Repetem-se suaves as armações da manhã,
em gestos e mensagens limados,
abrindo-se no meu Peito. Procurar
os outros e neles uma voz semelhante,
o peso de ter nascido assim.
Ter a tua palavra na minha.
Regresso, porque tenho de regressar,
à vergonha de ter sido simples,
um corpo que larga fumo branco.
Ninguém me pede para continuar.
Sento-me no canteiro cansado de azul,
a cabeça no teu colo, uma boca lenta
a escavar a estranheza da tua,
pedindo-te as coisas mais simples.
E por vezes somos dois num assobio
alucinado em direção ao mistério
do próximo a passar: ainda não desfiz
o último coração da memória.
Frederico Pedreira
https://leitor.expresso.pt/diario/14-11-2014/html/caderno-1/cultura/09_Cultura_Poesia
CORAÇÃO LENTO
II.
Fósforo a fósforo
ilumino o teu rosto
como se fosse um fruto
lustroso, húmido das chuvas,
e a tua pele, como esse negro fruto
que me depuseram nas mãos,
descasca-se lentamente,
como se fosse apagando aos poucos
o seu próprio coração,
embora não seja extinção,
mas algo mais brando
o que o ilumina esta noite,
pousado em silêncio
sobre os meus joelhos.
X.
Jogavam xadrez junto ao mar.
Ela segurava uma romã,
ouvia-se o marulhar das águas
que nada separavam.
A sua camisola azul,
tudo rebrilhava, vermelho e azul,
nuns lábios de algodão.
As mãos dir-se-ia que ensanguentadas,
a vítrea cor dos olhos não temia
o adivinhar das próximas mortes
no suave declínio do amor.
XVI.
Houve um tempo em que me perdi
na esquina do desamor, outro houve
em que nada quis que não tivesse,
e nessa volta lenta dos derrotados
procurei sempre um sinal de luz
que me contasse os traços do teu rosto
num clarão de brevidade impossível –
como agora faço, acendendo palavras
fósforo a fósforo para nos ver sorrir
entre a roda dos cães soturnos.
XXXI.
Todas as personagens são,
por enquanto, um peso morto
na minha imaginação.
Só vejo cenários,
apetece a poesia possível
desses enredos onde ninguém pôs o pé.
Não gosto de falar ao ouvido
das personagens para que façam o que eu digo.
Nesta escrita pobre e dura,
angulosa como um caroço sem graça
ou mérito científico,
é ao meu ouvido que falo: repete
o mar, o bote nessas águas,
desdenha em paz de outros lugares.
Frederico Pedreira, Coração Lento
Lisboa, Assírio & Alvim, 2021
Esta
arte do que não pode ser dito
Um livro de poesia construído no trilho de engenhosos contrastes
Coração
Lento é um livro construído sob a órbita de uma certa negatividade.
A qual, no entanto, é amiúde questionada pela afirmação de impulsos vários em
sinal contrário, surgidos na esfera do vital. O que implica, ao longo do mais
recente livro de Frederico Pedreira, que à consideração dos elementos
constituintes de um polo se sucedam apelações do outro lado da argumentação.
