segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

SAN GABRIEL (Camilo Pessanha)


 Nau São Gabriel

  
  
SAN GABRIEL I

Inútil! Calmaria. Já colheram 
As velas. As bandeiras sossegaram, 
Que tão altas nos topes tremularam,
 — Gaivotas que a voar desfaleceram.

Pararam de remar! Emudeceram! 
(Velhos ritmos que as ondas embalaram) 
Que cilada que os ventos nos armaram! 
A que foi que tão longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar, 
Vem outra vez abençoar o mar, 
Vem-nos guiar sobre a planície azul.

Vem-nos levar à conquista final 
Da luz, do Bem, doce clarão irreal. 
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!
  
Camilo Pessanha


Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:

Publicações anteriores :

Jornal Único, Macau (25 de Maio de 1898): é o primeiro de dois sonetos (12.1.5), datados de "Macau, 7 de Maio de 1898;

Contemporânea, (Maio de 1926), com a indicação de "Inéditos" e o título "São Gabriel".

Fonte da segunda ed.: recorte do Jornal Único, com correções autógrafas, enviado por Pessanha a João de Castro Osório.

    
SAN GABRIEL II

Vem conduzir as naus, as caravelas, 
Outra vez, pela noite, na ardentia, 
Avivada das quilhas. Dir-se-ia 
Irmos arando em um montão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica... Feeria
Do luar não mais deixes de envolvê-las!

Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa
Que do além vapora, luminosa,
E à noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas...
 — Almas tristes, severas, resignadas, 
De guerreiros, de santos, de poetas.
  
Camilo Pessanha
  

Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:

Publicações anteriores à segunda edição de Clepsidra:

Jornal Único, Macau (25 de Maio de 1898): é o segundo de dois sonetos (12.1.4), datados de "Macau, 7 de Maio de 1898;

Contemporânea, (Maio de 1926), com a indicação de "Inéditos" e o título "São Gabriel".

Fonte da segunda ed.: recorte do Jornal Único, com correções autógrafas, enviado por Pessanha a João de Castro Osório .
  
  
TEXTOS DE APOIO
  
O simbolismo e a constituição do sujeito poéticoMelissa Andrea Marietti (2008)
Camilo Pessanha e a gruta de Camões. Paulo Franchetti (2008)
Da ilha deserta ao cruzeiro do sul – uma leitura do motivo das navegações na poesia de Camilo Pessanha. Paulo Franchetti, 2009
Florescem as rosas bravas simbolistas, Antônio Donizeti Pires (2009)
 

     San Gabriel, 1898; Macau; [2] p.; ms. Nota(s): 1º vº :«Inutil! Calmaria. Já colheram». Letra do punho de José Pessanha. Publicado em «Jornal Único», Macau, 1898 e reunido em «Clépsidra». Lisboa : Ática, 1945, p. 45-48. BNP Esp. N1/7 
  
