sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

PAISAGENS DE INVERNO II (Camilo Pessanha)


   Claude Monet, Impressão, nascer do sol, 1872
Claude Monet, Impressão, nascer do sol, 1872
       
       
PAISAGENS DE INVERNO
       
II
       
Passou o Outono já, já torna o frio...
— Outono de seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado...
— O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas do rio, 
Fugindo sob o meu olhar cansado, 
Para onde me levais meu vão cuidado? 
Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando, 
E, debaixo das águas fugidias, 
Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?
— E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...
Camilo Pessanha
   
   
  
Publicações anteriores:
 O Progresso, de Lamego, (16 de Fevereiro de 1895).
 Novidades, de Lisboa, (18 de Fevereiro de 1897):
 Centauro (Dezembro de 1916).
   

QUESTIONÁRIO

1. Sobre o Simbolismo, movimento ao qual é vinculado o poeta Camilo Pessanha, e o Impressionismo, movimento ao qual é associado o pintor Claude Monet, é INCORRETO afirmar que
A) por ser, no século XIX, o início do caminho artístico em direção à abstração, o Impressionismo, cujas figuras não devem ter nitidez e contornos absolutos, é considerado um dos primeiros marcos da Arte Moderna.
B) a arte simbolista valoriza o espiritual, o misterioso, o vago, o inconsciente, retomando, inclusive, a subjetividade, o misticismo e o individualismo caraterísticos do Romantismo.
C) no final do século XIX, a estética simbolista e seu espírito decadentista decretam a falência do Positivismo, do Cientificismo e do Naturalismo.
D) na tentativa de valorizar a sugestão, os sentimentos e as emoções, a arte simbolista utiliza com frequência as descrições pormenorizadas dos objetos.
E) para os impressionistas, o essencial não é retratar a realidade do objeto, mas, sim, a impressão que esse objeto produz.
      
2. A partir de Paisagens de Inverno II, poema simbolista português, é correto afirmar que
A) ao explorar o efeito sonoro das palavras, Camilo Pessanha restringe as possibilidades de interpretação das sensações dos leitores.
B) ao evidenciar a dor da perda feminina, Camilo Pessanha apresenta resquícios da temática da comiseração destacada pelo Realismo.
C) ao construir um texto utilizando a função emotiva da linguagem, Camilo Pessanha aproxima-se dos ideais da poesia moderna.
D) ao construir um texto hermético, Camilo Pessanha torna mais agradável e acessível a compreensão plena do texto.
E) ao trabalhar com imagens subjetivas, Camilo Pessanha desconecta a temática do poema do universo da realidade.
      
3. Considere as seguintes afirmações sobre as composições de Camilo Pessanha eClaude Monet:
 I. O texto literário e a pintura impressionista concedem destaque à relação de aflição e medo existente entre o homem e a natureza.
 II. O texto literário e a pintura impressionista retratam situações compostas pela somatória de conceitos objetivos e subjetivos.
 III. O texto literário e a pintura impressionista são compostos por uma estrutura e temática que ampliam a possibilidade interpretativa dos leitores.
      
Assinale a alternativa correta.
A) Estão corretas as alternativas I e II.
B) Estão corretas as alternativas I e III.
C) Estão corretas as alternativas II e III.
D) Todas as alternativas estão corretas.
E) Nenhuma das alternativas está correta.
      
4. Ao utilizar-se da natureza em Paisagens de Inverno II, Camilo Pessanha
A) sugere uma analogia entre a realidade oculta e a realidade aparente.
B) busca a simplicidade e o equilíbrio idealizado pela poesia greco-romana.
C) desloca a realidade para um ambiente bucólico e pastoril.
D) manifesta a aspereza e o rancor provenientes de sua perda amorosa.
E) estabelece uma relação mimética com as paisagens nacionais.
      
http://www.mackenzie.br/fileadmin/Decanato_Academico/Vestibular/2014_1o/Grupos__I_IV_V__VI_2014_1o_sem.pdf
       
