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Adam Zagajewski |
MUDANÇA
Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.
Adam Zagajewski, Sombras de Sombras
Seleção e tradução de Marco Bruno, revisão de
Jorge Sousa Braga. Lisboa, Editora Tinta da China, 2017
«’Porque é que os
sonhos pequenos se dissipam ao chegar o dia / enquanto os grandes continuam a
crescer?’, pergunta Adam Zagajewski. E havemos de ficar com a ideia de que
os ‘sonhos pequenos’, mais humanos, são talvez preferíveis aos grandes, tantas
vezes atrozes. Poeta polaco, durante muitos anos exilado, tão ‘esmagado pela
fatalidade’ e embebido nas convulsões da História como os seus compatriotas
Milosz ou Herbert, Zagajewski começou por escrever poesia comprometida,
oposicionista, mas foi evoluindo para uma atitude meditativa, irónico‑metafísica,
atenta a pequenas epifanias e aporias. A memória individual ou coletiva, a
natureza e a música, matérias líricas, coexistem com aparições espectrais de
personagens da história intelectual (Heraclito, Pascal, Goethe) ou da política
europeia (Danton, Napoleão, Beria), gente que interpelou o sentido da História
e o sentido das coisas, e que descobriu que as ‘obras do pensamento humano
soçobram’.
Poeta lúdico e grave,
espiritual e cético, legível e enigmático, Adam Zagajewski é um ‘místico da
imaginação liberal’, como lhe chama, no prefácio a esta edição, o crítico Adam
Kirsch.»
Pedro Mexia
https://tintadachina.pt/produto/sombras-de-sombras/
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Adam Zagajewski, https://sol.sapo.pt/, 2018-06-25 |
Adam
Zagajewski. ‘A minha ambição é nunca dizer nada que possa trair o mistério da
vida’
A Casa Fernando Pessoa trouxe a Portugal um dos mais
cativantes poetas hoje vivos em qualquer língua. Aos 73 anos, Adam Zagajewski
encontrou a urgência que se explica serenamente, e é capaz de encarar os
terríveis desafios da atualidade sem trair o silêncio quando este é a única
resposta.
Será dos poucos poetas hoje
vivos, traduzidos e, mais importante, lidos um pouco por todo o mundo
cujo nome se terá fartado de ser escrito na lista dos tiranos. Adam Zagajewski
começou por uma poesia marcadamente política, e a dissidência valeu-lhe a
proibição de publicar no seu país, a Polónia. Exilado durante duas décadas em
Paris, após a instauração da Lei Marcial de 1981, viveu também nos EUA, em
Houston, dando aulas na Universidade do Texas. Em 2002, regressou a Cracóvia.
Mais do que os prestigiados galardões internacionais que o têm consagrado, goza
a dignidade de ter o nome na lista negra do atual Governo nacionalista e
anti-democrático polaco. A sua poesia é uma réplica sagaz à mesquinha
petulância do poder, dando ânimo aos fugitivos quando se vêem sem destino
e ouvem os seus «carrascos a cantarem alegremente». Um modo de salvar a
consciência e até a esperança num «mundo estropiado». Perpassada sempre pela
tensão meditativa e irónica própria de quem se sente deslocado, faz de
migalhas um repasto, alimenta-se desses «certos curtos sinais», sabotando o
fatalismo, brincando debaixo da mesa da tragédia. Esteve connosco este mês, no
âmbito de uma louvável iniciativa da Casa Fernando Pessoa, que assinalou os 130
anos do nascimento do patrono da instituição, retomando os encontros
internacionais de poesia e lembrando, por uma vez, que muito mais do que um
ególatra, Pessoa soube cultivar em si aquela faminta curiosidade pelo mundo que
faz de um só uma multidão.
Gostou de participar na sessão
na Casa Fernando Pessoa ao lado dos poetas portugueses?
Foi comovente. Tive a percepção de que este livro [antologia Sombras de Sombras, ed.
Tinta-da-China] que foi publicado cá fez com que eu tivesse leitores em
Portugal. É sempre uma surpresa agradável ver que os poemas dizem alguma coisa
às pessoas depois de traduzidos. Além disso, pareceu-me que estava em boa
companhia, com belos poetas. Foi, por isso, um verdadeiro prazer.
Uma coisa que fascina tantos
leitores da poesia polaca é esta poderosa erupção de uma geração formidável.
Nos conflitos que expressam está refletida a conturbada história do século XX.
Acredita que a forma como a História maltrata um povo convida a poesia a
elevar-se a um nível onde pode desenvolver uma perspetiva mais do que local, do
mundo?
Nas atrocidades do século XX não há nada que automaticamente sirva de gatilho à
poesia, como é óbvio. Foi esse o grande mérito da geração de poetas que me
antecede, que consciente ou inconscientemente foram capazes de responder a
esses acontecimentos não do ponto de vista da nação mas de um ponto de vista
universal. Parece-me que essa é a questão chave: se se é capaz de responder à
crueldade do ponto de vista de uma nação ou cidade, ou se se é capaz de abarcar
um fundo universal. Estes grandes poetas entendiam esta diferença. Sendo que
raramente o formularam como um programa, mas perceberam que a melhor resposta
não era falar em nome dos polacos mas em nome do que há de humano e nos implica
a todos. Tivemos uma geração muito relevante de poetas românticos, entre eles o
mais célebre será [Adam] Mickiewicz, que viveu na primeira metade do século
XIX. Eram grandes poetas mas não captaram o essencial. Nesse período a Polónia
não existia enquanto Estado nesse século, e havia a crueldade dos diferentes
impérios que dividiam entre si o atual território polaco. Mas os românticos,
por qualquer razão, não foram capazes de encarar a dimensão universal das suas
agruras. Eram muito talentosos, excelentes poetas, mas não marcaram o mundo.
Por isso, admiro imensamente a geração que me precedeu, pelo seu universalismo.
E foi algo que tentei aprender uma vez que me parece a resposta adequada.
