sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Frederico Pedreira

 


Repetem-se suaves as armações da manhã,

em gestos e mensagens limados,

abrindo-se no meu Peito. Procurar

os outros e neles uma voz semelhante,

o peso de ter nascido assim.

 

Ter a tua palavra na minha.

Regresso, porque tenho de regressar,

à vergonha de ter sido simples,

um corpo que larga fumo branco.

 

Ninguém me pede para continuar.

Sento-me no canteiro cansado de azul,

a cabeça no teu colo, uma boca lenta

a escavar a estranheza da tua,

pedindo-te as coisas mais simples.

 

E por vezes somos dois num assobio

alucinado em direção ao mistério

do próximo a passar: ainda não desfiz

o último coração da memória.

 

Frederico Pedreira

https://leitor.expresso.pt/diario/14-11-2014/html/caderno-1/cultura/09_Cultura_Poesia

 

 


 

CORAÇÃO LENTO

 

II.

 

Fósforo a fósforo

ilumino o teu rosto

como se fosse um fruto

lustroso, húmido das chuvas,

e a tua pele, como esse negro fruto

que me depuseram nas mãos,

descasca-se lentamente,

como se fosse apagando aos poucos

o seu próprio coração,

embora não seja extinção,

mas algo mais brando

o que o ilumina esta noite,

pousado em silêncio

sobre os meus joelhos.

 

X.

 

Jogavam xadrez junto ao mar.

Ela segurava uma romã,

ouvia-se o marulhar das águas

que nada separavam.

A sua camisola azul,

tudo rebrilhava, vermelho e azul,

nuns lábios de algodão.

As mãos dir-se-ia que ensanguentadas,

a vítrea cor dos olhos não temia

o adivinhar das próximas mortes

no suave declínio do amor.

 

XVI.

 

Houve um tempo em que me perdi

na esquina do desamor, outro houve

em que nada quis que não tivesse,

e nessa volta lenta dos derrotados

procurei sempre um sinal de luz

que me contasse os traços do teu rosto

num clarão de brevidade impossível –

como agora faço, acendendo palavras

fósforo a fósforo para nos ver sorrir

entre a roda dos cães soturnos.

 

XXXI.

 

Todas as personagens são,

por enquanto, um peso morto

na minha imaginação.

Só vejo cenários,

apetece a poesia possível

desses enredos onde ninguém pôs o pé.

Não gosto de falar ao ouvido

das personagens para que façam o que eu digo.

Nesta escrita pobre e dura,

angulosa como um caroço sem graça

ou mérito científico,

é ao meu ouvido que falo: repete

o mar, o bote nessas águas,

desdenha em paz de outros lugares.

 

Frederico Pedreira, Coração Lento

Lisboa, Assírio & Alvim, 2021




Esta arte do que não pode ser dito

Um livro de poesia construído no trilho de engenhosos contrastes

 

Coração Lento é um livro construído sob a órbita de uma certa negatividade. A qual, no entanto, é amiúde questionada pela afirmação de impulsos vários em sinal contrário, surgidos na esfera do vital. O que implica, ao longo do mais recente livro de Frederico Pedreira, que à consideração dos elementos constituintes de um polo se sucedam apelações do outro lado da argumentação. Há, por isso, um encadeamento de avanços e recuos, entre anúncios de luz e exibições de obscuridade. De resto, o elemento visual é uma das matrizes deste livro. Palavras como “olhar”, “olho[s]”, mas também “retina”, além de vocábulos correlatos, repetem-se numa cadência frequente e deliberada. Desde (pelo menos) os pré-socráticos que se tem glosado a prevalência da visão sobre todos os outros sentidos: “os olhos são, de facto, testemunhas mais precisas” (Fragmentos Contextualizados, Heraclito, IN-CM, 2005, trad. Alexandre Costa). E é, precisamente, sobretudo por via da visão que os poemas estabelecem o xadrez de opostos, os cambiantes, o ciclo da afirmação e do negado — tão admiravelmente patentes em Coração Lento. Uma disposição que se pode já notar no primeiro poema do livro. Esta composição de sinais opostos, conjunto de proposições construídas por inviabilidades, falhas, lacunas, revela, desde logo, o seu engenho na forma de tematizar o empobrecimento da paisagem, dos modos de vida, dos lastros conviviais, da perda — “A praia impossível onde te vi enfim/ descalça e feliz como poucos teriam ousado/– pétala tremendo muito de frio ao de leve/ e de uma fome que não vem neste século nem no seguinte./ Contaram-nos histórias, essas ondas íngremes/ que o povo quase todo dizia ter escalado,/ talvez dom os peixes apertados na boca.” (p.13) A citação (longa, de toda a segunda estância do poema), como se perceberá da leitura de Coração Lento, constitui a antecipação de uma súmula. O reforço de sentido trazido pela presença contígua de “não” e “nem”, mas também a expressão da impossibilidade, da fome, sublinham a negação, que o poema reforçará, no que ficou por citar, com a “brevidade”, o “insolúvel”, o “informe”. Ainda neste poema inicial se começa a delinear a importância dos lugares, assinalada, ao longo do livro, por uma ruralidade agreste. Mas a escassez traduzida nos poemas, o desamparo e a privação que atravessam Coração Lento, não se fundem num cenário de relativismo, nem tão-pouco se inscrevem nas redes de um projeto demagógico de segundas e terceiras intenções. Nem panfletarismo, nem decorativismo, são, portanto óbices a estes versos. A categoria do espaço é antes um dos constituintes da aproximação à realidade que esta poesia promove. Sem esquematismos, nem a facilidade de uma identificação excessivamente sentimental, ou manipuladora.

