade.
E o que é rutura? E a História? Um caos de acasos.
Kairos (dizem os gregos). Conjunturas
favoráveis.
                     Verás florir as armas.

E já o Capitão entra na Praça
andando o Povo levantado andando
apoiando a coluna quando avança
para cercar o Carmo às doze e trinta.

Traziam uns carqueja e outros lenha
alguns pediam escadas e bradavam
que viesse lume para porem fogo
e queimarem o traidor e a aleivosa.

E em tudo isto era o tumulto assim
tão grande que uns aos outros não se ouviam
e não determinavam coisa alguma.

E o trote dos cavalos os blindados.
(Quem te acorda no meio do teu sono?)
Verás florir o Tempo: rosa e espada.
Subitamente às três da madrugada.

De cortinas corridas está o Carmo.
Da torre da Chaimite uma rajada
saltam vidros e cal da frontaria
e o tempo vai correndo sem resposta.

E não parava gente de juntar-se.

Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
Se está vivo mostrai-o e vê-lo-emos.

E a gente não parava de juntar-se.
Quem fechou estas portas? perguntavam.

E já o blindado toma posição.
O Capitão olha o relógio e conta
e antes que diga três irrompem vivas.

Verás florir o Tempo: espada e rosa.

Já saiu a cavalo Álvaro Pais
já o Mestre matou o Conde Andeiro
está caído no Paço trespassado
ó Lisboa prezada venham ver
o Capitão em cima do blindado
Arraial Arraial. E então o Mestre
assomado à varanda a todos diz:

Amigos sossegai: estou vivo e são.
E o rouxinol cantou. Olhai as armas
desabrochadas. Cravo a cravo (ouvi
dizer). Andando o Povo levantado.

E não vereis na crónica senão
(sem falsidade) a certidão da História.
              
Manuel Alegre, Atlântico, 1981
             
             
Não deve haver área da vida portuguesa recente que não se caracterize e defina pela agora já clássica forma de “antes” ou “depois” do 25 de Abril. Reflexões contemporâneas no âmbito da sociologia, história, política, literatura e tantos outros campos de estudo utilizam esta barreira temporal como metodologia inicial de abordagem. Daí que, como Maria de Lourdes Pintasilgo assinalou na sua “Deambulação pelo Espaço/ Tempo do 25 de Abril,” possamos apontar o 25 de Abril de 1974 como um momento fundador, ou seja, como que um ato inicial de todas as histórias possíveis num sentido individual e coletivo. Esta visão do 25 de Abril como um momento novo e fecundo na sua novidade é aliás corroborada e sintonizada com a nossa história coletiva em textos como Ora Esguardae, de Olga Gonçalves ou no poema de Manuel Alegre “Crónica de Abril”, escrito pela pena de Fernão Lopes, com Álvaro Pais nos Paços da Rainha e Salgueiro Maia no Largo do Carmo lado a lado. Por seu turno em Ora Esguardae, título retirado da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, abre-se “(…) uma dimensão ritual que coloca o tempo-origem visado primordialmente em Ora Esguardae‑ o 25 de Abril de 1974 ‑ no horizonte arquetípico da nova dinastia inaugurada por D. João I, horizonte que, por sua vez, é representificação mítica de uma nova fundação da nacionalidade” (Luís Mourão, Um Romance de Impoder ‑ a paragem da história na ficção portuguesa contemporânea. Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1996, p. 100). Entendia-se assim o 25 de Abril como o momento-símbolo de início de um novo tempo na história de Portugal, em que todos os sonhos, frustrações passadas e ansiedades seriam compensados.
 in Portuguese Literary & Cultural Studies 1 ‑ Borders Fall 1998
             
             

   
             