Em Portugal, temos grandes
poetas como Pessoa ou Herberto Helder. Mas parece haver sempre o receio da
influência destas figuras, aquela noção da “angústia” como a formulou Harold
Bloom. Parece que o emergir de um gera à sua volta um terrível silêncio e apaga
tudo o resto. Acha que isto resulta de um equívoco em que a poesia parece ser
tomada como um desporto de competição? Há aqui uma ideia distorcida de como a
poesia acaba por ser muitas vezes uma empresa coletiva? Como encara este
equilíbrio entre solidão e tradição?
É diabolicamente complicado isso. Mas se pensarmos na música clássica, apareceu
Beethoven e Brahms. Durante muito tempo este viveu convencido de que não
passava de um discípulo do outro. Para nós essa questão nem se põe. Brahms é
simplesmente um grande compositor. Quando Harold Bloom diagnosticou o problema
da ‘angústia da influência’ parece-me claro que exacerbou algo que não precisa
de ser encarado com todo esse dramatismo. Além disso, os próprios poetas não
sabem muito bem aquilo que estão a fazer. O criador, o artista nunca controla
completamente a sua criação. No caso de poetas polacos como [Zbigniew] Herbert,
[Wislawa] Szymborska, [Czeslaw] Milosz, e também [Tadeusz] Różewicz – os quatro
grandes nomes da geração que me precedeu –, partilhavam aquilo que fez deles
grandes poetas. Hoje, podemos lê-los como vozes distintas, perceber as subtis
diferenças que os separam, o fôlego da imaginação que os individualiza… São
traços que ficam claros a esta distância. Cada um deve fazer o seu trabalho e,
como disse, o tempo decidirá o que permanece. O tempo é um juiz cruel, a
história passa sentenças bastante duras. Um dia se verá o que ficará a guardo
do esquecimento no que toca aos poetas. Não passo noites em claro por causa
dessa questão.
Na sessão na Casa Fernando Pessoa disse que há hoje uma geração mais nova de
poetas polacos que procurou antagonizar as precedentes, e que, desde logo,
dispensava bem uma certeza clareza, ou até uma mensagem discernível. É uma
diferença de peso face a gerações que não se podiam dar ao luxo de não ter uma
mensagem nos seus poemas. Parece-lhe que esta geração que reclama a profusão
tantas vezes impenetrável de John Ashbery significa que cada vez menos a poesia
e a arte estão interessadas em ir além da virtude narcísica, buscando um
sentido?
Estas noções são transitórias. Na Polónia, esta geração que se colocou sob a
tutela de Ashbery, e que hoje anda pelos 50 anos, também já não são os novos
poetas. É o tempo a trabalhar para todos, não apenas para mim. E hoje, os novos
poetas, que andam pelos 25, 30 anos, parece-me que recuperaram essa busca de um
sentido e de uma mensagem… Não há nada de permanente nestas alterações ou
evoluções. Muitas vezes são apenas a bandeira de uma geração, e 20 anos depois
de serem hasteadas, estão dobradas e esquecidas no sótão. É muito cedo para
dizer, mas parece-me que há já uma atitude diferente da nova geração, e esse
modelo de uma poesia que investe mais pelo lado linguístico, interessante na
sua incompreensibilidade, para os mais novos já não tem grande apelo. É claro
que provocou uma radical diminuição do número de leitores de poesia, porque os
leitores comuns anseiam por um sentido partilhável. Nós vivemos em busca de um
sentido, e é muito difícil sentir-se alimentado por uma poesia que não nos traz
nenhum sentido ou mensagem. Posso estar enganado, mas acho que estas
discordâncias são efémeras.
Nasceu na Ucrânia no final da
II Guerra, tendo sido obrigado a ir para a Alemanha, uma cidade que afinal
acabou por fazer parte da Polónia. Devido à sua dissidência política emigrou
para Paris, onde viveu duas décadas…Hoje, quando vê tantas pessoas serem
forçadas a abandonar as suas casas, cidades, países e até continentes, quando
as fronteiras parecem em si mesmas ser uma noção que atraiçoa a ideia de
humanidade, com estas multidões de refugiados que irão obrigar a Europa a
definir-se, e a dizer se pretende ser uma fortaleza capaz de manter estas
pessoas ao largo, protegendo o estilo de vida dos europeus, como vê a forma
como milhões de pessoas vivem vagando sem um destino certo?
De um ponto de vista puramente político, demográfico, não sei o que dizer. É um
desafio terrível para se assumir uma posição definitiva. Estou mais para o lado
esquerdo do espectro político, e gostava de ajudar os refugiados, mas também
percebo o perigo para a Europa se 200 milhões de pessoas deixarem África e
vierem para cá. A Europa já não será a Europa. Não invejo os políticos que
tenham de tomar decisões neste quadro. Há um certo luxo em ser-se um poeta e
não se ter uma atuação a um nível prático no que respeita a estas questões.
Ninguém me pede que me posicione em relação a este problema. Você está a pedir-mo.
De um ponto de vista intelectual, humanitário, é claro que sinto uma enorme
compaixão por estas pessoas, mas não sou eu o responsável pela gestão dos
recursos, da segurança… Neste caso, devo assumir que não tenho grande coisa que
possa contribuir para este debate. É fácil ser-se compassivo no campo
artístico, porque não se é obrigado depois a abandonar a sua casa para que os
refugiados ali possam viver. Depois de uma intervenção o artista volta para sua
casa. Portanto, eu simplesmente não tenho uma resposta para este problema.
Nunca fui um homem de acção. Confesso o meu desamparo em relação a este
tema.
Das notícias que nos vão
chegando da Polónia, parece que, à semelhança da Hungria, se trata de um país
que tem trilhado uma deriva ameaçadora no sentido de um novo modelo de
autoritarismo, com políticas de extrema-direita. Recentemente foi até aprovada
uma lei que criminaliza a associação da Polónia aos campos de extermínio, bem
como outros episódios ligados ao massacre de judeus. Como é chegar à velhice e
reencontrar-se com as sombras que povoaram a sua infância?