Hugo Pinto Santos, 2021-06-04

https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846


Frederico Pedreira, https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846


Frederico Pedreira. E tudo isto é fado

 

O recente livro de Frederico Pedreira, Coração Lento, é um bom exemplo de uma tendência para reduzir tudo a um cinzentismo que não parece deixar grande saída.

 

Uma certa poesia contemporânea portuguesa parece ter inaugurado, nos últimos anos, uma nova modalidade, um novo tom: o tristonho - é acompanhada nisso por um certo discurso crítico. Quem veja nesta uma nova Stimmung, para usar um conhecido conceito que convém deixar no original, quem veja nesta uma nova forma de as coisas nos surgirem e nos falarem, uma abertura do mundo, engana-se. Tal como o “poético”, que é essa característica que não chega a ser característica, também o tristonho é uma tonalidade, um modo de dizer que se agarra a todo e qualquer objeto - e toda e qualquer coisa, por mais entusiasmante ou entusiasmada que seja, pode ser rapidamente reconvertida e assumir essa cor própria ao tristonho. É um olhar, doente e dolente, que se abate sobre tudo (os termos, aqui, contam bastante) e que arrasta todas as coisas, uma música de fundo cinzenta que não conseguimos deixar de ouvir. Não é melancólica - falta-lhe a beleza convulsiva, falta-lhe mover-se na extremidade da língua, uma certa agitação que abala as coisas. Não é tristeza - pelo menos aquela, adolescente, de que falava Ginzburg relativamente a Pavese, também ela um extremo sem saída. É um tom menor, que se encaminha para o silêncio mas que nunca lá chega, um modo quase sussurrante de acabar os versos (basta ouvir tantos a declamar para ver que os versos acabam sempre na mesma ausência de tom, na mesma música de elevador de baixa intensidade).

O recente livro de Frederico Pedreira (Coração Lento, ed. Assírio & Alvim) é, a esse nível, exemplar. Exemplar porque este dispositivo encontra uma cristalização que nos permite pensar esta tendência recente, exemplar porque Frederico Pedreira tem uma oficina poética bastante bem feita, com um rigor na construção do poema que falta a muitos - mas a culpa não é deles, muitas vezes, mas da ausência de uma outra figura que desapareceu sem deixar rasto do panorama literário, o editor. Mas exemplar, também, porque Coração Lento permite perceber as limitações que esta tonalidade tem, esta, para citar Kafka - que não tem nada que ver com esta história -, “cinza que não é capaz de tomar um aspeto de vida”. 

A imagem que comparece no segundo poema tem algum interesse (“fósforo a fósforo/ ilumino o teu rosto”), deixando ver o cuidado que Frederico Pereira tem em limar o conteúdo imagético - os poemas são, nos seus melhores momentos, pequenos cristais autocontidos aos quais não se poderia acrescentar mais nada. O problema, no entanto, é que esse rigor na construção acaba por ser contrabalançado, arrastado, por um dispositivo retórico que está constantemente a ser usado e que se abate sobre praticamente todos os poemas de Coração Lento: é o poema “que não vale / mais que uma assinatura”, o “desengonçado estaleiro”, a “pobreza do verbo”, a “volta lenta dos derrotados”, o verso onde se vê “o verde dos olhos dissipar-se/ na chama triste do papel em branco”, a “pobre arte da oratória”, o coração “romântico, lasso, um pouco baço”, as palavras que “vogam acabrunhadas”.

Esta derrota, este derrotismo, esta impotência generalizada que capturou e que se abateu sobre uma parte considerável da poesia portuguesa contemporânea, em que o poema nunca vale “mais que uma assinatura”, em que o verso vê algo dissipar-se na “chama triste do papel em branco”, onde o poeta é este constante derrotado sabe-se lá bem do quê, esta modalidade tristonha que não conhece outra música que não seja esse baixo contínuo sempre igual e sempre o mesmo - tudo isto é um dispositivo retórico ou, pior, não passa de uma autocomiseração através da qual uma certa poesia se regozija pela sua própria impotência. 

Autocomiseração poderá ser, dispositivo retórico é, certamente. Poderá haver aqui uma referência velada a um diagnóstico epocal - a poesia, afinal, desapareceu, ou quase, é hoje um fenómeno marginal - mas esta derrota não precisa de cair necessariamente nesta tonalidade tristonha (ouçam Camões, que tanta derrota conheceu: “acenda-se com gritos um tormento/ que a todas as memórias seja estranho”) e pode assumir outros movimentos e declinações: o protesto, o grito, o entusiasmo, tudo menos esta autocomiseração cinzenta que mais não é que o poeta a assumir o lugar que outros lhe deram (Kafka também poderia dizer-nos algo: “Como um cão! - exclamou ele, para que a vergonha lhe sobrevivesse.” E é preciso que a vergonha sobreviva, dita e escrita). Mas é dispositivo retórico, antes de mais, porque esta tonalidade só poderia ter um fim ao qual se recusa sempre: o silêncio puro e simples, o calar-se de vez. 

Basta abrir um pouco ao acaso Coração Lento para ver funcionar esta retórica, esta “ladainha dos lábios”. 

“A cidade ilumina-se sincera

nas sucessivas cabeças da vitória.

Mal-amados os que esperam 

a dádiva beata na sarjeta.

Milhares de luzes: teço e desteço

o fio de Ariadne, uns olhos de peixe 

amarrados na ponta.

Somos detestados por todos. 