       
TEXTOS DE APOIO
       
REALISMO E SIMBOLISMO EM CLEPSIDRA

Se se quisesse apontar um dos traços essenciais, talvez o mais significativo, da poesia de Camilo Pessanha, devia precisamente sublinhar-se esta alternância, que é mudança constante, de frases suspensas, invocações que instauram um clima de rêverieou de meditação nostálgica, e de frases interrogativas, em que se manifesta a vontade de compreender e a revolta. […]
No segundo poema de Paisagens de Inverno, que se inicia com a frase «Passou o Outono já, já torna o frio...», o segundo e o quarto versos aparecem como uma explicação do verso que os precede; mas a explicação, se precisa o sentido do verso precedente, é também um processo do intensificação, em que melhor se revela a obsessão contemplativa e a nostalgia do sujeito do poema: «Passou o outono já, já torna o frio…/ ‑ Outono de seu riso magoado./ Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado... /O sol, e as águas límpidas do rio» O último verso, sob a forma aparente de uma simples precisão ou explicação, repete na realidade, alargando-a, uma parte do terceiro verso (assim posta em destaque): a referência ao sol. Mas pode dizer-se o mesmo do segundo verso em relação ao primeiro.
A segunda quadra inicia-se com uma frase exclamativa («Águas claras do rio!»). Parte da mesma frase introduz a seguir uma interrogação que ocupa dois versos e meio. A quadra termina com outra pergunta, em que se faz referência directa ao «coração vazio» (expressão que substitui, tornando-as mais precisas, as referências ao «olhar cansado» e ao «vão cuidado», e em que se resume, afinal, o estado de espírito do sujeito do poema): «Águas claras do rio! Águas do rio, / Fugindo sob o meu olhar cansado,/ Para onde me levais meu vão cuidado? // Aonde vais, meu coração vazio?» O primeiro terceto começa por exprimir um desejo de que não está no entanto ausente a nostalgia nem o estado de rêverie contemplativo: «Ficai, cabelos dela, flutuando, / E, debaixo das águas fugidias,/ Os seus olhos abertos e cismando...» A pergunta que inicia o último terceto restabelece o clima da segunda quadra, retoma a mesma obsessão. Mas é de novo a contemplação nostálgica, o sentimento de impotência, que transparece na parte final do poema: «Onde ides a correr, melancolias? /‑ E refractadas, longamente ondeando, / As suas mãos translúcidas e frias…»
[…]
No segundo soneto de “Paisagens de inverno” reencontramos a alusão simbólica às estações do ano. E a alternância entre a realidade exterior (referida porque faz parte da experiência individual) e a realidade interior ‑ alternância das referências ao mundo enquanto tal e das referências à realidade individual ‑ continua a ser o processo de composição utilizado. O poema inicia-se neste caso com uma alusão ao outono que «passou já»: «Passou o outono já, já torna o frio...». Até aqui nada de pessoal foi ainda dito, a situação evocada é comum a todos os homens que vivem no mesmo lugar. Mas em seguida o poeta evoca o «Outono de seu riso magoado», transformando a evocação de ordem geral do primeiro verso em evocação pessoal ‑ e a posteriori o primeiro verso acaba por só encontrar a sua razão de ser nesta evocação subjetiva que lhe restringe o sentido e que já tinha condicionado, certamente, a alusão ao outono no primeiro verso. A passagem da realidade exterior e de ordem geral à realidade interior e de ordem subjetiva é também, paralelamente, a passagem do simples realismo ao simbolismo, pois o outono volta a ser aqui, mais do que uma estação do ano, um tempo que assinala o declínio, a morte ou a perda da amada. A alusão ao inverno, também simbólica, aparece como o prolongamento natural da alusão ao outono; e o sol, «oblíquo» e «gelado», bem como as águas do rio (elas também álgidas», e «geladas», supomos, e não apenas «límpidas» continuam a ser símbolos em que se representa, através da alusão à realidade exterior, uma situação particular e os sentimentos do sujeito do poema. A ideia de «frio» domina toda a quadra e acentua-se com a passagem do outono ao inverno ‑ mas este frio, se é exterior, é essencialmente um «frio» interior, símbolo da solidão e infelicidade atuais.
Que as «águas do rio» permitam em seguida ao sujeito do poema falar do seu «olhar cansado», dos seus «vãos cuidados», do seu «coração vazio», continua a demonstrar que a realidade exterior é sempre um ponto de partida e pretexto para a evocação da realidade interior. É possível que o sujeito do poema se encontrerealmente diante do rio, embebido em recordações da amada; mas para além do realismo possível da evocação, o que conta é sobretudo o seu carácter simbólico evidente. A realidade exterior evocada é sobretudo aquilo que permite ao sujeito do poema, por comparação ou por sugestão, evocar os seus sentimentos, a sua situação pessoal, e pôr-se o problema da existência. O exterior só interessa [a ] Camilo Pessanha quando posto em relação implícita ou explícita com a experiência subjetiva, com a interioridade. Por outras palavras, e adotando uma outra perspetiva, poderia afirmar-se que a evocação da realidade exterior na poesia de Camilo Pessanha se faz sempre em função da realidade interior; o mundo exterior é caracterizado de maneira a sugerir, a completar e a sublinhar o estado de espírito, os sentimentos, a situação ou a visão do mundo e da existência expressos pelos poemas. Os dois tercetos exprimem ainda mais claramente a fusão e a confusão da realidade interior com a realidade exterior, da situação privada com um cenário de ordem geral: nas águas do rio o sujeito do poema quer continuar a ver flutuar os cabelos da amada, e sob a água os seus olhos «abertos e cismando», as suas «mãos translúcidas e frias», «refractadas, longamente ondeando». A água permite a transição do realismo ao simbolismo não só porque incluindo em si a noção de movimento pode assimilar-se à passagem do tempo que leva tudo consigo, mas também porque favorece a criação de imagens vagas, «refractadas», que se assemelham às imagens deformadas e não menos vagas ou difíceis de «construir» da imaginação e da memória. Mas esta fusão do interior e do exterior é a fusão da imaginação e da realidade, da morte e da vida, do passado e do presente, não anulando por todas estas razões a distância crítica a que Camilo Pessanha se situa em geral em relação à vida e ao mundo. Deve assinalar-se ainda que a única alusão à mulher amada nas duas primeiras quadras se encontra na expressão «seu riso magoado»; nos restantes versos destas cruas quadras o sujeito do poema refere-se à realidade exterior ou a si mesmo. É a referência clara nos dois tercetos à imagem da amada que faz dela o centro de interesse do poema. O estado de espírito que está na origem e no centro das duas quadras só encontra a sua explicação profunda, a sua razão de ser, na realidade evocada posteriormente nos tercetos.
João Camilo, «Realismo e Simbolismo em Clepsidra», Boletim de Filologia, tomo XXIX, 
Lisboa, Centro de linguística da Universidade de Lisboa, 1984, pp. 297-298, 300-302
   
