Voz débil que passas,
Que humílima gemes
Não sei que desgraças...
Dir-se-ia que pedes.
Dir-se-ia que tremes,
Unida às paredes,
Se vens, às escuras,
Confiar-me ao ouvido
Não sei que amarguras
Suspiras ou falas?
Porque é o gemido,
O sopro que exalas?
Dir-se-ia que rezas.
Murmuras baixinho
Não sei que tristezas...
— Ser teu companheiro? —
Não sei o caminho.
Eu sou estrangeiro.
— Passados amores? —
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...
Fraquinha, deliras.
— Projetos felizes? —
Suspiras. Expiras.
Que humílima gemes
Não sei que desgraças...
Dir-se-ia que pedes.
Dir-se-ia que tremes,
Unida às paredes,
Se vens, às escuras,
Confiar-me ao ouvido
Não sei que amarguras
Suspiras ou falas?
Porque é o gemido,
O sopro que exalas?
Dir-se-ia que rezas.
Murmuras baixinho
Não sei que tristezas...
— Ser teu companheiro? —
Não sei o caminho.
Eu sou estrangeiro.
— Passados amores? —
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...
Fraquinha, deliras.
— Projetos felizes? —
Suspiras. Expiras.
Camilo Pessanha
Autógrafo de 1916, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa.
TEXTOS DE APOIO
O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha, Maria Alzira Seixo (1989)
Pseudoápice, Gilda Santos e Izabela Leal (2007)
Amor, companheirismo e conhecimento intersubjetivo. João Paulo Barros de Almeida (2009)
Recortes grotescos na história da literatura portuguesa: o discurso anticanónico de Camilo Pessanha. José Horácio de Almeida Nascimento Costa (2012)
"Invisível, Visível", por Vhils. Mural sobre Camilo Pessanha, no Jardim do Consulado de Portugal em Macau, 2016-12-09. |
O PENSAMENTO DA MORTE NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
"Voz débil que passas" ‑ voz que geme, que confidencia ou murmura tristezas, e cuja companhia se recusa em nome do caminho ignorado, ou preterido, e da singularidade que se detém. O diálogo chega a travar-se, segundo o processo da intersecção de planos que diz normalmente de uma cisão na subjetividade manifesta, que aqui se cinde explicitamente na última estrofe, entre a impotência da fragilidade anímica e o excesso insustentável da felicidade entrevista: "Fraquinha, deliras. / ‑ Projetos felizes? ‑ / Suspiras. Expiras". O suspiro, manifestação indecisa de uma positividade negativa, equivale, na lógica do texto, à expiração, que o diz literalmente, acrescentando-lhe o matiz impercetível mas claro da ambiguidade Vida/Morte, com inclinação nítida para a vertente Morte, a da finalização e do esvaziamento. Curiosamente, é perante o enunciado da hipótese de felicidade que a figura da morte intervém, como antes, no I soneto de "Caminho", as saudades referenciadas ao presente são as saudades da dor ‑ que se repele, mas que deixará em seu lugar um "véu escuro" no "coração" ‑, "luz desgrenhada que alumia/ as almas doidamente".
As noções de incerteza e de singularidade decorrem em parte desta flutuação dual que não recusa o outro mas que sempre o ultrapassa numa busca de sentido que acaba por anulá-lo. […]
Maria Alzira Seixo, “O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha”, Análise n.º 13, 1989.
Apud Outros erros, Porto, Edições Asa, 2001, pp. 108-109.
*
PSEUDOÁPICE
O poema nos revela um tu, anónimo, assexual, que existe só enquanto voz, a aproximar-se ainda que debilmente, humilimamente, do sujeito lírico. Mas este interpõe ao contacto (que já à partida se mostra frágil, pois a voz, além de débil, passa) uma série de “não sei que”, devida, possivelmente, a qualquer ruído na comunicação oral que torna a mensagem incompreensível, ou a alguma dificuldade auditiva do interlocutor, ou ao facto de este, hesitante ou cético, não querer envolver-se com quem o procura, ou ao excesso de tibieza dessa voz, ou... Certo é que não sabemos exatamente qual é o discurso desse tu, uma vez que é filtrado pelas dúvidas do eu. Do diálogo esboçado nas três estrofes finais, a certeza apenas da recusa, por parte daquele que ouve, em aceitar confidências ou companheirismo: — Ser teu companheiro?—/ Não sei o caminho./ Eu sou estrangeiro. E, talvez por conta dessa recusa, ou pela desistência diante da intransponível incomunicabilidade, dá-se a morte dessa voz: Fraquinha, deliras / — Projetos felizes? — / Suspiras. Expiras.