Nem a entrada no radical museu

nos é permitida.

O sangue uma miragem que

já não interessa.

Teremos chegado ao fim, 

nem espinhos nem rosas, 

só uma temperatura morna,

aquilo que a custo compramos,

a vera infelicidade”

Nos seus melhores momentos, a poesia de Frederico Pedreira lembra um certo João Miguel Fernandes Jorge, aquele modo quase narrativo de dar conta de encontros fugazes que deixam algo na memória, pequenos cristais de tempo que o poeta vai limando (veja-se, por exemplo, o poema 38, onde se relata um encontro numa taberna). Há inclusive um poema (o 22º da primeira parte), com o seu “lendo tudo do lado errado da pauta”, a “flauta furada pelo vento”, o “soluço apanhado à sorte”, que consegue escapar um pouco a esta tonalidade tristonha que deflagra em todos os momentos de Coração Lento (mas isto é porque evoca em mim a memória distante de uma “fífia” de que falava um poeta a que volto sempre). Mas a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, para continuarmos com uma possível afinidade de Frederico Pedreira, nunca cai nesse tom tristonho, vagamente nostálgico (“Houve um tempo (...) em que não se chamava versos/ às coisas em que um homem pensava ou sentia”, como se lê no último poema da segunda parte), assume outros e variadas tonalidades, nunca se fica por essa “temperatura morna”, “nem espinhos nem rosas”.

O dispositivo que se repete de poema para poema é aliás verificável por aquele que citei: começa por se delinear uma possibilidade (“tomara que”, como começa o poema 6 da segunda parte), por contar uma história (“estavam os três numa praia.”, como diz outro poema), por abrir uma situação em particular. Mas depressa essa possibilidade, essa abertura, se fecha irremediavelmente, depressa se abate sobre o poema esta tonalidade cinzenta que não é isto nem aquilo. O verso chave do poema, aliás, poderia ser esse “já não interessa”, sendo o resto uma declinação tautológica dessa ausência de interesse que o tristonho, enquanto modalidade, impõe (vejo agora que as notas que fui tomando dizem quase todas respeito ao final dos poemas). Seria interessante, aliás, ver como é que na economia dos diversos poemas se joga essa arquitetura cuidada, essa delimitação rigorosa de uma situação concreta e particular, com esta deflagração do “coração (...) lasso, um pouco baço”, que, a meu ver, é mais baço que lasso e que, consequentemente, acaba por contaminar o resto do poema - que fica sempre e irremediavelmente com essa “temperatura morna” que não é “vera infelicidade” nenhuma.

Que este dispositivo se repita em quase todos os poemas acaba por ter duas consequências desastrosas: a primeira é que, findo o livro, todos os poemas acabam por se equivaler, por se tornarem iguais (é o problema do tristonho: tudo é cinzento, tudo é subsumido a uma equivalência geral, todas as situações, todos os encontros, acabam nesta “temperatura morna”); a segunda é esta tonalidade sempre igual, sempre a mesma, que se abate sobre todo e qualquer poema. É um problema típico do tristonho: não conhece qualquer variação, não conhece outra velocidade, não aumenta nem diminui o som, mas mantém-se sempre na mesma música, sempre nesse tom médio, que não é nem muito alto nem muito baixo (a estrutura “nem...nem” pode ter outros usos, como se sabe), onde tudo é arrastado para essa baça “ladainha dos lábios”. É uma poesia epilogal à qual apetece dizer: e tudo isto é fado.

 

João Oliveira Duarte, 11/06/2021

https://ionline.sapo.pt/artigo/737374/frederico-pedreira-e-tudo-isto-e-fado


***


Entrevista ao autor Frederico Pedreira, vencedor do Prémio União Europeia de Literatura 2021, com o seu livro A Lição do Sonâmbulo.


@ Os_Livros_da_Lena, 2021

Entrevista patrocinada por EUPLPrize (Prémio União Europeia de Literatura).


***



«Numa lufa-lufa entre o coração e a cabeça» — Entrevista a Frederico Pedreira

 

Tânia Pinto Ribeiro, 2017-07-07 

https://imprensanacional.pt/numa-lufa-lufa-entre-o-coracao-e-a-cabeca-entrevista-frederico-pedreira/




CARREIRO, José. “Frederico Pedreira”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/frederico-pedreira.html



Eucanaã Ferraz

https://pt.wikipedia.org/wiki/Eucana%C3%A3_Ferraz

 

CALENDÁRIO

 

Maio, de hábito, demora-se à porta,

como o vizinho, o carteiro, o cachorro.

Das três imagens, porém, nenhuma diz

 

do que houve, para meu susto, àquele ano.

O quinto mês pulou o muro alto do dia

como só fazem os rapazes, mas logo

 

pelos quartos e sala convertia o ar em águas

definitivamente femininas. Eu

tentava decifrar. Mas

 

deitou-se comigo e, então, já não era isso

nem seu avesso: a camisa azul despia

azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

 

de si mesmas, eu diria, e não sei ter

em conta senão que eram o que eram. Partiu

do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

 

Maio, maravilha sem entendimento,

demora-se à porta, como o vizinho,

o carteiro, o cachorro. Porém,

 

nenhuma das três imagens, tampouco

este poema, diz do que houve, para meu susto,

àquele ano.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

O ATOR

 

Pensei em mentir, pensei em fingir,

dizer: eu tenho um tipo raro de,

estou à beira,

 

embora não aparente. Não aparento?

Providências: outra cor na pele,

a mais pálida; outro fundo para a foto:

 

nada; os braços caídos, um mel

pungente entre os dentes.