  
O SIMBOLISMO E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO POÉTICO
Em alguns poemas de Clepsidra, o sentimento de decadência da nação portuguesa também aparece relacionado à degradação íntima do eu. Em Pessanha o destino do sujeito poético não pode ser totalmente identificado de forma tão marcada com o da nação, como vimos em Nobre. No díptico de poemas “San Gabriel” a decadência pessoal é vista como parte da coletiva; o “nós” é integrador, portanto, por essa via vê se também a decadência do eu. […]
Os dois poemas são singulares no conjunto da obra de Pessanha, por um lado, por fazerem sobressair a voz coletiva e um “nós” em oposição às inúmeras referências ao eu individual da maior parte das composições de Clepsidra e, por outro lado, pela evidência ainda que sutil de certa “vontade” como tentativa de sair da situação de crise, expressa na invocação de São Gabriel.
Não por acaso, os poemas tratam de barcos no mar, que são, sem dúvida, metáforas do indivíduo ou de toda uma nação, os quais são como pequenas e frágeis embarcações, sem controle sobre sua vida e destino, sujeitos às inconstâncias da vida e do tempo, idéia expressa no poema pelas “ciladas que os ventos armaram”. Além disso, a imagem também denota a importância do mar na cultura portuguesa, já que Portugal é nação marítima e o mar é o meio pelo qual Portugal conseguiu ser imperial. Dessa maneira, os poemas evocam o período das navegações portuguesas, séculos XV e XVI, num sentido que é também o de configurar o ser português.
No primeiro poema, aparece o ânimo abatido de um povo e do Eu inserido nele, ambos encontram-se no final de um processo, pois as velas já foram colhidas, as bandeiras já sossegaram e as gaivotas já desfaleceram; essas são imagens que podem simbolizar as atividades de um país, bem como de sonhos e esperanças que esmoreceram. Por isso, o poema termina com a invocação de São Gabriel para que, assim como no passado, o povo possa reanimar-se. A decadência é tamanha que somente com o auxílio de forças sobrenaturais talvez seja possível conquistar o Bem, ou seja, as grandezas perdidas. Além disso, São Gabriel é justamente o nome de uma das naus que compunham a esquadra com que Vasco da Gama chegou à Índia. Ainda: São Gabriel é o anjo da Anunciação – é ele que anuncia a Maria que ela está grávida do Salvador.
A invocação de São Gabriel na tentativa de voltar à glória do passado continua na segunda composição. No entanto, já aparece a consciência dolorosa de um indivíduo que sabe ser impossível tal feito, uma vez que o passado não pode ser reconstruído, apenas sugerido por meio de traços mínimos, pois se encontra depositado na memória, coletiva ou individual, envolto em nebulosas lembranças. De facto, o passado feliz e glorioso da nação e também o do sujeito, ambos evocados pelos arquétipos de guerreiros, santos e poetas que se apresentam como “almas tristes, severas, resignadas” não pode retornar, limitando-se a residir na memória.
Ainda que a temática decadentista esteja presente nos poemas de Pessanha, como por exemplo, o paroxismo da existência, a apatia, o desânimo, eles superam o Decadentismo enquanto poética; sua poesia impõe-se como simbolista devido a razões estruturais, na medida em que desenvolve elementos estilístico-formais próprios do Simbolismo. Para muitos críticos do movimento, como Seabra Pereira e Óscar Lopes, Camilo Pessanha é o representante mais “puro” do Simbolismo em Portugal, sobretudo se pensarmos naquele de raiz francesa. Segundo Seabra Pereira:
Uma ampla realização do Simbolismo só poderá ser buscada em Camilo Pessanha, descobrindo na Clepsidra um singular fenômeno adentro do jogo dialético “conteúdo/forma”; ao contrário do que se verifica nos assomos supra-decadentistas dos outros poetas, em Pessanha como se desenvolve o seguinte esquema (forçosamente simplista): uma “mensagem” originária e prevalecentemente decadentista toma o passo de uma “expressão” mais avançada e que parcialmente a redimensiona – a depura, a subtiliza ou a supera – num sentido simbolista. (PEREIRA, José Carlos Seabra, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de estudos Românicos, 1975, p. 457.)
  
A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Paul Verlaine e na de Camilo Pessanha, Melissa Andrea Marietti. São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008, pp. 33-36
  
  
  
  São Gabriel
  
  
   

  CAMILO PESSANHA E A GRUTA DE CAMÕES
  
            Do ponto de vista da articulação das idéias, entretanto, “San Gabriel representa uma continuação do movimento reflexivo presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional, o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um esforço frustrado.
            Publicado num jornal especial dedicado à efeméride, em Macau, “San Gabriel” é uma celebração. Como celebração, o poema se deixa ler por referência à viagem de 1498.
            Iniciando in media res, surpreendemos a nau capitânia, que dá título ao díptico, no centro de uma calmaria. Uma voz que se articula em primeira pessoa do plural inicia então uma prece, que se estenderá por todo o resto dos versos, dirigida ao arcanjo que tem o mesmo nome da nau. Atendida a prece com a brisa nova que põe a frota em movimento, a voz se ergue mais uma vez e roga que a viagem seja levada a bom termo.
            Entretanto, ao longo do poema algumas palavras e imagens vão como que minando a leitura feita num registro puramente celebratório: a insistência na retomada de um movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico, a se deixar ler como repetição de uma ação já praticada no passado. Quero dizer: a voz que nos diz “nós” começa a se deixar ler como parte de um tempo outro, que não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer, parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é um ponto a destacar.
            Mas de momento, importa observar como essa navegação outra, que se propicia pela intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz láctea sobre a noite, clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora.
            Prosseguindo nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registro alegórico. É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele trajeto subitamente paralisado:
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?
  