   
ELLIE VICTORIA GALE, Leaks of Light
           

PAISAGENS DO DESEJO E DA MELANCOLIA
[…] É nessa voz reflexiva — que identifica e interpela cada manifestação do desejo e cada anseio mínimo de transcendência, apontando logo a desistência e a resignação como o único caminho possível — que encontramos, muito frequentemente, o tom específico da poesia de Pessanha. E é ela também, a partir da experiência da deceção, que vai propondo as várias imagens da quietação, da ausência de desejo e, portanto, da morte, que constituem o tecido simbólico mais característico da Clepsydra.
Nessas paisagens hibernais, entretanto, a quietação não existe de facto, senão enquanto objetivo proposto para os olhos que se rebelam. É verdade que, no segundo soneto, já os olhos perderam a febre. Mas não há aqui repouso, não há sossego: tudo é movimento, tudo se afasta do sujeito que apenas descobre, ou deseja descobrir, fragmentos na água que flui à sua frente.
Lido na sequência, o segundo soneto neutraliza o primeiro, no que diz respeito à simbologia do inverno. Lá, a estação das neves podia ser entendida muito coerentemente como a velhice, como aproximação do final da vida. Mas já no primeiro verso do segundo soneto, a afirmação do caráter cíclico das estações impede que mantenhamos aquela leitura. Não podemos mais pensar as estações como uma representação das fases sucessivas da vida humana. As estações não representam momentos de um desenvolvimento linear, mas estados que se sucedem e repetem ciclicamente. “Passou o outono já, já torna o frio” — nesse primeiro verso, vemos que a condição hibernal é recorrente. Ou seja: o inverno não pode ser lido apenas como a velhice, mas como uma disposição de espírito, que se renova periodicamente. […]
Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, p.92.


A MELANCOLIA COMO SINTOMA DO AMBIENTE NEGATIVO

 

O segundo soneto sofre certa digressão em que há um aceleramento cíclico pautado por lembranças exclusivamente melancólicas.

É preciso anotar que a melancolia está muito mais ligada a um traço relativo do espírito do que a um tipo de doença clínica. A manifestação da melancolia acontece num plano psíquico em que a visão nauseante da vida tende puramente ao metafísico, pondo em voga o sentimento do ser frente à obscuridade da compreensão universal. Para afiançar nosso pensamento, Robert Burton, em A anatomia da melancolia (2011), escreve: “É de uma doença da alma que estou a tratar, tão delegável a um teólogo quanto a um médico [...]” (BURTON, 2011, I, p. 82).

Segundo os apontamentos de Burton, verifica-se que a melancolia se avizinha da psique humana. A constatação do mundo melancólico não se dá a partir de uma transformação dele, mas sim através de uma cosmovisão oriunda da própria consciência. Nessa perspectiva, Franchetti anota que “sob o olhar melancólico, tudo se torna melancolia, fragmentação, fluidez” (FRANCHETTI, 2009, p. 28).

É apropriado observar que estas imagens pendentes se constroem doravante à compreensão inerme e apática do mundo. Indo além, Stanley Jackson, na obra Melancholy and depression (1986), constata que “a condição [da vítima da melancolia] era caracterizada pela exaustão, apatia, aversão à célula, à vida ascética e pela ânsia de retorno à família e à vida passada” (JACKSON Apud LIMA, 2017, p. 66). Apoiados nessa condição, a melancolia presente em Clepsidra pode ser brilhantemente esclarecida através das anotações de Giorgio Agamben. Segundo o teórico, “Por sua própria ambiguidade, o valor negativo da acédia [apatia] assim se torna o fermento dialético capaz de converter a privação em posse [...]” (AGAMBEN, Apud Lima 2017, p. 28).

Ora, uma vez que a melancolia de Pessanha está atrelada, se tomarmos como verdadeiras as observações de Massaud Moises já descritas anteriormente, ao Pan-sofrimento e ao pessimismo de Schopenhauer, então é válido afirmar que a dor viril sofrida pelo poeta invoca, justamente, a incapacidade de converter a privação em posse. Se Agamben acredita em um valor negativo da acédia que impulsiona o “fermento dialético”, Pessanha nega a negação da acédia.

Por essa linha de raciocínio, o primeiro verso do segundo soneto não apenas retoma a negação, como também une a ela o traço sombrio da melancolia. Além da manutenção da apatia e exaustão, o poeta adota um tom melancólico que reverbera a “ânsia de retorno à família e à vida passada” muito bem expresso pela sobrevivência sôfrega a cada retorno do inverno.

Novamente é oportuno observar que a lembrança do poeta se restringe a momentos de apenas “não sofrimento”. Nota-se que o verão e a primavera não pertencem ao universo de Clepsidra e as paisagens, em sua maioria, são tomadas pelo outono e inverno. Ainda que saiam, esporadicamente, da esfera do crepúsculo (outono) e da morte (inverno), algumas imagens tendem a ambiências tão funestamente macabras quanto as de “Paisagens de inverno” (tomamos por exemplo o deserto imenso de “Branco e vermelho” e o lençol aquático de Depois da luta e depois da conquista”).

Isso posto, a ideia de não sofrimento persiste, uma vez que a voz lírica resgata apenas a lembrança de ter passado o outono. A memória do poeta parece se restringir apenas a lembranças melancólicas, uma vez que que o outono se associa, analogamente, à decadência e ao desejo de morte. Ainda nesse sentido, a repetição do vocábulo “já” (Passou o outono já, já torna o frio) fortifica a consciência de um ciclo acelerado em demasia no qual as outras estações (primavera e verão) não deixam nenhum registro ou lembrança, timbrando sempre o presente melancólico do inverno em vista das últimas esperanças minguadas pelo outono (FRANCHETTI, 2009).