Quanto à tristeza

 

que a distância de você me faz,

está perfeita, fica como está: fria,

espantosa, sete dedos

 

em cada mão. Tudo para que seus olhos

vissem, para que seu corpo

se apiedasse do meu e, quem sabe,

 

sua compaixão, por um instante,

transmutasse em boca, a boca em pele,

a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

 

Daria a isso o nome de felicidade,

e morreria.

Eu tenho um tipo raro.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

POR VEZES, NÃO RARO

 

Por vezes, não raro,

basta um gesto, sua borracha,

um quase nada de alvaiade,

um rasgo e só.

 

No entanto, o carvão

de certas palavras,

de alguns nomes,

não se apaga fácil.

 

Afogá-lo, inútil:

o maralto traz

de volta cada sílaba

em sal fortalecida.

 

Enterrá-lo? Logo renascerá:

árvore alta, trigo, praga.

No fogo, irrompe a letra,

inda mais sólida liga.

 

Há que esperar do esquecimento

o dente miúdo

e lento roer a nódoa na língua,

o travo no peito.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002

 

UM FIO DE LUZ

 

Um fio de luz:

tesoura que baste

para tornar nítido

o que

 

sobre a cômoda,

sobre a mesa:

um lápis, uma pera,

um cálice,

 

que nossos olhos

podem anotar

sem complicação,

sem gula ou fastio.

 

Mesmo da morte a repentina

ternura, se vista de tal modo:

num vaso, haste, pétala

que cede.

 

Sobre a cômoda, sobre a mesa,

belezas que um nosso gesto

pode anexar ao peito

sem grande peso.

 

Ou, ainda, o peso nenhum

de quando nenhum atavio:

tábua

sem nada em cima.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002, p. 23

 

 

POESIA E SOBREVIVÊNCIA

A imagem de abertura do livro Desassombro é de um fio de luz que penetra o espaço íntimo da casa, recortando sutilmente essa penumbra até evidenciar, sobre a mesa, coisas tão comuns como “um lápis, uma pera, / um cálice”. Objetos de uso cotidiano, frutas que apodrecem; coisas que qualquer pessoa poderia ter em casa e que revelam a medida das nossas necessidades: escrever, comer, embriagar-se. Nesse espaço íntimo e assombrado pela consciência da finitude, uma luz tênue traz a possibilidade de reencantamento pelas coisas simples, pequenas e belas que foram deixadas sobre a mesa. Por outro lado, essa alegria implica simultaneamente no reconhecimento da morte, do fundo trágico da existência.

Ao notar a beleza das coisas que podemos sentir sem grande peso, como esses objetos domésticos, o homem toma consciência de que o seu destino é perdê-los. O enfrentamento com a morte parte de reconhecer que o peso, afinal, será suprimido por uma leveza que não cabe aos vivos. Esse “peso nenhum / de quando nenhum atavio: / tábua / sem nada em cima”, que se refere ao fim das tensões entre luz e sombra, alegria e penar. É especialmente notável a forma como o poeta consegue atenuar a tragicidade da morte ao afirmá-la enquanto ausência de peso, ausência de imagem. Uma leitura pouco atenta poderia inclusive confundir o sentido da estrofe final com a anterior, onde o que se afirma, ao contrário, é possibilidade da beleza e da alegria – apesar de toda precariedade. Os versos curtos e sutilmente recortados – que estabelecem um vínculo entre a forma do poema e a imagem do fio de luz – ajudam a suavizar o aspecto trágico que serve de fundo à alegria; a sombra que permite o aparecimento das pequenas cintilações.

No capítulo anterior, havíamos percebido alguns contrastes semelhantes em um poema de Eugénio Montale citado por Ítalo Calvino, assim como nos pequenos lucciole de origem luciferina descobertos em Bolonha por Pasolini. No entanto, como vimos, esses contrastes são agora articulados em um ambiente íntimo, longe da luz abrasadora dos postes públicos, nessa zona de apagamento onde o desejo pode se refazer em silêncio. No poema, a certeza do fim não é substituída por um otimismo ingênuo, mas também não dissipa o presente em pura negatividade. O permanente contato entre luz e sombra é não apenas necessário, como concerne apenas ao reino dos vivos, reino da imanência. Como afirma Silviano Santiago em seu texto “Um fio de luz: o poema, a esperança”, que apresenta o livro:

 

Entre assombros e desassombros (vale dizer: silêncio e palavra, entre trevas e luz, entre temor e coragem, entre descanso e trabalho, entre decadência e trabalho, entre o belo e o feio, etc.) se recheia o livro de poemas que estamos lendo. (SANTIAGO, 2002, p.11)

 

O mundo de que fala Eucanaã Ferraz não é desvinculado de seu entorno, nem da necessidade de trabalhar e cumprir os ritos do contemporâneo. O homem que experimenta a beleza ínfima dos objetos iluminados é o mesmo que se vê obrigado a reconhecer na finitude o fundamento da alegria. Mas “mesmo da morte a repentina / ternura, se vista de tal modo: / num vaso, haste, pétala / que cede” (FERRAZ, 2002, p.23). A experiência da morte só se torna fundamental na medida em que permite perceber os clarões que iluminam nossa precariedade; no peso da nossa condição trágica, alguns frágeis atavios.

 

Ler mais em: Sobrevivência da delicadeza na contemporaneidade e a poesia de Eucanaã Ferraz, Marcelo Mello. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2014.