            Dessa perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige para um novo porto: não mais se trata de buscar os tesouros do Oriente, mas sim de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que embasaram a conquista histórica.
            Embora esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional, próximo do soneto que comentamos anteriormente, é sensível que os dois poemas apresentam diferenças de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da conquista.
            Enquanto no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, aqui essa perspectiva se delineia: é preciso retomar o movimento, o impulso em direção à descoberta, mas num plano outro, em que o objetivo a alcançar já não pertence a este mundo, ou seja, não pode jamais ser objeto de conquista.
            Não é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que refletiam nos olhos as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projeta-se na distância infinita: é a nebulosa que é agora o destino dessa nau que só pode mesmo navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado.
            É essa transposição de uma viagem marítima e carnal em uma fantasmagórica navegação entre as estrelas, com velas banhadas de luar, em busca da luz e do Bem, que vemos no “San Gabriel” de Pessanha e que nos parece, no que diz respeito à sua reflexão constante sobre as glórias e o futuro da Pátria de Camões, a sua mais impressiva e acabada realização.
            O seu fim, o seu desígnio já não é senão o encontro com o passado. Mas não na forma da retomada ou transfiguração da energia perdida, e sim apenas na contemplação dos exemplos de resignação, tristeza e severidade. Nessa navegação para a desistência se afirma a perspectiva desesperançada de Pessanha, no limiar da modernidade portuguesa. E é essa perspectiva toda negativa, que não ensaia qualquer redenção, nem no nível pessoal, nem no coletivo, que distingue o tom específico de Pessanha dos vários tons modernistas que lhe são contemporâneos.
  
Camilo Pessanha e a gruta de Camões”, texto lido no Colóquio 
“Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”, 
Universidade Paris Oeste/Nanterre, novembro de 2008. Paulo Franchetti

 

  

   

DA ILHA DESERTA AO CRUZEIRO DO SUL – UMA LEITURA DO MOTIVO DAS NAVEGAÇÕES NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
  
Desde o primeiro momento, percebemos que podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da decepção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as images/stories e símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
Quero dizer, pela forma como se apresenta, o poema opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade desta formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual o secundário, isto é, qual o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De facto, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX. Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence” – ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo à rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados. Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar oAntónio – seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta frase sinistra:
Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
  
Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele a nível imagético.
Também no soneto de Pessanha, que vimos comentando, coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional como Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de decepção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a decepção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade.
Antes de prosseguir no comentário desse poema, talvez valha a pena referir que essa maneira de conceber a morte é recorrente na poesia de Camilo Pessanha. Comparece, para citar só um exemplo, num outro poema bem conhecido, o que começa por “Porque o melhor, enfim,/ É não ouvir nem ver…”, em que o anseio maior do poeta é por estar morto e enterrado, sem sentir nada, indiferente ao que se passa do lado de fora da tumba. O ideal de felicidade é, como no soneto que vimos comentando, negativo:
E eu sob a terra firme,
[...]
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.
  