É acrescentada à paisagem gélida da natureza uma metáfora em que o sol oblíquo ilustra o desespero do poeta diante do rigor invernal. Num sentido mais conotativo, o sol parece estar brilhando de modo tortuoso, perdendo sua característica primária de produção de calor. Sob esse ponto de vista, a afirmação de um sol gelado faz eco ao casebre transido do primeiro soneto e completa o quadro melancólico “como um gênero de delírio, sem febre, que apresenta como companheiros constantes medo e tristeza sem motivo aparente” (AGAMBEN apud Lima, 2017, p. 64).

Não obstante a constatação de um sol gélido, o poeta ainda nota o atributo do gelo também nas águas do rio. É cabível notar uma pitada de inutilidade na própria natureza que rodeia o poeta. O sol gelado diverge do senso comum em que estrela e calor estão ligados sinonimicamente; da mesma forma o rio, com águas límpidas, não oferece ao poeta nenhum traço de vigor ou esperança, uma vez que, embora límpidas, suas águas são gélidas como o sol da paisagem algente.

Nesse cenário, a negação do calor do sol está paralelamente ligada à pouca importância da clareza das águas límpidas. O sentido dual implicado pela frieza de um sol inatingível e pelas águas de um rio que pode estar ao alcance do poeta reafirma uma possível desistência, tanto no tocante à vida eterna quanto à existência no mundo material.

O desejo do poeta, por mais obscuro ou frágil que possa parecer, está apoiado em concepções inalcançáveis, tanto pelo corpo físico (as águas do rio) quanto pela consciência (o sol gélido como representação da distância, do inalcançável). Resultante desse processo de assimilação negativa, Agamben destaca que “permanecendo seu desejo [do indivíduo] fixado sobre o que está fora de seu alcance, a acédia não é somente uma fuga de... mas ainda uma fuga para..., que se comunica com seu objeto pelo modo da negação e da carência (AGAMBEN apud LIMA, 1981, p. 28)”.

A dualidade em “fuga de” e “fuga para” concebe uma ideia intersticial na qual o poeta observa estar seu objeto de desejo. Assim, a evocação do eu lírico pelas extintas primaveras no primeiro soneto revela ser elas seu objeto de desejo, mesmo que as tendências de primavera e verão não impliquem, necessariamente, vida e gozo (e aqui posso, uma vez mais, citar como exemplo o calor em demasia de “Branco e vermelhoe o verde do lençol aquático em “Depois da luta e depois da conquista). Dessa maneira, a carência do poeta pelas extintas primaveras corrobora a negação de um presente sôfrego.

Esse paralelismo entre negação e carência pode ser muito bem observado através da disposição dos versos do primeiro e do segundo soneto no tocante ao ardor metafórico dos olhos. Para afiançar esse pensamento, Franchetti anota:

Os olhos não ardem aqui [em Paisagens de inverno II] com a febre do desejo de retorno. Ardem, sim, com o furor melancólico, reflexivo. Duas vozes se contradizem no interior desses sonetos: de um lado, a do desejo que incendeia os olhos; do outro um contracanto que afirma a impotência e aponta para a morte, a quietação como o único alívio do desejo doloroso (FRANCHETTI, 2009, p. 29).

Desse excerto de Franchetti, é relevante atentar para duas coisas que respaldam este estudo. A primeira é o modo de ver do teórico no que se refere à afirmação da impotência que aponta para morte; e a segunda, o furor melancólico reflexivo que parece ser o axioma representativo de “negação e carência”.

Sobre a primeira observação, o que Franchetti verifica ser a afirmação da impotência, também pode ser constatada, numa perspectiva inversa, como negação da potência. Na perspectiva de Kurrik, em Literature and negation, a negação da potência aponta para morte; a carência, por sua vez, que explicita o desejo doloroso de Franchetti, é negada pela ânsia de morte, pela negação da vida.

Nesse enfoque, tudo tende à negação. Os vocábulos escolhidos pelo poeta trazem à tona a melancolia e a negação unidas tanto pela concepção do desejo quanto pela tendência negativa que emanam dos mesmos vocábulos. É conveniente notar, a título explicativo, a ordem disposta pelo poeta no tocante à rima e ao grau degenerativo da vida que aumenta a cada verso.

Primeiramente, apenas é constatada a chegada do inverno: “Passou o outono já, já torna o frio”. Segundamente, o eu lírico menciona o estado físico das coisas em face da rigorosidade do frio: “Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado.../_ O sol, e as águas límpidas do rio”.

Interessante observar, também, que a repetição de conceitos afirma certa mudança na perspectiva do poeta de ver o mundo: “_ O sol, e as águas límpidas do rio. /Águas claras do rio! Águas do rio, /Águas claras do rio! Águas do rio, [...]”. Dessarte, parece válido ressaltar que as águas do rio parecem estar ligadas metaforicamente ao constante movimento de mudança, como que trazendo à baila o pensamento de Heráclito sobre a alteração constante dos entes e do ser humano (SANTOS, 2007, p. 33).

Dessa maneira, as águas do rio adquirem um cunho positivo (claras e límpidas), cuja função é contrapor a clareza e a beleza, bem como reiterar o viés melancólico uma vez que as água claras e límpidas estão sob poder rigoroso do álgido inverno. Em razão disso, a paisagem negativa se completa a partir da estupenda manifestação da natureza que coíbe qualquer relação do ser humano pela condição glacial imposta pelo frio.