É extremamente significativa essa autoclassifìcação como estrangeiro; o emissor confessa-se deslocado não apenas num tempo e num espaço determinados, mas deslocado ainda em relação à comunicação com o outro, o que implica dizer em relação à própria vida, deixando por isso escapar todas as possibilidades.
Pelas dúvidas que revestem o contato com outrem, leia-se também o poema
AMOR, COMPANHEIRISMO E CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO
A proposta de camaradagem promanada da voz (sexto terceto de «Voz débil») não é acolhida pelo sujeito que alega desconhecer o caminho por ser estrangeiro. […]
O verbo final «Expiras» como que está anunciado no primeiro verso: a voz, além de débil, passa (é transitória, está destinada a passar, não a ficar – passamento, morte). A debilidade da voz escorre em quase todo o léxico desdobrado. A sua intenção comunicativa é vaga, indecisa, conjetural, até ao antepenúltimo terceto: «não sei…», «Dir‑se‑ia», «gemes», «pedes», «tremes», «Suspiras ou falas?», «rezas», «murmuras». Voz que soa não em dia claro, exposta, mas de esconso, «unida às paredes», «às escuras». Voz débil, de facto, lembrando o «gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados», «o queixume brando» do expirar no vento das doces almas penando de «Poema Final». É a voz da dor, da caravana da dor do género humano, de «Branco e Vermelho».
Os travessões dos tercetos finais de «Voz débil» constituem, evidentemente, o eco de locuções articuladas pela voz. E é no primeiro terceto que vemos uma certa contraposição aos companheiros de estrada do outro poema. Se foi o sujeito quem tomou a iniciativa na saudação («Bom‑dia, companheiro»), volveu‑se agora no destinatário do convite ao companheirismo. Invertem‑se os papéis. Mas o sujeito recusa, alegando ser estrangeiro e não saber o caminho. Curiosamente, aquele que se tornou companheiro de jornada até à encruzilhada da separação («cada um por seu lado!...») também não sabia o que procurava, o que não o impediu, ou talvez por isso mesmo, de se juntar ao sujeito. Como interpretar as razões que dá para não corresponder ao pedido?
Poderia ser uma resposta anódina, do tipo «não sou de cá, pergunta a outro». Mas não carregará esse adjetivo, «estrangeiro», todo o peso do exílio, de quem o seu reino não é deste mundo, que por cá caiu, mas que não pertence aqui? E o não saber o caminho não significará uma desorientação radical, a derrelição, o tal pessimismo derrotista e desistente?
E estas perguntas retóricas abrem a via para a (re)consideração do tonus emotivo dominante na poesia do autor: o tom desistente, abúlico, derrotista51, numa palavra, melancólico.
Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, pp. 101, 103.
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(51) Considere‑se que a evocação de «passados amores» por parte da voz é rececionada pelo sujeito envolta em vagos «terrores» (a expressão «não sei que» atesta, simultaneamente, da debilidade da voz e da atenção do sujeito) e que é justamente quando a voz sopra futuros «projetos felizes» que ela expira.
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RECORTES DO GROTESCO NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA: O DISCURSO ANTICANÓNICO DE CAMILO PESSANHA.
POEMA 38
Voz debil que passas,
Que humilima gemes
Não sei que desgraças...
Dir-se-hia que pedes.
Dir-se-hia que tremes,
Unida ás paredes,
— Passados amores? —
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...
Fraquinha, deliras.
— Projectos felizes? —
Suspiras. Expiras.
Voz debil que passas,
Que humilima gemes
Não sei que desgraças...
Dir-se-hia que pedes.
Dir-se-hia que tremes,
Unida ás paredes,
— Passados amores? —
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...
Fraquinha, deliras.
— Projectos felizes? —
Suspiras. Expiras.
Se vens, às escuras,
Confiar-me ao ouvido
Não sei que amarguras…
Suspiras ou fallas?