Há, por isso, um encadeamento de avanços e recuos, entre anúncios de luz e
exibições de obscuridade. De resto, o elemento visual é uma das matrizes deste
livro. Palavras como “olhar”, “olho[s]”, mas também “retina”, além de vocábulos
correlatos, repetem-se numa cadência frequente e deliberada. Desde (pelo menos)
os pré-socráticos que se tem glosado a prevalência da visão sobre todos os
outros sentidos: “os olhos são, de facto, testemunhas mais precisas” (Fragmentos
Contextualizados, Heraclito, IN-CM, 2005, trad. Alexandre Costa). E é,
precisamente, sobretudo por via da visão que os poemas estabelecem o xadrez de
opostos, os cambiantes, o ciclo da afirmação e do negado — tão admiravelmente
patentes em Coração Lento. Uma disposição que se pode já notar no primeiro
poema do livro. Esta composição de sinais opostos, conjunto de proposições
construídas por inviabilidades, falhas, lacunas, revela, desde logo, o seu
engenho na forma de tematizar o empobrecimento da paisagem, dos modos de vida,
dos lastros conviviais, da perda — “A praia impossível onde te vi enfim/
descalça e feliz como poucos teriam ousado/– pétala tremendo muito de frio ao
de leve/ e de uma fome que não vem neste século nem no seguinte./ Contaram-nos
histórias, essas ondas íngremes/ que o povo quase todo dizia ter escalado,/
talvez dom os peixes apertados na boca.” (p.13) A citação (longa, de toda a
segunda estância do poema), como se perceberá da leitura de Coração Lento,
constitui a antecipação de uma súmula. O reforço de sentido trazido pela presença
contígua de “não” e “nem”, mas também a expressão da impossibilidade, da fome,
sublinham a negação, que o poema reforçará, no que ficou por citar, com a
“brevidade”, o “insolúvel”, o “informe”. Ainda neste poema inicial se começa a
delinear a importância dos lugares, assinalada, ao longo do livro, por uma
ruralidade agreste. Mas a escassez traduzida nos poemas, o desamparo e a
privação que atravessam Coração Lento, não se fundem num cenário de
relativismo, nem tão-pouco se inscrevem nas redes de um projeto demagógico de
segundas e terceiras intenções. Nem panfletarismo, nem decorativismo, são,
portanto óbices a estes versos. A categoria do espaço é antes um dos
constituintes da aproximação à realidade que esta poesia promove. Sem
esquematismos, nem a facilidade de uma identificação excessivamente
sentimental, ou manipuladora.
Hugo Pinto Santos, 2021-06-04
https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846
Frederico Pedreira, https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846 |
Frederico Pedreira. E tudo isto é fado
O
recente livro de Frederico Pedreira, Coração Lento, é um bom
exemplo de uma tendência para reduzir tudo a um cinzentismo que não parece
deixar grande saída.
Uma certa poesia contemporânea portuguesa parece ter
inaugurado, nos últimos anos, uma nova modalidade, um novo tom: o tristonho - é
acompanhada nisso por um certo discurso crítico. Quem veja nesta uma nova
Stimmung, para usar um conhecido conceito que convém deixar no original, quem
veja nesta uma nova forma de as coisas nos surgirem e nos falarem, uma abertura
do mundo, engana-se. Tal como o “poético”, que é essa característica que não
chega a ser característica, também o tristonho é uma tonalidade, um modo de
dizer que se agarra a todo e qualquer objeto - e toda e qualquer coisa, por
mais entusiasmante ou entusiasmada que seja, pode ser rapidamente reconvertida
e assumir essa cor própria ao tristonho. É um olhar, doente e dolente, que se abate
sobre tudo (os termos, aqui, contam bastante) e que arrasta todas as coisas,
uma música de fundo cinzenta que não conseguimos deixar de ouvir. Não é
melancólica - falta-lhe a beleza convulsiva, falta-lhe mover-se na extremidade
da língua, uma certa agitação que abala as coisas. Não é tristeza - pelo menos
aquela, adolescente, de que falava Ginzburg relativamente a Pavese, também ela
um extremo sem saída. É um tom menor, que se encaminha para o silêncio mas que
nunca lá chega, um modo quase sussurrante de acabar os versos (basta ouvir
tantos a declamar para ver que os versos acabam sempre na mesma ausência de
tom, na mesma música de elevador de baixa intensidade).