Como reflexo desta condição climática, a ambiência disposta em “Paisagens de inverno II” expõe a consciência do poeta associando tal natureza gélida a um comportamento regido pela melancolia. Gumbrecht respalda essa ideia ao anotar que “as atmosferas e os estados de espírito, tal como os mais breves e leves encontros entre nossos corpos e seu entorno material, afetam também as nossas mentes” (GUMBRECHT, 2014, p. 13).

Como arremate da paisagem melancólica, o poeta ainda indaga: “onde ides a correr melancolias?” É mister observar que a indagação do poeta parece estar ligada ao mesmo modo interrogativo do primeiro verso do primeiro soneto: “Ó meu coração, torna para trás. /Onde vais a correr desatinado?”. Assim sendo, a forma de questionamento do eu lírico às melancolias demonstra que este sentimento está inerente no poeta, pondo em evidência que, da mesma maneira com que a consciência chama o coração à razão, assim também o faz, numa tentativa de reter o desejo vão, com a melancolia.

A título de conclusão, as paisagens que constroem o cenário dos poemas dispostos em Clepsidra emitem juízos que corroboram a fala de Pessoa (1967, p. 101) quando o poeta observa que “uma tristeza é um lago morto dentro de nós”. Nessa perspectiva, os olmos que vergam sob o peso da neve, o casebre transido, o sol e as água geladas do rio convergem para a estruturação de imagens que refletem, ecoam e ilustram a subjetividade de cada indivíduo. Por meio dessa ilustração, a conciliação da paisagem externa com a interna se revela de maneira que, nas palavras de Fernando Pessoa, bem se retrata a realidade através da representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior.

 

Ezequias da Silva Santos. Aspectos de uma estética da negação na poesia de Camilo Pessanha, Pato Branco, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2019


Ophelia, 1894. John William Waterhouse

ANÁLISE MUSICAL E LITERÁRIA
No seu conjunto, a poesia de Camilo Pessanha traduz o pensamento metafísico de uma alma errante, em que ocorrem de forma obsessiva imagens de confrontação com a morte e de manifestação da dor e da mágoa99, porém, despojadas de intensidade romântica. Reflexo de uma “desagregação pessoal”, a sua poesia esvazia-se “em ténues e inúteis agonias [...]. O desejo e o amor suspendem-se, e desistem, e fruem a música agridoce da desistência, seguros de que a sua consumação seria o tédio”100. A versificação, fluida e leve, é dotada de uma qualidade musical própria, resultante do trabalho de combinação rítmica e de uma ponderação cuidada da palavra, que põe em relevo as suas características fonossimbólicas.
A música [de Filipe de Sousa] para os dois sonetos de Pessanha corresponde a esta ideia de fluidez rítmica do verso. Não só a melodia vocal deambula, vaga e evanescente, mero veículo das imagens poéticas, como o acompanhamento pianístico, delicadamente arpejado, trai esta noção passageira e fugaz do tempo.
O presente estudo lança uma perspetiva abrangente sobre a obra para voz e piano de Filipe de Sousa (Maputo, 15/02/1927 — Lisboa, 22/11/2006).
A parte central da dissertação foi dedicada a um estudo individual de cada canção, focando aspetos da linguagem musical empregue, numa relação estreita com os respetivos textos poéticos, tendo sido alvo da nossa atenção a quase totalidade da sua atividade criativa nesta área.
Passou o outono já, já torna o frio…
(Paisagens de Inverno II, 1895 ,1ª versão; in Clepsidra, 1ª ed., 1920)
Poema musicado por Filipe de Sousa em 26 de fevereiro de 1950 (para voz e piano).
Este é um poema em que a metáfora do tempo que passa, materializada nas águas correntes, é confrontada com a ideia da morte. Em primeiro lugar, morte do Outro, na visão ofélica, decadentista, de uma figura feminina de cabelos ondulantes sob as águas límpidas e claras, que se interpõem como um écran, afastando o sujeito poético daquela a quem ele aspira reunir-se. Numa segunda instância, as águas, agora fugidias, são reflexo narcísico do olhar cansado do poeta, instigando-o a uma viagem sem retorno102.
No plano harmónico, a canção assenta numa noção de ambiguidade decorrente da adoção da escala menor melódica de Si bemol, que induz no compositor o jogo constante de leves dissonâncias, produzido pelas alterações do 6º e 7º graus. Este conceito prolonga-se na alusão permanente às harmonias sobre o grau da tónica, que não chega nunca a afirmar-se definitivamente no texto musical. O arpejo inicial, transitório, repousa na 1ª inversão do acorde, e a ocorrência da fundamental do acorde no terceiro compasso é também passageira, conduzindo à pedal sobre a dominante nos compassos seguintes. A permanente polarização tonal no grau da dominante, Fá M, constitui-se, em nossa opinião, indicador semântico da atmosfera poética de realidade suspensa. O único ponto em que a perceção da harmonia principal é mais manifesta, acontece já no final da canção (cc. 26-27), no movimento cadencial do V para o I grau. Contudo, mesmo aqui, o seu efeito é ilusório, desfeito que é o intervalo de 3ª menor, e breve, pois que, de imediato reincide na dominante, suspensiva, diluindo-se o final pela adição de uma 6ª ao acorde.
Facto saliente na secção central, é o movimento ondulatório traduzido pela figuração de arpejos, para o qual contribuem a aceleração do andamento e a alteração na acentuação rítmica, e que, enquanto imagem isomórfica da cabeleira feminina vogando nas águas correntes, contrasta com a aparente imobilidade temporal das secções extremas103.
  
As canções de Filipe de Sousa, tese de mestrado de José Manuel de Amorim Pinto Brandão.
 Universidade de Aveiro, 2007.
  