CARREIRO, José. “Eucanaã Ferraz”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/eucanaa-ferraz.html



segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Último recorte da planície


A Leontina d’Aguiar
(12/12/1928 – 10/11/2021)

 

Como último recorte da planície

assim vejo o rebentar da morte.

Talvez um semitom aí se agite

oscile perdurável por entre as ervas,

registo da razão sempiterna.

Devagar no lugar que o tom ocupa

subimos devolutos na escala determinada

brandindo. 

Queria por aqui dizer não ao vento contrário,

a mão sob as vísceras, o óleo na testa. 

Oh botão de fraca chuva,

lava na margem as mãos mergulhadas

e dos dedos os atilhos desata 

para que pegado ao tempo

este se desfaça.

 

José Maria Aguiar Carreiro



"flower", por mememe, twitter, 2021-11-26



CARREIRO, José. “Último recorte da planície”. Portugal, Folha de Poesia, 29-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/ultimo-recorte-da-planicie-jose-carreiro.html



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito Poesia e Resistência (Portugal) realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para o ILCML


Resposta de Alberto Pimenta (Porto, Portugal, 1937):


Quê?

um âmbar na cova da mão
cor de mel amolgado
quase maleável
não parece acabado
tão justo e ajustado
mudo macio e
aos olhos translúcida
fonte que espelha
tanta história da terra
um grão uma asa uma flor
e depois o imaginado.

vai a pedra
de entre os dedos
sobe à terra que a chama
na água ao seu redor
muda de leito e de forma
irradia então
puro líquido fulgor
que até ao mais fundo
da memória ilumina
as formas que já tomou
as que ainda há-de tomar.

Estava a escrever este poema (ou talvez a anterior variante) quando chegou o carteiro com o envelope com a carta com o convite Lyracom. Parei de escrever, li, voltei a olhar para o poema e perguntei: onde está aqui a resistência?

Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/resistere e achei como primeira entrada “parar e olhar para trás”. Fiquei inquieto. Não é meu costume fazer isso: parar e olhar para trás. Mas o âmbar… fiquei parado a olhar a luz da pedra que a margem húmida do rio ia engolindo.

E penso: resistir é então antes do mais “parar e olhar para trás”. Mas também é, ainda em latim (vi a seguir), “enfrentar” e “opor-se”, naturalmente ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás. Já não é só desviar os olhos, é enfrentar o próprio caminho.

E então continuo a pensar: talvez sejam, de facto, essas as duas maneiras possíveis de resistir; parar, deixar de olhar para o que está à vista, ou então olhar, ver, e não aceitar. Não resistir será então persistir no caminho, o qual, como é próprio dos caminhos, foi já traçado anteriormente por quem traça os caminhos e as respectivas pontes (neste caso, pontífices). Resistir é não seguir esse caminho, optando ou por virar-lhe as costas, ou por enfrentá-lo. E, tratando-se de poesia, é no contorno da palavra que tudo se passa.

Creio que a poesia, como acto de busca da verdade subjectiva (a ciência é que busca a verdade objectiva), terá de fazer sempre uma dessas duas escolhas: virar as costas ao visto daqui, para manter outros vislumbres, ou seguir mas opondo-se, sempre pela palavra, tornando-a por exemplo outra, ou entrelaçando-a (Varrão: viere) com outras, em ritmos e harmonias de coisas primordiais, e nunca com o ruído das rodas que rolam por esses caminhos e a pouco e pouco até os vão afundando. A menos que se trate de enfrentar essas rodas e engrenagens mandando-as pela ribanceira abaixo. Isso também é muito belo. Desgraçadamente porém elas regressam sempre como desenhos animados que afinal são.

Por isso, nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem.


 Respondem os poetas (de Portugal):

https://ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/




       Poderá também gostar de ler:

 

A heterogeneidade das práticas discursivas a que damos o nome de poesia reflete-se em diferentes conceitos de resistência, tão variáveis quanto as poéticas que lhes estão associadas. “Não há opressão maior e mais infame que a da língua”, escreveu Alberto Pimenta, e a poesia desenvolve mecanismos de resistência que assentam na consciencialização deste facto. Mas, por outro lado, talvez se tenha vindo a criar alguma resistência aos usos que a poesia de tradição moderna reivindicou para “as palavras da tribo”.

Reportando-se ao mundo contemporâneo, Pimenta constatava recentemente: “nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem”. Porquê “ainda bem”? Por que precisa a poesia deste estar à margem? E se não faz falta (?), por que razão continua? As “operações” poéticas de Alberto Pimenta e os diálogos que estas mantêm (ou recusam) com outras poéticas portuguesas contemporâneas serão o ponto de partida para algumas possíveis respostas.

 

Ler mais em: “Tensões e Implicações entre Poesia e Resistência na Contemporaneidade Portuguesa”, Rosa Maria Martelo. In: elyra 2, 12/2013: 37-53 – ISSN 2182-8954. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/25/28

 



CARREIRO, José. “um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/um-ambar-na-cova-da-mao-alberto-pimenta.html



domingo, 7 de novembro de 2021

SIDA, Al Berto

Poema dito por Miguel Rodeia (InVersos, Vimeo, 2012)


Sida

 

aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem – partem

deixam-nos dobrados ao abandono

no interior duma dor inútil muda

 e voraz

 

arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias - o viajante

que irradia um cheiro a violetas noturnas

 

acendemos então uma labareda nos dedos

acordamos trêmulos confusos - a mão queimada

junto ao coração

 

e mais nada se move na centrifugação

dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola

a ausência fulgura na aurora das manhãs

e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos

o rumor do corpo a encher-se de mágoa

 

assim guardamos as nuvens breves os gestos

os invernos o repouso a sonolência

o evento

arrastando para longe as imagens difusas

daqueles que amamos e não voltaram

a telefonar.