Estou extremamente preocupado com o que se tem passado a nível político no meu
país. O atual governo está a trair o princípio democrático da pluralidade. A
Europa assenta nesse princípio, e é o pluralismo que permite que diferentes
países contribuam com diferentes perspetivas. Enquanto a paz for respeitada,
essas diferenças podem coexistir. Cada país democrático é um coro de vozes. Não
é uma condenação daqueles que pensam de forma diferente. Este governo
introduziu um novo tom, o da condenação, da rejeição. Rejeitam em absoluto os
seus predecessores. Falam do anterior governo como de traidores da pátria. Lech
Wałęsa, o grande líder e ativista que co-fundou o Solidarność [Solidariedade, a
primeira união sindical independente do país], é acusado de ser um informador
da polícia. Tudo isto é muito inquietante. A nuvem da retórica, da vontade de
alterar a lei para refletir visões tendenciosas. Do ponto de vista do cidadão,
é muito triste ver que praticamente aboliram a independência do sistema
judicial. Estão a fazer de tudo para que o sistema judicial seja subsidiário do
poder executivo. E esta retórica do nacional catolicismo, esta direita que
julga ser detentora da verdade… Dantes, sendo um dissidente, eu integrava a
lista negra e não podia publicar livros. Hoje, estou de novo na lista negra.
Posso publicar livros porque hoje as editoras são empresas privadas, e se, na
prática, ainda gozamos de grande liberdade, há agora uma imensa nuvem negra a
pairar sobre o país.
Se pode publicar na mesma, em
que se traduz o facto de estar nessa lista negra?
Quando digo que estou na lista negra, isso por agora não quer dizer muito. É
uma lista em que entram os criadores e artistas que não são afetos ao regime e
por isso estão afastados de todas as cerimónias oficiais, dos privilégios com
que o aparelho celebra aqueles que lhe são leais. Pela minha parte, não peço
grandes atenções, e não me importa não ser convidado para qualquer das festas
que organizam, mas se ainda se passa tudo a nível simbólico, e não me sentindo
atacado de qualquer forma, preocupa-me esta mentalidade de pôr o nome de certas
pessoas numa lista negra, de dividir entre os bons e os maus. Os bons são os
que vão à igreja diariamente e mostram um enlevo nacionalista, ao passo que aos
outros acusam de ser perigosos liberais de esquerda… Isto contribui para um
clima de grande suspeição, e desagrada-me profundamente. O que me dá ânimo é o
facto de não estar só neste desagrado com o governo. Há um forte desprezo da
intelligentsia polaca face a este governo, e sinais de clara resistência a esta
ideologia. Não se trata de uma nação subjugada a este governo. A sociedade
polaca tem-se defendido e de forma vigorosa. Não me parece, por isso, que isto
seja uma deriva sem retorno. Acho que temos de aguentar apenas uns anos disto.
Mas, por agora, é não apenas desagradável, é perigoso e chega a ser hediondo.
Viktor Orbán gozam de um evidente favor
popular. Ao mesmo tempo, o mundo está ameaçado de uma catástrofe ecológica, mas
mesmo os países que não estão em negação recusam-se a encarar a situação
fatídica que nos aguarda… A par destes sinais tenebrosos vê outros que lhe dão
esperança no futuro?
São escalas tão diferentes. Do lado objetivo, no teatro das nossas vidas, os
perigos como o da ecologia são hoje dramaticamente reais, e assusta a total
irresponsabilidade da maioria dos líderes e políticos, mas não tenho vivido os
meus dias em desespero. Certa vez, no meu país, perguntaram-me qual era o dever
do poeta, e disse que um poeta não deve abdicar da sua cidadania, deve tomar
parte na vida política, mas deve também defender a arte, a música, o canto.
Dizer às pessoas que um dos maiores problemas é o facto de limitarmos a nossa
vida às questões políticas. A nossa vida transcende a política. Ela acontece
através da música, do amor, da poesia, da história, da filosofia. Os políticos
gostam de se aborrecer e de nos arrastar para as suas estreitas perspetivas da
vida humana. Uma das coisas que temos a obrigação de defender é a pluralidade
da vida. E quem pode fazer isto melhor do que os escritores, os artistas. Não
quero dizer que nos devemos alhear da realidade política, antes pelo contrário.
Mas é preciso ter-se não um mas dois horizontes. Por um lado, somos cidadãos, e
tentamos defender a decência, a pluralidade, o processo democrático nos nossos
países, por outro, também defendemos algo mais profundo e difícil de definir:
uma vida espiritual que não está necessariamente ligada às nossas escolhas
políticas. Deve ser independente da política. Vejo este papel duplo do poeta, o
de estar presente e dizer o que pensa, mas também defender este reino do canto,
para falar em termos simbólicos.
Nos seus poemas há uma grande
subtileza no modo como nem eles próprios estão muito seguros da sua natureza. A
sensação é a de que há uma espécie de vento que por eles passa e desarruma as
coisas. Temos neles sensações e emoção mas também memória, história, o cuidado
que exige lidar consigo mesmo, com a experiência. E, no fim, há a sensação da
vida como um espelho para os nossos muitos rostos. Ao mesmo tempo há uma
espiritualidade que passa através de uma certa calma, um gosto meditativo. É
uma pessoa religiosa ou pensa que a poesia é, em certo sentido, um modo algo
desencaminhado de criar uma religião que nunca se satisfaz com qualquer tipo de
certeza, e não aceita profetas nem figuras messiânicas, ou até um Deus?
É uma pergunta enorme, e uma boa pergunta. Exige uma resposta também muito
profunda. Começaria por dizer que não entendo completamente os meus poemas. Não
sou o leitor dos meus próprios poemas. Mas quando me diz isto dessa forma
reconheço-me nessas palavras. Sinto-me atraído pela religião. Diria que sou uma
pessoa religiosa mas, por outro lado, sinto-me desiludido (como parece ter
notado) por quaisquer respostas definitivas. Ali está aquele padre que parece
ter almoçado com Deus no dia anterior e parece saber exatamente o que Deus
pensa. Esquecem-se de que é através do mistério que chegamos a alguma compreensão
das coisas. O meu sentimento religioso diz-me que nós sabemos muito pouco e que
forçamos esse limite em face de um grande mistério. Com tudo o que nos diz a
ciência, com todas as suas descobertas e conquistas, sabemos muito pouco sobre
o sentido das nossas vidas. Todos morreremos e a questão é saber o que fazer
com este tempo que se está acabar para todos nós. Temos vidas bastante curtas
e, tendo à nossa disposição as nossas almas e um pouco de sabedoria, a minha
resposta a essa pergunta é que devemos meditar nisto e abrir margem a
diferentes possibilidades, caminhos, mas sem deixarmos de defender a decência.