___________
(99) In: PESSANHA, Camilo, Clepsidra, Isabel Pascoal (Introd.), Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, Braga, Ulisseia, 1996, p.25.
(100) António José Saraiva e Óscar Lopes in História da literatura portuguesa, 12ª ed., Porto, Porto Editora, 1982, pp. 1032-1033
(102) GIlbert Durand, citado por Christine Pâris-Montech, afirma: “L’eau qui s’écoule est amère invitation au voyage sans retour. [...] L’eau qui coule est la figure de l’irrévocable”. op. cit., p.109
(103) Filipe de Sousa referiu-se a estas melodias na longa entrevista que concedeu em 1997 à Revista Macau (op.cit., p.56) por altura de um recital realizado com a soprano Elsa Saque. Caracterizou-as como “pecadilhos de juventude”, expressão que utilizava amiúde quando mencionava as suas obras dos tempos de estudante, apontando-lhes, então, um “certo academicismo”. Pelo que nos foi dado a conhecer do convívio com o Maestro nos últimos anos da sua vida, é nossa convicção que estas observações revelam mais da sua personalidade, do que qualificam as suas obras ou o seu processo criativo. Apesar de um indisfarçável sentido de orgulho, Filipe de Sousa frequentemente desvalorizava a importância das suas obras, mostrando-se reconhecido pelo interesse que outros poderiam demonstrar por elas.

Ofélia (detalhe), John Everett Millais, Ophelia, 1851-52 (Tate Britain, Londres)




PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/10/paisagens.de.inverno2.aspx]

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

PAISAGENS DE INVERNO I (Camilo Pessanha)


   


PAISAGENS DE INVERNO
       
I
       
Ó meu coração, torna para trás. 
Onde vais a correr, desatinado? 
Meus olhos incendidos que o pecado 
Queimou... Voltai, horas de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos. 
A cinza arrefeceu sobre o brasido. 
Noites da serra, o casebre transido... 
— Cismai meus olhos como dois velhinhos.

Extintas primaveras evocai-as:
— Já vai florir o pomar das macieiras, 
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. —

Sossegai, esfriai, olhos febris.
— E hemos de ir cantar nas derradeiras 
Ladainhas... Doces vozes senis...
       
Camilo Pessanha
   
   
*
   
   
QUESTIONÁRIO
1. Realce a relação metonímica eu/tu-vós (partes do eu).

2. Que parte do eu fracionado representa:
-a sua relação com o exterior?
- o conhecimento adquirido?

3. De que forma se associa o Inverno à decadência?

4. O Simbolismo herdou do Decadentismo o gosto da sinestesia. Selecione exemplos no poema.

5. Surpreenda no poema características recorrentes no Simbolismo.

6. Complete o esquema com versos ou expressões do poema:


   

     Textos de apoio

  

CAMILO PESSANHA EM DOIS TEMPOS

Neste soneto [“Ó meu coração, torna para trás.”] observa-se uma interpenetração de tempos e espaços em que a 2ª quadra nos coloca num presente de inverno (na natureza e na senilidade do homem), opondo-se a “primaveras” agora “extintas”, existentes na memória e/ou na imaginação do sujeito poético. Criam-se grupos de oposições entre neve, cinza X luz, brasido; coração desatinado, “olhos incendidos que o pecado/ Queimou”, “olhos febris” X olhos que cismam: ”como os velhinhos”. Paralelamente, uma voz conselheira — da Consciência? da Razão? — manifesta-se em imperativos que pregam comedimento. Verbos no presente, no passado e no futuro criam um caleidoscópio temporal, em que o pretérito perfeito pode ser lido como presente e o futuro como passado. É como se as evocações do passado fossem moldadas ou remodeladas de acordo com as esperanças, os ideais colocados num futuro inatingível.

Noutro soneto [“Passou o outono já,já torna o frio…”] evidencia-se a própria tentativa de captar em poema a fugacidade do tempo, articulada na metáfora heraclitiana do rio.

Água e tempo, como na clepsidra, confundem-se, permitindo o acesso do plano físico ao metafísico: ante a implacabilidade e irreversibilidade do fluir, associado aos estados de alma do poeta, o quo vadis sem resposta de “Para onde me levais meu vão cuidado?/ Aonde vais, meu coração vazio/ […] Onde ides a correr, melancolias?

 

Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 33-34

 

***

 

PAISAGENS DE NEGAÇÃO: A AMBIÊNCIA E A MELANCOLIA COMO MARCAS DA NEGAÇÃO EM PAISAGENS DE INVERNO

 

Num primeiro momento, podemos constatar o conceito de dualidade que afirma uma luta ardente entre a razão e a emoção. Nessa luta, o eu lírico observa o descarrilamento do coração e o interroga de forma lúcida e racional: “Onde vais a correr, desatinado?”. Não obstante o cunho divergente expresso no verso, o poeta ainda atenta para certa prudência ignorada pelas emoções: “Ó meu coração, torna para trás”. Observa-se que na perspectiva do eu lírico não há esperança nem, por consequência lógica, futuro, mas apenas a negação da vontade de existir em oposição ao desejo de viver.

Como reflexo dessa dicotomia mente/coração, o poeta ainda utiliza vocábulos que associam a trivial existência do ser humano ao sofrimento natural do homem. Destarte, os olhos incendidos queimados pelo pecado minguam o poeta à penitência e à vigília, contrastando sempre o sofrimento do presente com a aprazibilidade do passado.