Porque é o gemido,
O sopro que exhalas?
Dir-se-hia que rezas.
Murmuras baixinho
Não sei que tristezas...
— Ser teu companheiro?
Não sei o caminho.
Eu sou estrangeiro.
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Notas e comentários de Paulo Franchetti.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
O poema é construído em redondilha menor, verso tão utilizado pelos medievais e considerado de fácil construção por ser curto. O poeta opera com uma cesura perfeita na segunda sílaba, o que permite uma leitura sincopada e quebrada, além de remeter aos poemas de Pe. José de Anchieta, por exemplo, e a tantos outros. Num dos mais famosos poemas do jesuíta, À Santa Inês, a cesura da redondilha menor ocorre na terceira sílaba métrica, o que permite ao texto uma leitura mais dinâmica e até juntar dois versos, na velocidade da leitura, para formar um hendecassílabo com cesura na quinta sílaba.
Já o poema de Pessanha, com a quebra na segunda sílaba métrica, torna os versos segmentados. A subpartição não possibilita uma leitura dinâmica, nem a junção de versos na leitura. Apesar de ser um poema de versos curtos, a leitura é lenta, e se estende a um prosaísmo, que culmina na última estrofe: três versos com três marcas de pausa. A repetição anafórica da segunda estrofe, que dá um caráter de laude católica ao poema, se desconstrói na estrofe subsequente iniciada por um travessão que marca um interlocutor e/ou um outro eu.
O trabalho sonoro feito pelo poeta divide o poema em duas partes: as quatro primeiras estrofes possuem um predomínio de sons oclusivos, à exceção da primeira estrofe, que intensifica uma espécie de sonoridade de rutura de Pessanha em versos curtos. As últimas estrofes, com uma sonoridade que mescla o fricativo e o nasalisado, são, portanto, menos duras que as primeiras. Assim, temos uma contradição sonora no poema: o trecho que marca uma reza possui uma sonoridade dura; a parte que acentua um tom dialogal é mais livre.
Além da sonoridade fragmentária que identificamos, o que a crítica costuma analisar na poesia de Pessanha é a construção de imagens desfeitas, ou a desconstrução de um todo imagético.
A perceção (...) carece de sentido e se esgota em si mesma porque não pode ser situada contra um quadro mais amplo, em que ganhe uma função. Por falta desse quadro, permanecem as várias perceções como fragmentos, como imagens desintegradas, sem transcendência que as redima numa unidade maior, e por isso a própria perceção é percebida como inútil e no limite acaba por cessar, como um longo esforço que não chegasse nunca a dar origem a um produto. (Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, p. 69)
O poema se inicia com uma metonímia, recurso retórico de partição do ser, ao adotar uma “voz passante”, que se mostra com alguma debilidade, ou seja, o fragmento do todo; a voz, também ela fragmento, não está inteira, mas ainda assim geme suas desgraças. O último verso da primeira estrofe carrega marcas de oralidade que lembram o ritmo do verso romântico e o substantivo “desgraças” conota não apenas uma imprecação e maledicência na sonoridade, mas também na semântica, o que se caracteriza como inovador e marca uma heterogeneidade da forma que só se possibilita num universo grotesco.
O tom formal da segunda estrofe é marcado pelo futuro do pretérito e pela mesóclise do pronome, mas destoa do tom informal adotado antes, então a próprialinguagem não nos fornece uma uniformidade no discurso, ela se pulveriza como todoem múltiplas variações. As estrofes seguintes estão carregadas de figuras retóricas quesubvertem a lógica do idioma: a quebra do sequenciamento lógico através do anacolutoé uma constante no poema, seja através de elipses como em “fraquinha, deliras”, ou noaposto de “se vens, às escuras” e ainda na quebra radical do encadeamento em “animas-te, dizes! não sei que terrores”.
Se o discurso quebrado marca o grotesco, não menos interessante é notar que o texto também está recheado de antíteses e paradoxos, figuras que contribuem para a quebra do discurso e para a construção de uma tensão: “animar-se diante do terror”; “amores X amarguras”; “suspiras X expiras”; “delirar projetos felizes”, e “gemido é um sopro que exalas” marcam muito bem o estranhamento que caracteriza a obra. Outro aspeto da linguagem que nos chama a atenção diz respeito à poética de Pessanha e do que se convencionou chamar de escola simbolista, é a “grafia rara” das palavras. Tanto gera estranhamento ao leitor, que das edições consultadas das obras de Camilo Pessanha e António Nobre, algumas edições optaram por modificar as escolhas raras de ortografia feita pelos autores.