Quando se escreve um poema não se controla tudo o que nele se passa. Há coisa
que conseguimos transformar, mas outras surgem-nos como se nos fossem ditadas.
A consciência parece ter pouco a ver com elas. A minha ambição é nunca dizer
nada que possa trair o mistério da vida. Ser fiel a este sentido. Mas também
não ser pretensioso, não construir retoricamente castelos no ar. Acho
preferível tentar ser honesto no que se escreve, dar sinal da nossa incerteza,
das inseguranças, e também dos momentos de entusiasmo, esses momentos de
epifania. Não posso dizer que detenha o controlo teórico dos meus poemas. Isso
seria o fim da minha escrita. Se sabes exatamente o que queres dizer, deixas de
escrever. Diria que se trata de uma espécie de luminosa ignorância. És
ignorante, ignoras as coisas mas de uma tal forma em que podes partilhá-lo com
as outras pessoas.
Não pude ler o seu mais recente
livro que mistura a componente diarística e ensaística, “Slight Exaggeration”,
mas li uma recensão e fiquei a saber que o título foi o seu pai que lho deu, e
que a usou depois de ter percebido que era uma bela noção do que a poesia é. E
esta surgiu a meio de uma conversa com o seu pai?
Sim,
uma conversa, mas não fui eu que a tive com ele. Um jornalista estava a
fazer-lhe perguntas...
O que fazia o seu pai?
Era
professor numa faculdade de engenharia, mas tornou-se uma figura reputada na
cidade onde vivia porque era um homem muito decente, e muitas vezes defendeu
posições difíceis e justas, foi alguém que esteve do lado dos estudantes em
1968, e que nunca foi membro do partido comunista. Quando chegou a velho gozava
de uma certa aura, e foi por isso que o jornalista veio até ele para lhe fazer
uma série de perguntas sobre a sua vida, sobre ter deixado a cidade onde nasceu
e onde fez os estudos superiores, Lvov, e, no meio destas questões relacionadas
com a sua vida, o jornalista citou algumas frases de um dos meus ensaios,
pedindo ao meu pai que as comentasse. O meu pai sempre leu tudo o que eu
escrevia, mas tinha um certo pejo em fazer comentários, achava que não lhe
cabia fazer juízos sobre o meu trabalho. Tinha a mente sóbria que é própria de
um engenheiro, um homem pragmático. E quando lhe foi pedido que comentasse
aquelas frases que eu escrevera ele disse que havia nelas um certo exagero
[slightly exaggerated]... Essa definição deixou-me encantado, porque reconheci
nela o que as pessoas pensam da poesia. E aquilo que também eu, algumas vezes,
penso dela.
Fala numa estranheza quando nos
deparamos com um poema, a sensação de que ele extravasa um tanto o limite, mas
que, ao ceder ao seu charme, este se torna real para nós, uma experiência de
reconhecimento. Mas, com o tempo, voltamos a estrangeirarmo-nos em relação a
ele, e ele readquire a sua estranheza. Essa definição é um achado... Porque se
o poema, depois de o lermos, se torna um lugar-comum, esse poema é fraco, mas
se os poemas reganham a sua autonomia, e de cada vez que os reencontramos nos
parecem novamente algo exagerados, esse mesmo parece ser o movimento da poesia,
um sentido que não permanece muito tempo no mesmo lugar. Pode falar da sensação
que tem quando encontra um grande poema?
Qualquer
pessoa que tenha uma vaga intuição daquilo que é a vida da mente ou a vida do
espírito, qualquer pessoa que tenha embarcado nesta demanda, sabe que estes
momentos de iluminação acontecem apenas por breves momentos. A vida é tão
estranha que mesmo aqueles que a dedicaram inteiramente à arte, à música,
filosofia, religião, e que buscam estes momentos de uma clareza inebriante, de
êxtase espiritual, sabem que é algo que dura muito pouco, vem e vai. E aquilo
que permanece é a vida prática. Toda a gente tem de encontrar uma forma de
harmonizar estes momentos de plenitude, que são tão fugidios, com os longos,
longos dias a lidar com questões práticas. Um exemplo: vamos um concerto, e
mesmo se estivermos diante dos melhores músicos, não podemos estar totalmente
imersos no seu encanto durante todo o espectáculo. Temos momentos em que
sentimos que aquilo nos transporta, mas logo damos por nós a regressar
à nossa passividade. E não há propriamente uma solução para isto, temos
simplesmente de aceitar que não há outra maneira. O mesmo se passa com a
poesia. Os poemas são iluminações fugazes, eles vêm e vão. E o poeta que os
escreve não está numa situação mais vantajosa. Assim que escreves um poema é
como se o perdesses. Já não é para ti. Às vezes regressa, quando há uma leitura
de poemas. Acontece às vezes que um poema escrito há 20 anos volta a estar vivo
por mais uns cinco minutos... É assim que vivemos a nossa vida espiritual, através
de breves vislumbres. A dignidade exige-nos que sejamos leais a estes momentos,
que não os atraiçoemos, que tentemos viver de forma a permitir que eles venham
de novo até nós, para que sejamos humanos, estando à altura daquilo que estes
momentos exigem de nós. Mas nunca deixa de ser uma batalha, nunca se torna
fácil. Não podemos viver num estado de permanente êxtase artístico. Ninguém
vive assim de forma permanente. E acho que isto é verdadeiro tanto para os
músicos como para os místicos. Muitos falam dessas noites de um vazio total.
Toda a gente passa por essas noites escuras em que não se vê a menor
cintilação.