Como podemos perceber, nesses dois poemas a felicidade provém da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Não é algo positivo, que se obtenha pelo esforço ou pela sorte. Não é satisfação. Pelo contrário, é uma condição negativa. No soneto, os olhos abertos não retêm o ideal, apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, porque não vos fixais?”
Na lírica de Camilo Pessanha, as images/stories que fluem incessantemente são fonte de dor, motivo de angústia. A sua ausência, por outro lado, também é vazio e dor: quando as images/stories já não fluem pelos olhos, tornam-se eles áridos desertos, espelhos inúteis sem possibilidade de redenção. Apenas na morte, na supressão do desejo, os olhos podem refletir a realidade e o ideal sem dor, sem vontade de apreensão e de paralisação do fluxo que por eles passa. Por isso, como em outro lugar já tentei indicar, não me  parece inteiramente certo dizer que Pessanha busca, como certo Pessoa depois buscará talvez, uma espécie de inconsciência consciente de si mesma, como remédio impossível para o dilaceramento existencial. Em Camilo Pessanha, não parece tratar-se nunca da consciência da inconsciência, esse paradoxo tão pessoano. Tratar-se-ia, antes, de um outro paradoxo, o da sensação de insensibilidade. Ao longo dos versos de Camilo Pessanha, o que se percebe é um anseio pela eliminação da vontade, pela eliminação dos sentimentos que se vão associando às sensações, numa clave talvez  próxima do que é proposto como estratégia de ascese por Schopenhauer e pela leitura novecentista do budismo indiano.
Entretanto, voltando ao poema em pauta, o que é realmente notável é como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o poema num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal. O que, porém, é mais interessante nesse poema é o facto de que, a partir de uma só palavra, evoca-se todo um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me, é claro, à Ilha, aí grafada com maiúscula.
Creio que é bastante sensível que essa Ilha deserta ecoa, por contraste, a Ilha dos Amores camoniana. No poema quinhentista, como sabemos, após a descoberta e a conquista a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo. No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda. A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em Un voyage à Cythère. Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucede apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
Embora este soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele se confluem, por meio da simbólica das navegações, a trajetória nacional e a percepção do destino individual do poeta. No que diz respeito estritamente à visão de Pessanha do que teria sido a grande epopéia da nação portuguesa, parece também claro que o soneto aponta numa determinada direção. A julgar pela imagem com que se encerra, a dos mortos refletindo nos olhos as estrelas, podemos pensar que o que permanece da grande aventura, no grave momento histórico por que passa Portugal, é o móvel da ação e da conquista. São as formas inconsistentes, entrevistas no calor da batalha, com a espada entre os dentes, o que o poeta lamenta perder. No âmbito das images/stories do soneto, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospectivamente o móvel da empresa e inveja-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala neste soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
Não temos qualquer indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a um outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado San Gabriel, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.[4] Do ponto de vista da articulação das idéias, entretanto, San Gabriel representa uma continuação do movimento reflexivo presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional, o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um esforço frustrado.
Publicado num jornal especial dedicado à efeméride, em Macau, San Gabriel é uma celebração. Como celebração, o poema se deixa ler por referência à viagem de 1488: iniciando in media res, surpreendemos a nau capitânea, que dá título ao díptico, no centro de uma calmaria. Uma voz que se articula em primeira pessoa do plural inicia então uma prece, que se estenderá por todo o resto dos versos, dirigida ao arcanjo que tem o mesmo nome da nau. Atendida a prece com a brisa nova que põe a frota em movimento, a voz se ergue mais uma vez e roga que a viagem seja levada a bom termo.