No que diz respeito à pontuação do texto, os três versos marcados com travessão marcam um diálogo do eu poemático. Este ocorre consigo mesmo, uma espécie de alter-ego, ou com um interlocutor, uma segunda pessoa? O poema não responde, mas o conjunto da obra de Pessanha possui uma profunda fissura do indivíduo, o que nos leva a interpretar o poema de maneira equivalente. Paulo Franchetti indica que o poema “Imagens que passaes...” é um dos mais conhecidos do poeta. Entendemos que é também um poema central de sua exígua obra. A rutura do eu que ocorre naquele poema, também se manifesta no que analisamos aqui e o uso do travessão, entre outros expedientes semelhantes, é um recurso de ambos.
A partir da metonímia que fragmenta o eu, e dos travessões que apontam para uma cisão entre o eu e o próprio eu, é percetível um sujeito poético dialogando com uma segunda pessoa, e todos os verbos estão na segunda pessoa, que pode ser ele mesmo. O diálogo do eu com uma espécie de outro eu, que marca a poesia de vários poetas modernos portugueses, é grotesco. Seja na imagem do louco que dialoga consigo mesmo, com o homem ensimesmado que não se relaciona com o mundo, ou ainda com o esquizofrénico, temos um desvio, um estranhamento, um homem grotesco que muitas vezes se aliena de si. Parece-nos algo similar à rutura moderna, e sua deformidade:
A prática recomendada por Rimbaud estava não só de acordo com o ideal de artificialismo, que todos os decadentes tinham em mente como ideal supremo, mas já continha um novo elemento, a saber, o de deformidade e esgar como meio de expressão, que iria tomar-se tão importante para a moderna arte expressionista. Baseava-se essencialmente na perceção de que as atitudes espirituais normais e espontâneas são estéreis, do ponto de vista artístico, e de que o poeta deve superar o homem natural que existe nele próprio a fim de descobrir o significado oculto das coisas. (HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São paulo, Martins Fontes, 2000, p. 926. ‑ Grifo nosso)
É certo que a deformidade do eu neste poema de Pessanha é, à primeira vista, singela. No que tange ao conteúdo, o poema é simples. Trata-se de um eu lírico que descreve a passagem de uma voz débil e, em alguns momentos, provoca-a, mas a ambiguidade produzida na construção de alguns versos, mais especificamente nos que possuem travessões, impossibilita, como afirmamos acima, a certeza de haver uma resposta de outrem ou de um alter-ego e até de um eu que é outro eu. Os adjetivos que se referem ao interlocutor, seja ele particionado em voz, seja uma totalidade, são apenas três: “débil”, “humílima” e “fraquinha”. Outras expressões que de alguma forma caracterizam o outro são: “gemes”, com uma conotação desesperada, assim como nos verbos “pedir” e “tremer”.
Na terceira estrofe o próprio eu poemático pede que essa voz-sujeito, talvez emanada de dentro dele, manifeste terrores desconhecidos. O ser multifacetado não se reconhece em si, nem se conhece completamente. Por outro lado, sendo outro ser o interlocutor, ele se caracteriza por um pseudossilêncio que deixa a voz poemática em uma zona desconfortável, muito afim ao grotesco, de dialogar sozinho. A resposta, independendo do sujeito a que pertence, vem, primeiro, como delírio, depois em forma de respiração: “projetos felizes?”; “Suspirar” e “expirar” aparecem despidos de conotações alegóricas, mas a ação (as ações) semelha(m)-se à pausa para respirar meditativa, com um profundo sentido de esvaziamento.