Posteriormente à confissão do desespero e do anseio pelas “longas noites de paz”, o poeta contextua o ímpeto desse pensamento dando vasão, agora, a uma atmosfera que corresponde tanto melódica quanto imagisticamente. Nessa atmosfera, as imagens apontadas pelo poeta apresentam um cunho perceptivelmente decadente e a visão pessimista do eu lírico corrobora o axioma da negação quando observamos não haver vestígios de esperança na contextualização da cena.

Além da imagem das árvores carregadas de neve, os olmos ainda pendem num sentido de insuficiência vital, pondo em evidência certo acúmulo de negativismo. A soma desses aspectos decadentes, como os galhos que vergam sob o peso da neve, já anuncia uma ideia de desistência, de não vida, de negação existencial.

O segundo verso, além de complementar a premissa do primeiro, expõe uma noção dicotômica que pode ser percebida através do sentido de esfacelamento e do desmembramento já anotado por Kurrik e Mucci. Nesse viés, o poeta anota que “A cinza arrefeceu sobre o brasido” e essa esplêndida colocação deve ser observada com devido mérito.

Em primeiro lugar, é válido observar que as cinzas sobre o brasido são uma imagem típica das tantas que aparecem em Clepsidra. Observando o que disse Oscar Lopes sobre a poesia de Pessanha ser um inventário de um desastre, percebemos que no braseiro não há brasa, mas apenas restos materiais deixados pelo fogo. Levando em conta o clamor do poeta pela volta das “longas noites de paz” e tendo em mente o arrefecer das cinzas sobre o brasido, podemos afirmar que não houve, em um momento anterior à neve e às tormentas, dias de alegria, tampouco dias de glória.

Nessa tendência, o poeta não atenta para a possível brasa no braseiro em tempo remoto, nem para os verdes olmos floridos em época de primavera, mas sim para um resultado melancólico. A gradação que ocorre no poema parte de uma premissa intensamente negativa, posto que a narração não se inicia nas brasas nem nas verdes folhas, mas nas cinzas e no peso da neve que faz vergar os galhos.

Indo além, o arrefecer das cinzas sobre o brasido invoca, analogicamente, a própria vida em fiapos. Nessa perspectiva, as cinzas encontram eco no “Poema final” em que os sintomas de vida e existência estão ligados miseravelmente a jatos de luzes e abortos nas prateleiras dos museus.

Isso posto, é válido observar que o arrefecer não apenas descreve a imagem decadente, como também retrata, metaforicamente, um sentimento de melancolia que assoberba o poeta. O arrefecer está diretamente ligado ao declínio da vida, isso já timbrado pela imagem dos olmos pendidos como se desgastados ou destituídos de vigor físico. Assim, a imagem é reforçada e o que outrora era tomado apenas por fraqueza física passa a ser, paralelamente à primeira ideia, languidez e inércia, voltando à fraqueza psíquica introduzida em “Inscrição”.

Dessa passagem do físico (sensação) ao psicológico (pensamento) se manifesta uma atmosfera negativa que rompe com qualquer possibilidade ou pensamento de vitalidade. O negativismo se revela puramente pela ausência de imagens ou pensamentos positivos que poderiam, ao mínimo, anular o desejo de aniquilação ou negação da vida presente no poema.

Para respaldar nosso pensamento, Gumbrecht observa:

Para passar da sensação ao pensamento, a alma atravessa uma posição de equilíbrio na qual a sensibilidade e a razão atuam simultaneamente. Sensibilidade e razão combinam-se para suspender a energia que determina ambas; isto é, o antagonismo delas gera sua negação (GUMBRECHT, 2014, p. 18).

Desse antagonismo entre sensibilidade e razão surgem imagens que reiteram o tom de negação presente no poema. O diálogo da consciência com o coração endossa nosso raciocínio e ainda corrobora, sem ressalvas, a desarticulação do espaço-tempo, resultando na estagnação temporal e negando, por consequência desta estagnação, a vida e a morte.

Sobre esse conceito do espaço-tempo, Oscar Lopes estatui:

Camilo Pessanha traz à poesia portuguesa toda a dinâmica até então insuspeitada do momento subjetivo no domínio da percepção, desarticulando as dimensões do espaço-tempo como dados mecanicamente exteriores, desarticulando a perspectiva puramente geométrica [...], mobilizando os modos afetivos de reação à realidade sensorial (LOPES, 1989, p. 136).

O que Oscar Lopes afirma ser “momento subjetivo no domínio da percepção” se traduz na sutileza com que as coisas passam do estado físico (os olmos pendendo sob o peso da neve) ao estado psíquico (o arrefecer metafórico das cinzas sobre o brasido). A conclusão da ideia se dá por intermédio de outra imagem que se evoca à leitura do terceiro verso: “Noites da serra, o casebre transido...”. Não obstante a anulação da alma oriunda da combinação entre razão e sensibilidade, a imagem da habitação em meio às noites da serra transmite um sentimento lúgubre que evoca as premissas pessimistas do meio caminho entre vida e morte.

É oportuno observar que o casebre transido resulta de uma figura de linguagem na qual a mescla de vida e morte é manifesta por meio de um equilíbrio entre o animado e o inanimado. Por essa perspectiva, a prosopopeia inerente no verso põe em relevância a percepção de restrição mental ou física, forjada pelas paredes do casebre, adjunta ao sentimento de terror e medo procedentes do vocábulo “transido”.

Ainda por essa linha de raciocínio, a escolha do substantivo “casebreem detrimento do primitivo (casa) ou seus derivados (casarão, casona) complementa o propósito lúgubre da imagem, tendo em vista que o próprio vocábulo invoca, por meio de convenção da língua, aspectos de abandono e ruínas.