Entretanto, ao longo do poema algumas palavras e images/stories vão como que minando a leitura feita num registro puramente celebratório: a insistência na retomada de um movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico e um tanto feérico, a se deixar ler como repetição de uma ação já praticada no passado. Quero dizer: a voz que nos diz “nós” começa a deixar-se ler como parte de um tempo outro, que não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer, parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é uma outra questão. O que importa agora é observar como essa navegação outra, que se propicia pela intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz láctea sobre a noite, clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora.
Prosseguindo nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registro alegórico. É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele trajeto subitamente paralisado:
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?
Dessa perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige para um novo porto: nem se trata mais de buscar os tesouros do Oriente, mas sim de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que embasaram a conquista histórica.
Embora esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional, bastante próximo do soneto que comentamos anteriormente, é bastante sensível que os dois poemas apresentam diferenças notáveis de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da conquista. Enquanto no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, no díptico essa perspectiva se delineia com bastante vigor: é preciso retomar o movimento, o impulso em direção à descoberta, mas num plano outro, em que o objetivo a alcançar já não pertence a este mundo, ou seja, não pode jamais ser objeto de conquista. Não é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que refletiam nos olhos as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projetam-no na distância infinita: é a constelação do Cruzeiro do Sul que agora é o objetivo dessa nau que só pode mesmo navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado. Conscientes da impossibilidade da conquista, os novos argonautas navegam apenas pelo impulso de navegar, pelo desejo de se dedicar à busca do que é inalcançável.  Já os que os precederam, e desapareceram antes do momento em que se ergue a voz reflexiva – os mortos da batalha –, não são mais invejados, nem apresentados como felizes buscadores de uma ilusão. O que os eleva e distingue é o facto de terem pautado a sua vida pelo ideal – são guerreiros, santos e poetas. Mas nem para esses existe qualquer triunfo ou realização, exceto a de habitarem essa estranha nebulosa que se desloca com o horizonte, a guiar a trajetória dos novos argonautas que só podem almejar, afinal, a imitá-los na forma do esforço e não no seu objetivo, sob pena de também se tornarem, como as velhas almas namoradas, tristes e resignados ao fracasso.
Em termos históricos, a alegoria se deixa ler mais ou menos como: é preciso aprender com o primeiro fracasso, e redimensionar a ação, retomando, em outro nível, os objetivos e as forças que moveram os antigos descobridores, mas sem esperança de qualquer triunfo que não seja o próprio movimento e a própria busca do que já não se pode achar.
Nesse momento, creio que para todos já se vai tornando sensível uma outra voz que se faz ouvir em continuação à de Pessanha, retomando essa idéia e com ela tecendo um novo diálogo. Sob os poemas de Pessanha aqui analisados, a voz de base era a de Camões. Mas por sobre o retábulo em que navega pela segunda vez a San Gabriel, o que ouvimos agora é a voz de Fernando Pessoa, que em Mensagem retomará o espírito desses sonetos comemorativos. Aqui está, creio, a consonância que originou aquele apontamento de 1934, com que abrimos estas considerações. Mas já bem antes de a Mensagem se configurar como um poema nacional, Pessoa enveredava pelo caminho aberto por Pessanha, no final de um artigo sobre a nova poesia portuguesa que publicou na revista A Águia. Dizia aí o jovem poeta, meditando sobre a saída possível para a Pátria e para a cultura portuguesa: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova que não existe no espaço, em naus que são cons­truídas ‘daquilo que os sonhos são feitos’. E o seu ver­dadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arreme­do, realizar-se-á divinamen­te”.
É mesmo essa transposição de uma viagem marítima e carnal em uma fantasmagórica navegação entre as estrelas, com velas  banhadas de luar, em busca da luz e do Bem, que vemos no San Gabriel de Pessanha e que nos parece, no que diz respeito à sua reflexão constante sobre as glórias e o futuro da Pátria de Camões, a sua mais impressiva e acabada realização.
  