 

Al Berto, Horto de Incêndio. Lisboa, Assírio e Alvim, 1997

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

a) Considerando o tema deste poema, como se pode entender a frase “aqueles que têm nome”?

 

b) Na segunda estrofe, o poema fala em arquivar o amor e em pressentir vivo o passageiro ardente. Analise essa aparente contradição.

 

c) Na quarta estrofe, quando o poema sugere a transformação da intensidade amorosa em carência (tudo nos falta), um verso traduz com perfeição a conjugação entre a intensidade amorosa e seu esvaziamento. Qual é esse verso?

 

RESPOSTAS ESPERADAS:

a) O efeito de significado dessa sequência no contexto do poema é o de indicar que os indivíduos que contraem a “sida” (“aids”), além de serem apenas dados de estatísticas e seres condenados ao anonimato por conta de preconceito, têm existência concreta, são reais e fazem parte de nosso quotidiano.

 

b) “Arquivar o amor” remete à perda (morte) sugerida na primeira estrofe; significa, portanto, a impossibilidade do amor por conta daquela perda. A contradição, aparente (formulável nos termos “morte e vida”), está no facto de que a essa impossibilidade não anula a persistência da imagem viva do ser amado. Ou seja, a impossibilidade existencial de amar não “mata” a vitalidade do amor.

 

c) O verso em questão é “a ausência fulgura na aurora das manhãs”.

 

COMENTÁRIOS:

Para responder à pergunta do item a, deveria o candidato identificar uma sequência de notável precisão para os efeitos de sentido que o poema sugere. Deles, o do anonimato forçado pelo estigma não só da doença, mas do tipo de amor a que a “sida” (“aids”) foi inicialmente associada (o homossexual) é, sem dúvida, o sentido mais dramático. A primeira estrofe toda “fala” dessa interdição sofrida por pessoas que nos são próximas, que fazem parte de nosso dia-a-dia, e que apesar de tudo nos procuram e se comunicam conosco. Como se vê, a perceção mínima dessa sequência abre espaço para uma interpretação muito mais aguda do poema.

 

Quanto ao item b, ao contrário do que se pode depreender de uma primeira leitura e do significado mais imediato de “arquivar o amor”, a estrofe toda sustenta uma eloquente apologia do amor, mesmo que interditado pela doença e pela morte. A contradição pressuposta, no caso, é apenas aparente, e serve para salientar a grande afirmação de um tipo de amor que não sucumbe à morte e que se pronuncia com o sofrimento. A questão visa a fazer com que o aluno perceba, sobretudo, essa afirmação.

 

No item c, é particularmente importante observar o efeito produzido pela justaposição de um sujeito que significa, no caso, falta, negação, com um processo verbal que diz exatamente o contrário: “fulgurar na aurora das manhãs”. Claro está que o sentido mais imediato é aquele mesmo: a elevação da sensação da falta a seu extremo. Mas o candidato terá observado que “fulgurar na aurora das manhãs”, conotando brilho, ressurreição, retoma o sentido incandescente atribuído ao amor em versos precedentes, e permite que o leitor associe ao caráter negativo da ausência a força do amor que preside a relação entre o sujeito e o próprio sujeito ausente. Na verdade, espera-se que o candidato procure sair da interpretação mais óbvia e saiba conectar essa frase com o que se acha enunciado sobretudo na segunda estrofe.

 

Fonte: UNICAMP, Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, 2.ª fase. Caderno de Questões 2003. Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/2003/download/comentadas/LPortuguesa.pdf





Textos de apoio

 

“ARQUIVAMOS O AMOR NO ABISMO DO TEMPO”

 

“SIDA” compõe o último livro de Al Berto, Horto de incêndio, publicado em 1997. O título do livro indica haver uma estreita relação entre vida e morte, além de um teor elegíaco, que é entrevisto por meio não apenas do título do livro, mas também pelos títulos dos poemas. Marcando a passagem do corpo pelo mundo, “o viajante/ que irradia um cheiro a violetas nocturnas”, horto e incêndio se tornam apêndices entre corpo e mundo, na medida em que o corpo, matéria e superfície em choque com outras matérias, como o fogo, a elas se amalgamam, compondo-o e decompondo-o. No poema, a doença imprime no sujeito lírico a consciência aguda do tempo na franca exposição da dor pela morte dos amigos. Colada à morte daqueles que “não voltaram/ a telefonar”, a morte pressentida: o arquivamento do amor e de um tempo, da “labareda nos dedos”, restando-lhes “a mão queimada junto/ ao coração”.

No pensamento paradoxal presente em Horto de incêndio, a imagem da mão queimada no poema é condizente com a encenação de Al Berto na fotografia de Paulo Nozolino, interpretada na subseção “Conheço o corpo que gera o seu próprio fogo”, do capítulo “A queda brusca dos anjos”, mostrando que Al Berto não se desvia de seu projeto literário e de tudo que o atravessa. O seu projeto está todo em Horto de incêndio. Entretanto, não se pode negar a presença de um fosso, algo interrompido que os verbos na primeira pessoa do plural, em pretérito perfeito, sugerem: “arquivámos”, “acendemos”, “pressentimos”. A melancólica constatação da perda, da degeneração dos corpos como uma via crucis imposta a todos os que optaram viver os prazeres do corpo e aos quais, agora, resta o “rumor do corpo a encher-se de mágoa”. Acatando a dor e a impotência diante da morte anunciada pelo telefone que já não toca, termina por não lamentar o motivo da morte, mas aqueles “que amamos e não voltaram a telefonar”.