Atlântico, de 1981, é um divisor de águas em sua obra. Se antes, em sua poética, a Memória era possuída pelos fantasmas da Ditadura, a partir daí a História poderá ser reencontrada em sua plenitude e destituída dos referenciais míticos sustentados pelo Estado Novo.
[…]
Em Atlântico a História emerge como reconstrução. A Memória, perdida, comprometida, durante o século XX, com os aparelhos ideológicos do Estado salazarista e alimentada por uma História que tinha a ruína como fundamento, revertida através da indicação explícita do real que era encoberto pelo mito, passa, agora, a indiciar que a História precisa ser recontada, necessita ter seus mitos redimensionados. No projeto poético de Manuel Alegre, Atlântico dará a definitiva forma que os mitos deveriam tomar nessa nova perspectiva a partir da realidade após a Revolução de 25 de Abril.
É preciso, entretanto, antes de se avançar, reafirmar que o projeto de Manuel Alegre é derivado de uma tensão entre Memória e poesia. Se for retomado o processo poético desenvolvido até Atlântico, está-se diante de uma busca clara de uma redefinição da função da Memória na sociedade portuguesa que atravessa o momento histórico da guerra na África, o fim do fascismo, a descolonização e a democracia. A dimensão atlântica pretendida, como era de se esperar, não segue a anterior vocação atlântica da perspectiva salazarista, nem daquela pensada na Comunidade Lusíada por António Spínola (SPÍNOLA, 1974). Há um deslocamento temático por uma geografia definida pela dispersão da língua portuguesa no mundo – a publicação de Nova do Achamento (1976), remontando ao momento da Descoberta do Brasil, pela releitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, é tomada como uma primeira referência de refundição do universo da Língua Portuguesa e da relação que o Portugal democrático deve manter com a terra americana, a África comparece como o lugar da emergência de uma nova História para Portugal. Situar o Oceano Atlântico como o espaço geográfico português por excelência não é mais a retomada das glórias imperiais, mas é, sobretudo, o redimensionamento daquela História que centrava Portugal numa vocação atlântica ufanista de um novo império. Atlântico redimensiona a condição histórica portuguesa, dos atos de bravura às trágicas derrotas. Com isso, percebe-se que um diálogo intertextual claro com as duas obras anteriores da série literária portuguesa que buscaram dar conta da relação direta entre Portugal e o mar: Os Lusíadas Mensagem.Questionar a ordem poética, ou, melhor, problematizar a herança cultural e literária é a perspectiva de Atlântico.
[…]
A Memória individual faz da História uma outra História em que passam a coexistir discursos além dos convencionados. A História dos manuais negada em Praça da Canção e em O Canto e as armas é, agora, outra – não basta mais ela negar os mitos, mas afirmá-los a partir do cotidiano individual. A História, assim, precisa ser tomada em sentido lírico, já que somente pela Memória individual poderia advir a dimensão pretendida na alegoria da reconstrução da Torre do Tombo.
A condição do lírico que estabelece a pluralidade de vozes comparece definitivamente. Se, na obra anterior a Atlântico, a intertextualidade estava a serviço de uma problematização e redimensionamento do épico, em Atlântico, progressivamente, por efeitos da proposição do poema inicial, “A lição do arquiteto Manuel da Maia”, a condição épica é degradada por efeito do lírico. O poeta estabelece a dialética pretendia por Benjamin entre Memória e História, através da implosão do sujeito épico. Não há mais unidade épica a ser seguida para Portugal.
O lírico pode deslocar-se, assim, da interrogação à História para o redimensionamento da Memória. O sujeito poético pode tomar uma nova Memória diversa daquela fora posta em função do evento de Alcácer-Quibir. A História que se compreende aqui é uma construção lírica que não está em função mais de um poder único e centralizador. Há que se perceber que a História se relativiza na distância que se tem dos seus instantes de perigo, como dissera Walter Benjamin, “cada segundo era a porta estreita pela qual poderia entrar o Messias” (1987, p. 232), e o Messias só poderia entrar quando a História tivesse sentido e seu continuum tivesse sido explodido, não se caracterizando mais pelo tempo homogêneo e vazio. Teria sido o 25 de Abril este momento? O poema “Crónica de Abril (segundo Fernão Lopes)” busca responder tal provocação. Aqui, a Revolução de Avis, de 1383, é aproximada a 1974:
A rosa a espada o tempo a lua cheia
entre Abril e Abril memória e acto
este oculto invisível coração.
E o trote dos cavalos os blindados
(quem me acorda no meio do meu sono?)
“Lisboa está tomada”. A rosa e a espada.
Subitamente às três da madrugada. (...)
Continuidade. Descontinuidade.
E o que é ruptura ? E a História? Um caos de acasos.
Kairos (dizem os gregos). Conjunturas
favoráveis. (...)
E não vereis na crónica senão
(sem falsidade) a certidão da História

É explícita a intertextualidade com Fernão Lopes, já indicada pelo subtítulo do poema – continuidade, descontinuidade, de Abril a Abril, o poeta retoma a movimentação da arraia miúda dos lisboetas. A ação histórica que implode o seu próprio continuum é uma ação que a poesia transforma em coletiva. Com a certidão da História, o atestado e o testemunho fazem uma nova Memória ressurgir. O coletivo não provém da retomada do épico, mas de uma recuperação do atestado dado pelo testemunho do guardião da Memória, o poeta. Daí confluir os tempos para que oMessias penetre, e se dê a reversão do tempo vazio e homogêneo em dinâmica temporal, em História. O lírico é reafirmado, reverenciando-se a Memória, guardiã da experiência, no sentido de Walter Benjamin. O poeta canta a História, em seus múltiplos aspectos, em seus acertos e desacertos, em suas glórias e quedas. O fluxo do Tempo, como experiência histórica, volta a seguir da Memória para a História, não pelo reverso como operara a Ditadura: “entre Abril e Abril memória e acto/ este oculto invisível coração (...) Um caos de acasos...”este fluxo seria capaz de deixar que o tempo passasse como experimentação, como forma de recoletivização da experiência histórica. A História é compartilhada entre tantos, ela não é mais o objeto detido por uma classe, por um ponto de vista, por um sentido de permanência – é, enfim, coletiva. Será por isso, no poema “Pais em inho”, que o poeta radicalizará a dimensão histórica portuguesa, nas suas contradições. A exaltação histórica dá lugar à ira, ao reconhecimento do tamanho e das características de um país de contrastes em que otrauma não terá sido superado, como afirmara Eduardo Lourenço: “Chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constânciao país habitável de todos, sem esperar do eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal” (Eduardo Lourenço, O labirinto da saudadepsicanálise mítica do destino português. 4.ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 47).
Mário César Lugarinho, 
 Manaus, AM: UEA Edições, 2012, pp. 79-81, 87-89
          
            
             
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  Comparar a "Crónica de D. João I", de Fernão Lopes com a "Crónica de Abril", de Manuel Alegrevídeo da Escola Virtual, pela professora Helena Rangel

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                        

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/18/cronica.de.abril.aspx]