Mapa da língua, Paulo Franchetti, 2009-04-05.
   
  Vem conduzir as naus, as caravelas,

     

FLORESCEM AS ROSAS BRAVAS SIMBOLISTAS
  
António Quadros afirma que o tríptico “San Gabriel” e o poema Castelo de Óbidos3 foram “[...] escritos no espírito regeneracionista do pós-Ultimatum, em convergência com as linhas lusitanistas, mitogênicas ou mesmo saudosistas salientes sob formas várias na poesia [...]” (QUADROS, 1989, p.112) portuguesa de então. Contudo, o crítico evidencia que esta primeira interpretação dos poemas, “[...] que constituem afinal um apelo e uma oração ao arcanjo, em favor da Pátria decaída, que urge reerguer da queda ou fazer renascer das cinzas.” (p.113), é ultrapassada pelo “[...] idealismo universalista [...]” (p.114) que inflama os poemas, onde também é patente, além do “[...] desejo de sublimação [...]” (p.114), a “[...] poética arquetipal da viagem, da aventura, da iluminação da noite por uma gesta de superação humana [...]” (p.114). Em segundo lugar, é evidente o caráter metapoético e intertextual das composições (veja-se o soneto “Vem conduzir as naus, as caravelas”), seja em relação ao momento (já que se inserem numa rede que, poeticamente, restaura as glórias pátrias de antanho e atinge inclusive a Mensagem de Fernando Pessoa), seja em relação às figuras tutelares de poetas (Camões, sobretudo), santos, guerreiros, descobridores e figuras da realeza que ainda sobreviveriam como mitos, símbolos ou arquétipos: aqui, ao lado de Camões, do Gama, de D. Sebastião ou de São Francisco Xavier, ganha força (simbólica e alegórica, diríamos) a “Doce Infanta Real” a quem se dirige o eu-lírico de Camilo Pessanha. Conforme Quadros, é como se o futuro da nação (e/ou a recuperação de uma Idade de Ouro perdida) dependesse da fidelidade e do respeito incondicionais a tais figuras – sabemos bem como estas têm sido desconstruídas, crítica, irônica e parodicamente, na literatura portuguesa mais recente –, já que seriam “[...] as traves mestras da nossa persistência vital, enquanto povo autônomo e criador [...]” (p.114).
Enfim, Quadros elabora um rol do que considera os oito principais Leitmotive da poesia de Camilo Pessanha, a fim de tentar apreendê-la em sua profundidade. O tema explorado nos poemas enumerados acima é descrito por ele como “intervalar”, esporádico: “Intervalarmente, um sentimento ao mesmo tempo decadentista e regeneracionista, romantismo dos ambientes e das glórias do passado heróico, apelo ao ressurgimento da pátria antiga.” (p.105; grifos do autor). Em termos de António José Saraiva e Óscar Lopes, isto equivaleria a certo “neo-romantismo cavaleiresco e caraveleiro”, conforme já visto.
Pode-se dizer que este temário ecoa também aquele que compreende “[...] a saudade de um passado miticizado, contudo destruído, e onde ficaram sepultadas todas as esperanças de antanho.” (p.105; grifos do autor), mas aqui parecem convergir os temas mais pessoais, ou algumas reminiscências míticas do poeta, como nos sonetos dedicados a Vênus ou a Maria Madalena.
Um terceiro Leitmotiv enquadraria a fase inicial do autor (1885-1889), embora Quadros frise a distância que há entre esta e sua produção posterior. Assim, a primeira fase estaria marcada pelo “[...] desejo pela mulher, desejo sensual e também desejo de amor [...]” (p.104; grifos do autor), como é patente nos poemas “Lúbrica” e “Desejos” (refundição do primeiro, na verdade), ambos recusados pelo autor na primeira edição de Clepsidra (1920).
Enfim, os outros cinco Leitmotive são praticamente indissociáveis e compreenderiam a obra madura de Pessanha. São eles: “[...] a consciência de que o homem vive uma condição dolorosa [...]” (p.104; grifos do autor), conquanto da dor possa vir a transcendência ou a sublimação; “Em conseqüência, a consciência do sofrimento humano num mundo sem sentido, a solitude do ‘eu’ e o desejo de um sossego, de uma paz ou de um silêncio que só o sono, o esquecimento, o estado nirvânico ou a morte podem dar.” (p.105; grifos e aspas do autor), como é patente nos poemas de abertura e fechamento de Clepsidra, respectivamente “Inscrição” e “Poema final”; “[...] o ‘desejo de amor’ a adquirir uma carga de interrogação, de dúvida, de frustração, sendo a mulher (por vezes identificada com a Natureza) uma presença evanescente, fugidia, incapturável [...]” (p.104; grifos e aspas do autor), como se depreende do soneto adiante analisado, “Floriram por engano as rosas bravas”; “Ao mesmo tempo, o desfazer dos ideais, a transformação dos sonhos em quimeras ou utopias irrealizáveis.” (p.104; grifos do autor); finalmente, em convergência mais acentuada com este, “[...] a angústia da passagem do tempo, o não sentido do tempo, melancolia diante de um ‘devir’ infortunado.” (p.104-105; grifos e aspas do autor).
  
 Antônio Donizeti PIRES (UNESP/Araraquara). Texto Poético. Revista do GT Teoria do Texto Poético (ANPOLL) 
(ISSN: 2808-5385), Vol. 6. 2009 – 1.º Sem.
  
________________ 
(3) Reproduzo a estrofe inicial e a final do poema: “Quando se erguerão as seteiras, / Outra vez, do castelo em ruína, / E haverá gritos e bandeiras / Na fria aragem matutina? // [...] E quando, ó Doce Infanta Real, / Nos sorrirás do belveder? / – Magra figura de vitral, / Por quem nós fomos combater...” (PESSANHA, 1992, p.59). O próprio António Quadros evidencia a “[...] influência directa destes poemas, o Castelo de Óbidos e sobretudo San Gabriel, na Mensagem, de Fernando Pessoa, que deles toma tantos acentos simbolistas, decadentistas, regeneracionistas, bem assim como o espírito da síntese, a concisão, o idealismo.” (QUADROS, 1989, p.114).
     