Está hoje num momento da sua
vida em que o seu trabalho, a sua obra lhe tem granjeado um número sem fim de
distinções, e é apontado até como um candidato crónico ao Nobel... Como é que
isto o afecta? Esta aclamação é uma coisa agradável, o ser agraciado pelo
reconhecimento que a sua obra alcançou, ou parece-lhe que há algo de pernicioso
nesta constelação criada pelas instituições literárias?
Quando
era mais novo, nunca antecipei que viesse a alcançar grande reconhecimento com
aquilo que escrevia. Sempre fui uma pessoa bastante tímida, já ficava muito
feliz por ver os meus poemas publicados. Nunca tive aquela arrogância do poeta
que espera ser aclamado, lido em vários idiomas. Levou muito tempo para
chegarmos a isto e, como bem vê, já não vou para novo. Mas agora, sim, alcancei
um certo reconhecimento e não posso dizer que seja desagradável. É agradável,
mas vejo-o mais como... Por exemplo, às vezes, como aconteceu aqui em Lisboa,
quando os leitores vêm até mim e, mesmo numa breve troca de palavras, depois de
uma leitura de poemas, quando alguém me diz que estes poemas significaram muito
para ele ou para ela, cada vez que isso acontece é um momento incrível de uma
espécie de encontro existencial com o outro. Não dou tanto valor ao lado mais
institucional. Odeio o reino das formalidades. Essas cerimónias são
insuportáveis. Gosto do lado mais informal da vida. E depois há outra coisa:
este reconhecimento chegou, para mim, numa altura em que a poesia está a perder
a sua importância. É evidente hoje, e talvez na Europa mais ainda, que há um
interesse cada vez menor pela poesia. São cada vez menos as pessoas que vêm às
leituras, e há um entusiasmo cada vez menor pela poesia. Assim, paradoxalmente,
a minha ascensão ocorre no momento de declínio da poesia. O que me provoca uma
certa tristeza. Não por mim mas pela poesia. Mas depois digo a mim mesmo que a
poesia tem acompanhado os homens desde o princípio, e nunca desaparecerá. Há
momentos de perda da sua influência, mas é eterna no que toca ao destino da
humanidade. Quando regresso ao meu quarto, e estou de volta dos meus livros e
dos meus blocos de notas, esqueço completamente os prémios. Esse é o melhor momento,
quando enfrento o perigo de escrever um novo poema. O risco, a improbabilidade
de um novo poema. E nesses momentos não perco um pensamento para a questão de
saber o que mais ainda posso vir a ganhar no que toca a prémios. Nem por
sombras. Mas também não posso ser hipócrita, não vou dizer que é desagradável
ser reconhecido. É agradável, sim.
Na sua poesia, naquilo que
escreve, nunca sentimos aquela arrogância de alguém que se prepara para dizer
ao leitor o que pode e deve esperar da poesia. E, recentemente, numa sessão em
Barcelona, disse que a poesia é para si uma ferramenta para entender o mundo, e
que passa menos por conseguir um resultado do que por continuar à procura de um
sentido. Acha que o declínio da poesia pode ligar-se com uma certa arrogância
em que há tanta certeza sobre o propósito e a importância da arte? Isto quando,
no seu caso, parece mais estar a mendigar esses momentos de clareza. Colm
Tóibín, num texto que lhe dedicou no “The Guardian”, diz que muitas vezes os
seus poemas parecem orações, parecem rezar... Acredita que esta busca de
sentido, esta humildade, marca uma distância face aos poetas que, estando tão
seguros de si mesmos, acabam por ser incapazes de reflectir sobre o mundo e
reflecti-lo nos seus poemas?
Não
estou convencido de que eu seja o único poeta vivo nestes dias. Não estou
sozinho. Há uma série de poetas que admiro. E sinto que, mesmo se hoje a poesia
está numa postura defensiva, há ainda poetas importantes que defendem o bom
nome da poesia, e não são arrogantes. Mas também posso dar-lhe o exemplo de
Joseph Brodsky, que era totalmente arrogante e, ao mesmo tempo, absolutamente
sedutor. Conheci-o pessoalmente, e ele era a personificação da arrogância e, no
entanto, fazia-o de forma tão bela que a única coisa que eras capaz de ver nele
era a beleza da arrogância. Nada é proibido. A minha forma não-arrogante de ser
não é a única via. Podes ser arrogante e convincente. E ele fez muito pela
defesa da poesia, porque ele acreditava profundamente na importância da poesia.
A sua arrogância não vinha apenas do seu carácter, do facto de ser uma pessoa
de grande força interior, mas vinha da sua grande fé na poesia. Para ele a
poesia era a grande força do universo. E era belo à sua maneira. Por isso, há
múltiplas abordagens possíveis. A minha é, certamente, diferente. Nunca tive
este tipo de arrogância, mas adorava-o, éramos bons amigos, e creio que nos
entendíamos muito bem. Além disso, o paradoxo da minha situação é que se eu
defendesse esta abordagem não-arrogante, informal... Cada escritor deve
perguntar-se se faz algum sentido assumir-se como representativo de uma
certa escola ou se deve apenas falar em seu nome pessoal. Se começas a ter
vários leitores em vários países, mesmo que não queiras, passas a ser
representativo de qualquer coisa. É esse o paradoxo de se ser ouvido, de se ter
uma voz. Se és ouvido és representativo, e o teu esforço para falares em nome
individual começa a ser afectado por isto, porque te é atribuído um papel. Não
é nenhum drama, mas, de certo modo, contradiz a tua vontade de ser informal, de
ser um tanto reservado e não ser alguém que fala a partir de um qualquer palco.