Nesse cenário, parece ser certo afirmar que a imagem é justamente a afirmação de uma atmosfera de proximidade à morte. As escolhas feitas pelo poeta no tocante aos vocábulos e construção de imagens e sentido estão muito mais voltadas para um sentido minguante de fim da existência do que para uma ideia unilateral de fim do ciclo vital.

Essa é a metáfora da segunda imagem: a reclusão do ser em um lugar tomado por ruínas, onde a probabilidade de afirmação da vida é mínima. Assim, os olmos curvados pelo peso da neve, as cinzas frias sobre o braseiro e o casebre transido fecham um quadro de total desistência, apontando para a morte e para a negação da vida.

Isso posto, é pertinente ressaltar que embora a premissa de morte envolva a ambiência do poema, não há consumação desse desejo de morte. Isso, ao nosso ver, é muito significativo, uma vez que nossa finalidade é notabilizar a negação da existência, ainda que a vontade de existir submeta e compile o poeta à vida.

Nesse ponto de vista, o eu lírico reflete sobre o existir numa demonstração de aflituosa inquietação: “Cismai, meus olhos, como uns velhinhos”. Além dessa tomada de consciência que resulta no diálogo entre a consciência do poeta e seu corpo, a ideia de cismar está atrelada à percepção do poeta no tocante à experiência que desaconselha a vida. Paulo Franchetti corrobora nosso pensamento ao perceber:

De fato, parece procedente ver no poema um conflito entre duas inclinações pertencentes ao mesmo sujeito: por um lado a voz do conhecimento, da experiência, por outro, as inclinações da sensibilidade, representadas pelo coração, e as do desejo, representadas pelos olhos (FRANCHETTI, 2009, p. 27).

O tom de advertência que pode ser sentido em “cismai, meus olhos, como uns velhinhos [...]” está estritamente amarrado a uma experiência de desconfiança do que se refere às inclinações do desejo observadas por Franchetti. Ainda nessa linha de pensamento, o apelo aos olhos se conecta à perspectiva da suplantação da visão meninil sobre o mundo pela visão adulta, destacando, uma vez mais, a experiência e a sagacidade do olhar idoso em detrimento da sensibilidade já exposta pelo coração a correr desatinado.

Se os dois quartetos do poema exibem paisagens ligadas à atmosfera de negação da existência, os dois tercetos que fecham o soneto advêm com vocábulos que apontam para um futuro derradeiro de aniquilação. Ainda que o primeiro terceto bosqueje uma faísca de desejo vital, o terceto final rompe com qualquer pressuposto vigorante e retoma o tom de morte e desistência.

Dessa forma, o conflito entre sensibilidade e razão se dá na medida em que o coração, marcado no início do poema pelo desvario proposto pelo vocábulo desatinado, evoca as extintas primaveras. A partir dessa evocação, projetam-se cenários futuros em que o florido das macieiras, extinto pela neve, torna como se respondesse a um desejo unicamente emocional. A ideia ainda se repete no próximo verso em que, por consequência do florido hipotético da primavera, o eu lírico observa, ainda sob o crivo da sensibilidade, a contingência de poder enfeitar os chapéus com flores.

Num movimento de oposição ao penúltimo terceto, o poema se fecha com o reaparecimento da voz reflexiva da experiência, agora, porém, fazendo oposição aos olhos que cismam. Assim sendo, a voz aconselhadora se opõe à razão e recupera, de forma análoga, a mesma premissa dos primeiros versos do poema, fazendo soar o derradeiro receio do fim e apontando para o iminente sentido derrotista da vida, repelindo a própria ideia de impulso ou vitalidade dos olhos cismantes.

Por essa linha de raciocínio, os olhos que outrora cismavam de forma meditativa e inquieta são agora acometidos pela total desistência da razão enquanto mediadora da sensibilidade, e sua meninice, e o conhecimento, e sua madurês. Essa desistência de cismar resulta na aceitação da morte física ou da própria consciência, restando ao poeta o ato derradeiro de juntar-se àqueles, cujas vozes já cederam à morte ou ao abandono da razão.

Nessa tendência, é mister observar que se “[...] dinamiza, a partir da experiência deceptiva, as várias imagens da quietação, da ausência do desejo e, portanto, da morte, que constituem o tecido simbólico de clepsidra” (FRANCHETTI, p. 28). Levando em conta os apontamentos de Kurrik na obra Literature na negation (1979), observamos que a negação vem por conta da polaridade entre presença e ausência de algo. Nessa lógica,

Talvez não seja exato compreender as inclinações da sensibilidade e do desejo como irracionais, opondo-as, assim, à voz da experiência, que equivaleria à razão. Mas [...] uma experiência que redunda numa sabedoria apenas negativa, que aponta sempre [...] para a inutilidade dos esforços e para a decepção fatal que está implicada em cada conquista (FRANCHETTI, 2009, p. 27).

 

A título de conclusão deste capítulo, é importante observar que as paisagens contempladas pelo eu lírico refletem, num movimento pendular, o cenário interior cunhado por Pessoa. Assim, “[...] tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens” (PESSOA, 1969, p. 101). Efetivamente, as paisagens de Clepsidra não apenas ilustram a perspectiva decadente do Fin de siècle, mas tomam amplas proporções em que o mero conceito ilustrativo é suplantado pela concepção significativa/subjetiva de panoramas que refletem e retratam a dor humana de existir.

 

Ezequias da Silva Santos. Aspectos de uma estética da negação na poesia de Camilo Pessanha, Pato Branco, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2019



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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/09/paisagens.de.inverno1.aspx]