  
   

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 “O Naufrágio das Caravelas”, Izabela Guimarães Guerra Leal. In: O MARRARE ‑ Periódico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ, Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X

 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/20/san.gabriel.aspx]

domingo, 19 de janeiro de 2014

DEPOIS DA LUTA E DEPOIS DA CONQUISTA (Camilo Pessanha)



  
  
Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático! 
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, ‑ a perder de vista. 

Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
‑ Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas! 

Quem vos desfez, formas inconsistentes, 
Por cujo amor escalei a muralha,
‑ Leão armado, uma espada nos dentes?

Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...
  
Camilo Pessanha
  
  
André Letria, MAR, 2014

  
  
Interessante também é que mesmo o ato heroico da conquista aparece contaminado, nos versos de Pessanha, por uma aura de deceção. É como se entre o desejo e o instante da sua realização houvesse um intervalo intransponível, um toque mágico que transforma em meros dejetos os objetos outrora revestidos de encanto: “Depois da luta e depois da conquista / Fiquei só! Fora um ato antipático! / Deserta a Ilha, e no lençol aquático / Tudo verde, verde, – a perder de vista.”
Trata-se da presença de algo que deforma os objetos em que toca, que retira a consistência das coisas, transformando-as em projeções, meras imagens de sonho. A perceção da precariedade do mundo conduz o poeta a uma série de interrogações: “Porque vos fostes, minhas caravelas, / Carregadas de todo o meu tesoiro?” ou ainda “Quem vos desfez, formas inconsistentes, / Por cujo amor escalei a muralha, / – Leão armado, uma espada nos dentes?” (PESSANHA, 2003, p. 132)
E é justamente aqui, na perceção aguda da inconsistência dos desejos, no intervalo que assinala de forma explícita a presença de uma força que submete tudo o que se encontra no mundo à mudança, é justamente nesse intervalo que enxergamos nitidamente a ação de um tempo destruidor, de um tempo que desgasta e altera todas as coisas à sua volta, e é também aí que se delimita um ponto essencial da poética de Pessanha, pois, para além da decadência da pátria, e portanto da impossibilidade dessa de alimentar com seu húmus o espírito dos poetas, há, em seus versos, uma problemática muito mais ampla, que não se restringe apenas ao solo português, e que foi compartilhada por muitos outros poetas de sua época. A perceção de uma impotência generalizada, que não é somente a lamentação de um sujeito entediado ou insatisfeito, assume a forma da constatação de que não é possível fazer cessar a finitude e a temporalidade.
  
O Naufrágio das Caravelas”, Izabela Guimarães Guerra Leal. 
In: O MARRARE ‑ Periódico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ, Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X

  
1425-1450, Tin-glazed earthenware bowl, with lustre; Málaga
       

         […] vou comentar brevemente dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.
São eles o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel” – que foi escrito por ocasião do quarto centenário da descoberta da Índia – e o soneto “Depois da luta e depois da conquista”, de data incerta, mas ao que tudo indica escrito em Macau.
Comecemos por este último: Depois da luta e depois da conquista”.
Podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da deceção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as imagens e os símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
Quero dizer, pela forma como se apresenta, o soneto opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade dessa formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual é o secundário, isto é, qual é o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De facto, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX.
Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”, ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo a rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados.
Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” – seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta estrofe sinistra:
Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
  
Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele no nível imagético.
Também no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de deceção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a deceção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Uma felicidade apenas negativa, pois provém apenas da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não retêm o ideal, nem contemplam a sua realização. Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, por que não vos fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo congelado e sem consecução.
O que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal.
E destaca-se, na leitura, o facto de que uma só palavra é capaz de evocar, inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores camoniana.
No poema quinhentista, após a descoberta e a conquista, a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo.
No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em “Un voyage à Cythère”.
Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucedem apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
Embora esse soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele confluem (por meio da simbólica das navegações), a trajetória nacional e a perceção do destino individual do poeta.
No âmbito das imagens do poema, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospetivamente o móvel da empresa e invejam-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala nesse soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
Não temos indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
  
Camilo Pessanha e a gruta de Camões”, texto lido no Colóquio 
“Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”, 
Universidade Paris Oeste/Nanterre, novembro de 2008. Paulo Franchetti
  
 


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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/19/depois.da.luta.aspx]