Mas dás por ti a falar a partir de um palco. Eu estou num palco. Este é o
paradoxo. Mas para responder à sua pergunta: não sei o que fez da poesia uma
espécie tão ameaçada. Não creio que seja a arrogância. É muito difícil dizer o
que tenha levado a isto. Parece-me que as pessoas tendem a reaproximar-se da
poesia em momentos críticos, períodos históricos perigosos. Nestas democracias
preguiçosas em que vivemos, em que aquilo que interessa às pessoas é a cerveja
e o futebol, não precisam da poesia. Vivem vidas banais, muitas vezes vidas
esvaziadas de qualquer juízo, e é quando o perigo se acerca que a poesia
recupera a sua importância. Nos anos 1980, na Polónia, um período muito
difícil, por causa da Lei Marcial, etc., as leituras de poesia atraíam milhares
de pessoas. Hoje já não. Hoje têm as suas cervejas, sentam-se à frente do
televisor a gritar por causa de uma partida de futebol e isso chega-lhes. Mas,
por outro lado, não queremos que os tempos voltem a ser perigosos para o bem da
poesia... [Risos]
Falou de Brodsky, e gostava de
saber se pode partilhar impressões sobre outros poetas com quem tenha
convivido. Poetas que lemos e admiramos, como os da geração que precedeu a sua.
Para lá da poesia, daquilo que escreviam, pelas conversas e pelos encontros que
foi tendo com eles, houve alguma impressão que o marcou particularmente nesse
convívio. Na sessão na Casa Fernando Pessoa, falou na erudição e também na
serenidade de Zbigniew Herbert... Como foi estar na companhia deles?
Conheci
também Derek Walcott, e gostava muito dele.
Ele era também um grande amigo
pessoal de Brosky.
Sim, e
de Seamus Heaney. A Heaney não conheci tão bem como a eles. Mas quando estavas
com eles, aquilo que mais te impressionava era o fabuloso sentido de humor
deles. Passavam o tempo a rir à gargalhada. E foi interessante para mim porque
eu os via como poetas trágicos, as vozes de um destino trágico, mas, em
privado, eles passavam o tempo a rir-se, e isso agradava-me imensamente. Assim
que encaras o elemento trágico da vida humana vês também o absurdo da vida
humana. E eles tinham um sentido de humor de um requinte extraordinário. Jantar
com eles era como ficar bêbado de tanto rir. E não era ironia, mas puro gozo e
diversão. Era também uma forma de celebrar a vida, aquele riso. Nos poemas não
se riam muito, mas assim que se juntavam e se punham à conversa era esse o
prato forte. E eu pude partilhar isso.
Diogo Vaz Pinto, 2018-06-25
https://sol.sapo.pt/artigo/616980/adam-zagajewski-a-minha-ambicao-e-nunca-dizer-nada-que-possa-trair-o-misterio-da-vida
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Adam Zagajewski, https://ionline.sapo.pt/, 2021-03-22 |
Morreu Adam Zagajewski, um monge dedicado ao severo culto da História
Morreu
este domingo, aos 75 anos, o mais destacado dos poetas polacos. Numa última
ironia, deixou-nos no dia mundial da poesia, como quem se entrega ao
encantamento do silêncio quando outros, em nome dos poetas, andavam por aí a
cacarejar.
Morreu pela tarde, hora de
que gostava, acompanhando de ouvido os melros, e Adam Zagajewski apreciava não
apenas o canto destes pássaros, mas a consciência do que este demarca,
tratando-se de uma espécie que só existe na Europa. “Assim, é um pássaro muito
europeu este que canta para nós.” E no anoitecer, este filho da Europa, da sua
cultura e da sua história, do seu esplendor e também dos seus horrores, via
essa dupla condição da obscuridade. Por um lado, a meditação, a tranquilidade e
a paz da noite, essa felicidade que se desprende do canto dos melros, mas a par
da salvação ouvia também mover-se o perigo, o lado doloroso da vida, a devastação
que nos segue por toda a parte. Este poeta polaco, nascido há 75 anos, em Lwov,
morreu este domingo, em Cracóvia, e era um dos mais destacados autores
europeus, sendo um herdeiro e continuador da geração anterior à sua, e que deu
à literatura polaca a sua feição mais universal – Zbigniew Herbert, Wisława
Szymborska e Czesław Miłosz. Há anos que o nome de Zagajewski era apontado como
um crónico candidato ao Nobel, mas, à semelhança de Herbert, que era mais novo
e morreu mais cedo (aos 73 anos) que os outros dois gigantes da sua geração,
partiu demasiado cedo para que a Academia Sueca lhe fizesse justiça. Não
deixou, no entanto, de alcançar uma projecção internacional invulgaríssima nos
nossos dias para um poeta, e foi distinguido com alguns dos mais prestigiosos
galardões literários, como o Princesa das Astúrias, em 2017, o Griffin, em
2016, ou o Neustadt, em 2004. Talvez a frase mais reveladora das que escreveu
sobre o carácter ao mesmo tempo testemunhal e revigorante da sua obra, da sua
capacidade de revirar os aspectos mais terríficos da existência e cruzar para a
margem oposta, celebrando a vida e o desejo de permanecer atento, mantendo
intacta a capacidade de assombro mesmo em face de um mundo que não abre mão da
catástrofe, seja esta: “Onde quer que se faça um corte na vida, sempre esta irá
ficar partida em duas metades.” Assim, as suas meditações, os poemas ou ensaios
que escrevia, debatiam-se já não com a vivência dos piores horrores do século
XX, mas com a sombra que estes continuam a projectar. “Diria que, de certa
maneira, se esses horrores não me estão nos genes, estão cá dentro, e parte da
minha vocação é não perder o pulso ao coração dessa guerra, encontrando uma
forma de transmiti-lo”, disse no ano passado, numa entrevista ao El País.