O recente livro de Frederico Pedreira (Coração Lento,
ed. Assírio & Alvim) é, a esse nível, exemplar. Exemplar porque este
dispositivo encontra uma cristalização que nos permite pensar esta tendência
recente, exemplar porque Frederico Pedreira tem uma oficina poética bastante
bem feita, com um rigor na construção do poema que falta a muitos - mas a culpa
não é deles, muitas vezes, mas da ausência de uma outra figura que desapareceu
sem deixar rasto do panorama literário, o editor. Mas exemplar, também, porque
Coração Lento permite perceber as limitações que esta tonalidade tem, esta,
para citar Kafka - que não tem nada que ver com esta história -, “cinza que não
é capaz de tomar um aspeto de vida”.
A imagem que comparece no segundo poema tem algum
interesse (“fósforo a fósforo/ ilumino o teu rosto”), deixando ver o cuidado
que Frederico Pereira tem em limar o conteúdo imagético - os poemas são, nos
seus melhores momentos, pequenos cristais autocontidos aos quais não se poderia
acrescentar mais nada. O problema, no entanto, é que esse rigor na construção
acaba por ser contrabalançado, arrastado, por um dispositivo retórico que está
constantemente a ser usado e que se abate sobre praticamente todos os poemas de
Coração Lento: é o poema “que não vale / mais que uma assinatura”, o
“desengonçado estaleiro”, a “pobreza do verbo”, a “volta lenta dos derrotados”,
o verso onde se vê “o verde dos olhos dissipar-se/ na chama triste do papel em
branco”, a “pobre arte da oratória”, o coração “romântico, lasso, um pouco
baço”, as palavras que “vogam acabrunhadas”.
Esta derrota, este derrotismo, esta impotência generalizada
que capturou e que se abateu sobre uma parte considerável da poesia portuguesa
contemporânea, em que o poema nunca vale “mais que uma assinatura”, em que o
verso vê algo dissipar-se na “chama triste do papel em branco”, onde o poeta é
este constante derrotado sabe-se lá bem do quê, esta modalidade tristonha que
não conhece outra música que não seja esse baixo contínuo sempre igual e sempre
o mesmo - tudo isto é um dispositivo retórico ou, pior, não passa de uma
autocomiseração através da qual uma certa poesia se regozija pela sua própria
impotência.
Autocomiseração poderá ser, dispositivo retórico é,
certamente. Poderá haver aqui uma referência velada a um diagnóstico epocal - a
poesia, afinal, desapareceu, ou quase, é hoje um fenómeno marginal - mas esta
derrota não precisa de cair necessariamente nesta tonalidade tristonha (ouçam
Camões, que tanta derrota conheceu: “acenda-se com gritos um tormento/ que a
todas as memórias seja estranho”) e pode assumir outros movimentos e
declinações: o protesto, o grito, o entusiasmo, tudo menos esta autocomiseração
cinzenta que mais não é que o poeta a assumir o lugar que outros lhe deram
(Kafka também poderia dizer-nos algo: “Como um cão! - exclamou ele, para que a
vergonha lhe sobrevivesse.” E é preciso que a vergonha sobreviva, dita e
escrita). Mas é dispositivo retórico, antes de mais, porque esta tonalidade só
poderia ter um fim ao qual se recusa sempre: o silêncio puro e simples, o
calar-se de vez.
Basta abrir um pouco ao acaso Coração Lento
para ver funcionar esta retórica, esta “ladainha dos lábios”.
“A cidade ilumina-se
sincera
nas sucessivas cabeças da
vitória.
Mal-amados os que
esperam
a dádiva beata na sarjeta.
Milhares de luzes: teço e
desteço
o fio de Ariadne, uns
olhos de peixe
amarrados na ponta.
Somos detestados por
todos.
Nem a entrada no radical
museu
nos é permitida.
O sangue uma miragem que
já não interessa.