 

Preparo um desamor: as relações afetivo-conflituosas em Al Berto e Caio Fernando Abreu, Mônica Anunciação. Salvador, UFBA, 2019

 

PARA ALÉM DOS JARDINS

 

Os poemas de Horto de Incêndio aproximam-se de uma reflexão sobre a morte, uma vez que apresentam um discurso impregnado de uma contaminação elegíaca, exatamente de reflexão sobre um luto de seres retirados de sua essência para uma transformação, talvez as múltiplas “metamorfoses” das quais o sujeito enunciador irrompe : “e cada um de nós metamorfoseou-se/ num cemitério ambulante – cada um de nós/ sepultou na alma uma quantidade desumana/ de dor e de mortos”. Podemos ainda localizar esta preocupação fúnebre do enunciador lírico dos poemas, uma vez que temos dentro deste jardim incendiado uma busca por tempos perdidos por exemplo no texto “O senhor da asma”.

 

Senhor da asma

 

Deitado há muito tempo – o cigarro luzindo

Com um olho de tigre vindo da noite e

Lá fora

Ainda se apercebe a húmida incandescência das frésias

o rumor surdo de vozes belas pelo jardim onde

a florida macieira se recorta no intenso céu de verão

(...)

mas nada é perfeito (...)

falta-me o tempo para procurar o tempo perdido...

(AL BERTO, 2000. p.32-33)

 

Neste excerto de um poema que dialoga não só com a figura, mas também com a obra de Marcel Proust, que era acometido pela asma, temos exatamente uma situação de contingência, na qual nem mesmo a ambientação idílica da natureza permite que o sujeito enunciador seja tocado por ela. Parece que numa atmosfera de doença, na consciência de sua finitude, o Eu confirma o seu ser-para-a-morte heideggeriano. O diálogo com a obra proustiana nos remete a uma fixação de determinados acontecimentos, cujo registro é marcado pela passagem do tempo e sua inexorável ação. A asma aí, tal qual a Proust, limita, condiciona e provoca o aprofundamento da reflexão, enfatizando uma atmosfera de sufocamento e ausência de faculdades mais primárias (respiração, nomeadamente), o que podemos tornar diálogo juntamente com a pertinência da visão já mencionada anteriormente. De qualquer maneira, é importante destacar aqui que também conforme aponta Deleuze (1997), o escritor é levado a perverter a sua linguagem para não se perder na afasia, por meio da intenção de criar uma nova língua dentro da língua, capaz de reinventar formas de superar o desamparo do mundo através de sua superação mais adâmica19.

 

É possível, a partir disso, tentar entender a trajetória da poesia al bertiana por meio de um sólido e contínuo paradoxo entre hortos e incêndios; entre o prazer da experiência e o recolhimento daquilo que esta gerou através de uma profunda reflexão a que os sujeitos poéticos de Al Berto se propõem a pensar. A dimensão existencial da obra al bertiana consiste, portanto, nessa dialética tensão entre a dramatização empírica, levada às últimas conseqüências e o pensamento acerca dessa própria teatralização erigida sobre a multiplicidade de vozes existentes em sua obra. Maurice Blanchot parece concordar com o que já foi aqui apontado de Deleuze em relação à experiência:

 

E aquele que escreve é igualmente aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado corretamente, fê-la cessar, tornou-a compreensível nessa intermitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, dominou-a ao medi-la.

(BLANCHOT, 1987, p.29)

 

Em todas as obras de Al Berto podemos verificar uma espécie de fixação obsessiva por uma juventude, mormente ilustrada em seus poemas por diálogos entre um sujeito enunciador suficientemente adulto com um adolescente. Em Horto de Incêndio, temos exatamente o ápice dessa dialética, numa perspectiva piorada, na medida em que este último sujeito lírico do poeta encontra-se definitivamente esgotado e definhado conforme aponta, por exemplo João Barrento (2000) ao referir-se a este livro como uma metáfora da morte e da doença, seguindo a linha da pensadora Susan Sontag (A doença como metáfora). Considerando a Aids como uma das maiores “epidemias” que acometeram a humanidade, é possível relacionar o conceito sontagiano com algumas observações aqui já propostas (SCLIAR, 2003) no que diz respeito à atividade da melancolia em estrangeiros, migrantes, e sobretudo indivíduos que compunham sociedades e contextos com grandes doenças ou padecimentos físicos maiores. Acreditamos, com isso, que o poema “Sida” sintetiza também um discurso melancólico posto que registra a gravidade de uma doença que ataca dialeticamente, uma vez que operacionaliza um deterioramento físico e também afunila e fustiga o Homem na sua mais perene condição: a certeza de estar muito próximo de sua finitude.

Delicadamente, Al Berto nos apresenta um poema denso da dor do luto, mas lúcido diante do perecimento implacável a que estamos subordinados. Com um campo semântico voltado para a idéia de dor e de perda, o texto se apresenta através de uma aguda tentativa de superação, que no entanto não parece ser possível contornar:“ nem a vida, nem o que dela resta nos consola”. No poema, cuja voz enunciadora é a de quem permanece, sofrendo a ausência daqueles que um dia emagrecem –partem, a corrosão se dá em nome da solidão de quem deve acostumar-se com o vazio e com a consciência de uma igual finitude. O tempo funciona como aliado, na tentativa do esquecimento e da superação do luto em função da morte próxima em função da Aids que o título submete : “ o vento arrastando para longe as imagens difusas daqueles que amamos”. Não obstante, a doença, metáfora social, funciona para além de uma fissura, cancro que atinge a coletividade, apontando a falência dos tempos, a decadência recorrente a que a História invariavelmente retorna.