Nascido
em 1945, foi ainda envolvido nos cobertores que o envolveram recém-nascido que
foi levado de Lvov para Gliwice. Eram ambas cidades polacas, mas no rescaldo da
II Guerra, a sua cidade-natal passou para a Ucrânia, e nem os seus avós, nem os
pais ou os tios se habituaram à condição de deslocados, o que deixou em
Adam algo como um olhar que lançado por cima do ombro, para trás, para a
aquela cidade perdida e quase sagrada, uma Lwov tocada pelo sonho, por uma
beleza da qual se foi expulso. Assim, nos seus primeiros escritos, há uma
sensação de lembrança que se impõe, com os seus cheiros e sabores, e que se
torna um lugar mais real do que Gliwice, uma cidade industrial, nos seus feios
tons de cinza, e que se tornou sinónimo de um desencontro fundamental o qual
está sempre como pano de fundo da poesia de Zagajewski. A sua obra, como foi
notado inúmeras vezes, lida com essa sensação de exílio que atravessa muita da
melhor literatura do último século. Para isso contribuíram as duas décadas que
o poeta passou exilado, depois de integrar a contestatária Geração de 68, sendo
perseguido pelo comunismo, e, após a instauração da Lei Marcial de 1981,
forçado a mudar-se para Paris no ano seguinte. Em 1988, chegaria aos EUA, tendo
sido professor convidado em várias universidades, e passando o período mais
longo em Houston, dando aulas na Universidade do Texas. Foi só em 2002 que
regressou ao seu país, depois da queda do regime comunista, assentando em
Cracóvia, sem deixar de viver uma parte do ano em França. O que lhe ficou desde
a infância foi essa ideia de que a poesia é uma coisa de emigrantes, “esses
infelizes que, com um património ridículo, procuram um balanço à beira do
abismo, andando a cavalo entre continentes”. Encontrava, por isso, a sua
linhagem entre esses nomes que representam “a Europa secreta da poesia”,
adiantando que, embora essa “Europa secreta não tenha influência política, não
tenha músculo político, é absolutamente indispensável como um lugar no qual um
se possa esconder, mas também como uma reserva de energia para o futuro”, como
notou na já referida entrevista ao diário espanhol.
Zagajewski
organizava as suas ideias dividindo o mundo em metades. Assim, de um lado
encontrava os homens de acção, aqueles que assumiam maiores responsabilidades
no curso dos acontecimentos de maior relevância a nível social e político, e
embora a sua obra fosse tremendamente permeável à realidade histórica, via-se
como uma figura do campo oposto, o das pessoas que rezam. “Os poetas pertencem
ao grupo dos que rezam”, dizia, advertindo ainda: “Não esperem grande coisa
como resultado directo das suas orações.” E, no entanto, defendia que fazem
falta os poetas como fazem falta os monges, para rezar e meditar – “só não
esperem deles nenhuma proposta directa para a vida social”. Como escreveu o
poeta francês Christian Bobin, Zagajewski também entendia que “a vida em
sociedade é quando todos obedecem ao que ninguém quer”, ao passo que “a escrita
é uma escapatória a esta miséria, uma variação da solidão assim como amar ou
brincar – um princípio de insubmissão, uma virtude de infância”. Também ele
poderia ter dito que “o que em nós está ferido pede asilo às mais pequenas
coisas do chão – e recebe”.
O seu
primeiro livro de poemas foi publicado em 1972, com o título Komunikat (“A
mensagem”). Três anos depois estreou-se no romance, com a novela Cieplo zimno
(“Quente e frio”), isto num período em que colaborava com a revista clandestina
Zapis, que participava na resistência ao regime polaco. Zagajewski começou,
assim, por uma poesia marcadamente política, e a dissidência valeu-lhe a
proibição de publicar no seu país. Depois do exílio, depois de ter regressado a
Cracóvia, o país balançou para o lado oposto do espectro político, e mais do
que as muitas distinções que o foram consagrando, gozava ainda a dignidade de
ter o nome na lista negra do actual governo nacionalista e anti-democrático
polaco. E a sua poesia mantinha-se num equilíbrio funambulesco entre esse
inventário de aspectos do quotidiano, alguns ressaltando esse ângulo sublime
que se recorta contra o lado mais banal da existência, e capaz de uma ironia
que se salvava sempre de cair no cinismo, foi-se impondo como uma réplica sagaz
à mesquinha petulância do poder, dando ânimo aos fugitivos quando se vêem sem
destino e ouvem os seus “carrascos a cantarem alegremente”. Esta obra com o seu
tom modesto, mas sempre tensa, sempre à espreita de uma oportunidade para
apontar esse ponto de fuga, o regime da transcendência, oferecia hipóteses de
se salvar a consciência e até a esperança num “mundo estropiado”. Assim, contra
“o fácil pessimismo apocalíptico de muitos mestres da retórica actual, que se
comprazem em anunciar constantemente desastres e em proclamar que a vida não é
mais que vazio, erro e horror” (Claudio Magris), Zagajewski em penhava-se em
sabotar o fatalismo, brincando debaixo da mesa da tragédia.
Escreveu certa vez que “os poemas são curtas tragédias, portáteis, como rádios
a pilhas”, e traçava amiúde uma oposição entre a poesia e o jornalismo, dizendo
que estavam um para o outro como noite e dia. “O dia pertence ao jornalismo e a
noite aos poetas, aos músicos. Obtemos alguma da nossa força da parte nocturna
da vida, porque a noite não é apenas símbolo da obscuridade e do medo, mas
também da arte e da reflexão”. Por outro lado, sabia o perigo de a poesia se
convencer demasiado dos seus poderes, entendendo que esta “certas vezes
desaparece, deixando apenas fósforos ardidos”. Por isso, o facto de ter morrido
no dia mundial da poesia não deixa de soar como uma última ironia, um sair de cena
precisamente naquele dia em que tanto do que por aí se cacareja e que é
publicitado como poesia toma a cena em tom celebratório, deixando muito claro
esse regime de espalhafato com que a arte disfarça a sua irrelevância. E, nos
últimos anos, enquanto a sua poesia chegava a outros idiomas e países,
incluindo Portugal – onde a Tinta-da-China publicou a antologia “Sombras de
sombras”, em 2017, com os poemas traduzidos do polaco por Marco Bruno, tendo
sido alvo depois de uma revisão poética feita por Jorge Sousa Braga –,
Zagajewski surgia como esse monge que preferia celebrar uma certa discrição,
tendo sublinhado num dos seus últimos livros de ensaios o célebre aforismo de
Kafka em que este nos exorta a tomar o partido do mundo, na luta entre nós e
ele. “Na luta entre ti e o mundo, deves ficar do lado do mundo.” Uma atitude em
que, ao invés de resignação, ou conformismo, o poeta polaco via um exemplo de
superação e um valor em dilacerante contradição com o individualismo radical
que se impôs como a nota dominante também nas expressões artísticas. “Haverá
sempre tempo de se regressar a si mesmo”, defendia Zagajewski, mas, “de
momento, tens de te pôr ao lado do mundo se pretendes ser justo”. “É mais fácil
dizer: sou justo, sou bom. Mas o mundo é mais sábio do que nós. Por isso, o que
se impõe hoje é essa tarefa de voltarmos ao mundo, de ficarmos do seu lado.”