Teremos chegado ao
fim,
nem espinhos nem
rosas,
só uma temperatura morna,
aquilo que a custo
compramos,
a vera infelicidade”
Nos seus melhores momentos, a poesia de Frederico
Pedreira lembra um certo João Miguel Fernandes Jorge, aquele modo quase
narrativo de dar conta de encontros fugazes que deixam algo na memória,
pequenos cristais de tempo que o poeta vai limando (veja-se, por exemplo, o
poema 38, onde se relata um encontro numa taberna). Há inclusive um poema (o
22º da primeira parte), com o seu “lendo tudo do lado errado da pauta”, a
“flauta furada pelo vento”, o “soluço apanhado à sorte”, que consegue escapar
um pouco a esta tonalidade tristonha que deflagra em todos os momentos de
Coração Lento (mas isto é porque evoca em mim a memória distante de uma “fífia”
de que falava um poeta a que volto sempre). Mas a poesia de João Miguel
Fernandes Jorge, para continuarmos com uma possível afinidade de Frederico
Pedreira, nunca cai nesse tom tristonho, vagamente nostálgico (“Houve um tempo
(...) em que não se chamava versos/ às coisas em que um homem pensava ou
sentia”, como se lê no último poema da segunda parte), assume outros e variadas
tonalidades, nunca se fica por essa “temperatura morna”, “nem espinhos nem
rosas”.
O dispositivo que se repete de poema para poema é
aliás verificável por aquele que citei: começa por se delinear uma
possibilidade (“tomara que”, como começa o poema 6 da segunda parte), por
contar uma história (“estavam os três numa praia.”, como diz outro poema), por
abrir uma situação em particular. Mas depressa essa possibilidade, essa
abertura, se fecha irremediavelmente, depressa se abate sobre o poema esta
tonalidade cinzenta que não é isto nem aquilo. O verso chave do poema, aliás,
poderia ser esse “já não interessa”, sendo o resto uma declinação tautológica
dessa ausência de interesse que o tristonho, enquanto modalidade, impõe (vejo
agora que as notas que fui tomando dizem quase todas respeito ao final dos
poemas). Seria interessante, aliás, ver como é que na economia dos diversos
poemas se joga essa arquitetura cuidada, essa delimitação rigorosa de uma
situação concreta e particular, com esta deflagração do “coração (...) lasso,
um pouco baço”, que, a meu ver, é mais baço que lasso e que, consequentemente,
acaba por contaminar o resto do poema - que fica sempre e irremediavelmente com
essa “temperatura morna” que não é “vera infelicidade” nenhuma.
Que este dispositivo se repita em quase todos os poemas
acaba por ter duas consequências desastrosas: a primeira é que, findo o livro,
todos os poemas acabam por se equivaler, por se tornarem iguais (é o problema
do tristonho: tudo é cinzento, tudo é subsumido a uma equivalência geral, todas
as situações, todos os encontros, acabam nesta “temperatura morna”); a segunda
é esta tonalidade sempre igual, sempre a mesma, que se abate sobre todo e
qualquer poema. É um problema típico do tristonho: não conhece qualquer
variação, não conhece outra velocidade, não aumenta nem diminui o som, mas
mantém-se sempre na mesma música, sempre nesse tom médio, que não é nem muito
alto nem muito baixo (a estrutura “nem...nem” pode ter outros usos, como se
sabe), onde tudo é arrastado para essa baça “ladainha dos lábios”. É uma poesia
epilogal à qual apetece dizer: e tudo isto é fado.
João Oliveira Duarte, 11/06/2021
https://ionline.sapo.pt/artigo/737374/frederico-pedreira-e-tudo-isto-e-fado
***
Entrevista ao autor
Frederico Pedreira, vencedor do Prémio União Europeia de Literatura 2021, com o
seu livro A Lição do Sonâmbulo.
@
Os_Livros_da_Lena, 2021
Entrevista
patrocinada por EUPLPrize (Prémio União Europeia de Literatura).
***
«Numa lufa-lufa entre o coração e a cabeça» — Entrevista a Frederico Pedreira
Tânia Pinto Ribeiro, 2017-07-07
https://imprensanacional.pt/numa-lufa-lufa-entre-o-coracao-e-a-cabeca-entrevista-frederico-pedreira/
CARREIRO, José. “Frederico
Pedreira”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/frederico-pedreira.html