A seguir, há a hipótese de uma confissão que não vem, ou sai em forma de um gemido de retomada do início do poema. Antes disso, a expressão adverbial “às escuras” possui uma ambiguidade: o ser vem à noite, na escuridão, ou, também à moda decadentista, sorrateiramente confiar-lhe algo. O poema transita entre a metafísica e o psiquismo de um diálogo. Lopes e Saraiva veem:
[...] a metafísica das realidades materiais e psíquicas implícita no senso comum liquefaz-se, e, por exemplo (e esquematizando), uma esperança frustrada pode fruir o doce ocaso da realização que não teve; a substancialidade dos fenómenos objetivos e a unidade pessoal são interrogados; o próprio poema tende para uma música de palavras reduzidas a motivos visuais e auditivos. (LOPES, Óscar e SARAIVA, António José. História da literatura portuguesa. Rio de Janeiro: Cia Brasileira de publicações, 1969. p. 1000-1001)
Com a afirmação de Lopes e Saraiva, fica-nos a questão: será que existe algo além do poema e sua sonoridade? As letras são substâncias e se materializam realmente em poema? Ou tudo inexiste e fica o som? Com a repetição anafórica de uma estrutura verbal em tom de queixa, “Não sei que...”, que lembra uma reza, parece que o poeta nos dá sua resposta: o som existe. Se esse questionamento da materialidade de seres e objetos é próprio do grotesco, a “reza” se manifesta. Contudo, tal qual antes, o futuro do pretérito não nos dá a certeza de nada além da “reza” que se faz signo.
Pessanha vai além. A sexta e a sétima estrofes questionam a própria significação das palavras. Não temos um antagonismo entre elas. No entanto, em sua poética de sugestão, há uma confusão, um fusionismo à barroca: os sons diferentes dos signos “Suspirar”, “falar”, “gemer”, “rezar”, “murmurar”, são, ao mesmo tempo,complementares. O significado dessas palavras parece ser o mesmo ao eu poemático.Novamente a quebra da semântica se dá no discurso de Pessanha; agora, no entanto, opoeta parece formar uma subversão lúdica dos signos, significantes e significados.
Além de se aproximar de brincadeiras linguísticas muito próximas da linguagem da praça pública, esse jogo gera um estranhamento: a língua é intangível ao recetor da mensagem. É ela que causa vertigem. Com isso, cria-se um efeito de estranhamento, ligado ao grotesco de Wolfgang Kayser. A estrofe que encerra o poema dá um indício de que a voz, o pseudosser, deseja o eu lírico como parceiro, e o sentido desse último substantivo é absolutamente indefinível, tanto quanto os dois últimos versos proferidos pelo sujeito lírico: “— Ser teu companheiro?/ Não sei o caminho./ Eu sou estrangeiro.”
Numa outra perspetiva de leitura, os três versos marcados pelo travessão poderiam indicar até uma possibilidade de trajetória amorosa, mas a voz poemática, através das ferramentas estilísticas apontadas acima, não deixa que o tema do pseudodiálogo seja realmente expresso. O dizer é indizível. Obviamente que não é por isso que identificamos uma presença marcante do grotesco no poema, mas esse elemento unido ao trabalho que é feito com a linguagem possibilita um texto sobre uma voz-que-não diz. O oximoro produzido pelo pseudodiálogo construído no poema é uma espécie de tropo da modernidade. O paradoxo intelectual, que remete ao Barroco e ao seu complexo Concetismo, é tipicamente grotesco e está alinhavado ao que a modernidade experimenta constantemente. A temática grotesca só se faz enquanto linguagem.
A (des)construção sonora, semântica e sintática do texto em nosso ponto de vista é uma subversão da linguagem, permitida pela própria gramática e pela lógica interna do idioma, portanto grotesca. Além disso, no entanto, a poesia de Pessanha possui uma coerência na sua fragmentação formal que não demonstra um grotesco óbvio na linguagem. O texto possui marcas grotescas, mas na superfície elas não aparecem. A construção de linguagem e de imagens grotescas se amarra numa coesão absoluta do todo textual. O dito é o não-dito, uma lacuna, no máximo um interdito. O dizer se manifesta através do silêncio e este se torna uma forma moderna de ser marginal e grotesco.
Recortes do grotesco na história da literatura portuguesa: cantigas de maldizer; satíricos barrocos; Bocage; Camilo Pessanha; Mário de Sá-Carneiro e Alberto, José Horácio de Almeida Nascimento Costa, Universidade de São Paulo, 2012, pp. 148-152.
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ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª
edição).