Em
“Os meus mestres”, um dos poemas iniciais da antologia deste poeta publicada
entre nós, diz-nos: “Os meus mestres não são infalíveis./ Não se trata de Goethe,
que só conseguia/ adormecer quando ao longe/ gemiam os vulcões, nem de
Horácio,/ que escrevia na língua dos deuses/ e dos sacerdotes. Os meus mestres/
pedem-me conselhos. Vestindo macios/ sobretudos deitados velozmente/ por cima
dos sonhos, ao romper do dia, quando o vento/ fresco interroga os pássaros, os
meus/ mestres falam por sussurros./ Consigo ouvir a sua voz trémula.”
Para
Zagajewski a sabedoria era alcançada através de uma certa abdicação de si, dos
seus impulsos ou interesses, e esta abertura e clareza estava sobretudo
presente no tom dos seus poemas, no seu registo sereno, tantas vezes
conversacional sem resvalar no monólogo intimista, nessas confissões bacocas,
antes permitindo que o presente se inspecionasse a si mesmo num efeito de
contraluz, como se o instante fosse já uma memória, um registo do passado. O
poeta Robert Pinsky afirmou que os poemas do polaco tratavam sobre a presença
do passado na quotidianeidade: “a história não como uma crónica dos mortos mas
como uma força imensa, às vezes subtil, inerente ao que nós vemos e sentimos
todos os dias, e à forma como o vemos e sentimos”. Os seus poemas têm uma força
evocativa e documental, mais do que escrever cidades ou paisagens, erguem
impressões, deixam objectos suspensos num desamparo tocante, quase nos põem
música, excertos de canções entreouvidas, e de lembranças também, referências
culturais que não se ficam pela sugestão mas animam esse registo assombrado,
essa névoa acariciadora. Como notou o escritor irlandês Colm Tóibín, a obra deste
poeta parece assombrada pelos detalhes que se perdem das coisas, esses
contornos que vão dando de si, e a tarefa que toma como sagrada é a de
inventariar essas coisas, “coisa que ele faz com extremo deleite, porque ama a
linguagem, mas também com grande contenção e ainda algo próximo do
arrependimento porque, ao mesmo tempo, ele também desconfia da linguagem”.
Este
monge dedicado a um culto sóbrio e severo da História, tinha a noção de que
todo o espírito crítico nasce do que essa perspectiva nos oferece, e afirmou
que “toda a minha educação enquanto escritor se focou neste esforço de me
libertar dos caprichos e dos esgares da História”. E reflectindo sobre a
experiência do exílio, Zagajewski escreveu: “Eu perdi duas pátrias, mas busquei
uma terceira: um espaço para a imaginação.” E o poema “Canção de um Emigrante”
acaba assim: “Na igreja Ortodoxa/ em Paris, os últimos russos de cabelos/
cinzentos rezam a Deus, que/ é séculos mais novo que eles e se sente/
igualmente desamparado. Em cidades estranhas nós/ persistimos, como árvores,
como pedras.”
Mas
para um autor que traçava cortes e via a vida dividir-se em metades, nada nunca
se mantinha estável, e em relação às virtudes da imaginação, ele mesmo notou
que esta pode contar-se entre os seus próprios inimigos – “se perder o seu
sentido de moderação, o seu peso e medida, se perder de vista esse mundo
concreto que não pode ser dissolvido pela arte”. Vencedor do prémio Princesa
das Astúrias no ano anterior a este ter sido entregue a Zagajewski, o
ficcionista norte-americano Richard Ford, rendeu-lhe um dos mais acertados
elogios ao congratular-se com a decisão dos jurados: “A poesia de Adam
Zagajewski, luminosa, profunda, às vezes crua, mas sempre lírica, consegue o
raro triunfo literário de ser política e, no entanto, supremamente humana, num
único, contínuo e complexo movimento”.
Numa
entrevista dada ao semanário Sol, em 2017, quando esteve em Portugal para
participar numa sessão na Casa Fernando Pessoa que assinalou os 130 anos do
patrono da instituição, o poeta polaco deixou claro que um dos elementos
essenciais na escrita de um poema é aprender a dividir a conta com o acaso,
dar-lhe margem para se introduzir, pois, como escreveu Derrida, “não há poema
sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra
ferida também”. “Quando se escreve um poema”, disse então Zagajewski ao nosso
semanário, “não se controla tudo o que nele se passa. Há coisas que conseguimos
transformar, mas outras surgem-nos como se nos fossem ditadas. A consciência
parece ter pouco a ver com elas. A minha ambição é nunca dizer nada que possa
trair o mistério da vida. Ser fiel a este sentido. Mas também não ser
pretensioso, não construir retoricamente castelos no ar. Acho preferível tentar
ser honesto no que se escreve, dar sinal da nossa incerteza, das inseguranças,
e também dos momentos de entusiasmo, esses momentos de epifania. Não posso
dizer que detenha o controlo teórico dos meus poemas. Isso seria o fim da minha
escrita. Se sabes exatamente o que queres dizer, deixas de escrever. Diria que
se trata de uma espécie de luminosa ignorância. És ignorante, ignoras as
coisas, mas de uma tal forma em que podes partilhá-lo com as outras pessoas.”
Diogo Vaz Pinto, 22/03/2021
https://ionline.sapo.pt/artigo/728900/morreu-adam-zagajewski-um-monge-dedicado-ao-severo-culto-da-historia?seccao=Mais_i
CARREIRO, José. “Havia
meses que não escrevia nem um único poema, Adam Zagajewsk”. Portugal, Folha
de Poesia, 01-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/havia-meses-que-nao-escrevia-nem-um.html