 

Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006

 

_______

19 Estas observações podem ser verificadas também no meu texto intitulado Al Berto: (entre) o horto e o incêndio publicado nos Anais do XX Encontro da ABRAPLIP (2005).

 

 

 

DESLOCAMENTOS

 

A partir dos anos 1970, a experiência da linguagem levada às últimas consequências por artistas nos anos 1950-1960 começa a dividir lugar com uma linguagem que pretende testemunhar experiências, comunicar uma troca de vivências e construir alegorias referencializáveis do mundo cotidiano. Haveria vida antes e depois do poema, que passa a funcionar como um tipo de dobradiça para determinado discurso. Em Portugal, Al Berto, por exemplo, não opera mais movido por uma forte experimentação, sua literatura se recusa a isso, mas por uma consciência da discursividade da escrita propondo um “pacto novo” (cf. MAGALHÃES, 1981) com os leitores. É assim que entendemos a inescapável narratividade de seus primeiros livros, com enredos e personagens, a forte presença da cidade como cenário quase natural para a vida subjetiva, assim como o sentido de seu último livro, Horto de incêndio, de 1997, em que ele canta a aproximação da morte com que se defrontava, através de um câncer linfático, bem como seu desejo homoerótico, justapondo-os. É justamente num poema intitulado “Sida” que podemos entender um pouco como funciona esse “pacto novo” a que chamamos discursividade.

Malgrado o texto do poema abordar a tópica tradicional do sentimento melancólico pela passagem do tempo (tempus fugit) e suas consequências, como a distância, a perda, o silêncio e a morte, é o título que recorta, restringe e, digamos assim, torna presente o sentido do poema, criando territórios comunicativos muito bem definidos com os leitores. A força da literatura pós-autônoma em um livro como Horto de incêndio está, dentre outros motivos, no gesto de intitular um poema com o nome de AIDS, sem qualquer truque de conotação, muito mais do que um simples uso jornalístico e informativo, isto é, referencial, de um tema contemporâneo, por mais que isso também se dê. O discurso da doença, presente ao longo de todo o livro, assim como em livros anteriores – “já não necessito de ti / tenho a companhia nocturna dos animais e a peste”, diz ele em “Ofício de amar”, do livro Trabalhos do olhar, de 1982 (BERTO, 2000, p. 184) –, inscreve um sujeito autoral gay e em vias de morrer e lhe dá sentido público, político, implica-o e o compromete, a ele e aos outros, leitores ou não, estimulando a “imaginação pública” da qual Ludmer afirma: “nesse lugar não há realidade oposta à ficção, não há autor e tampouco há demasiado sentido (2010, p. 04). Esse texto implica, na verdade, mais de uma geração, para além das diferenças de classe, gênero, nacionalidade e orientação sexual, mesmo que marcando também estas. Essa é a discursividade que se impõe na produção do seu sentido, não mais apenas a densa textualidade de matriz autônoma e experimental e com raízes na ideia mallarmeana de uma poesia em permanente estado de crise – “crise de versos”, versos em crise –, como discute Marcos Siscar (cf. 2010, p. 113-6).

Al Berto é um herdeiro de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, como os poetas anteriores no argumento de Lourenço; diríamos, todavia, que é um herdeiro ilegítimo, pois – intercalado historicamente pelas densas experiências de linguagem ao longo do século XX – opta por trair a linhagem dos que valorizaram a noção de autonomia da linguagem poética. Essa geração emergente nos anos 1970 parece repetir um certo Campos cuja voz pergunta: “Símbolos? Estou farto de símbolos... / Uns dizem-me que tudo é símbolo. / Todos me dizem nada.” (PESSOA, 2007, p. 475); geração contra a espessura simbólica da linguagem da geração anterior. O cansaço finissecular do heterônimo modernista de Pessoa pode ser divisado em inúmeros poemas de Al Berto, menos no décor da linguagem e mais na longa narratividade de seus poemas em prosa, e mesmo nos versos, nos ambientes urbanos de comportamentos transgressores e diferença sexual, na subjetividade neurastênica, nos personagens marginais, na flânerie por alegorias realistas ou lisérgicas de uma Europa crepuscular do último quarto do século XX. Quando contrapomos tudo isso à entrada de Portugal na Comunidade Econômica Europeia na década de 1980, assim como ao neoliberalismo que avançou predador sobre as regras do capitalismo financeiro, também nos anos 1980, e à Guerra Fria que se estendia há décadas, verifica-se que os poemas de Al Berto dizem menos respeito à emulação autônoma do texto decadentista de Campos e mais respeito ao flagrante desconforto das subjetividades implicadas no cenário europeu da década de 1980, como lemos em O medo:

 

22 de junho

bebo para que as remotas cicatrizes doutros corpos não desatem a doer. bato o pé ao ritmo frenético dum rock, abandono o olhar pelos bilhares, pelos flippers silencio o desejo neste copo de vinho. ouço-me latejar, ao cair do dia, sentado, bebo, perdido a um canto duma sala de jogos na província.

e o inferno está aqui, no verde dos panos dos bilhares onde a agonia e a solidão têm forma de bolas. bebo mais e mais, para que as noites felizes não voltem sem ti, nunca mais. (BERTO, 2000, p.229).

 

Da autonomia à pós-autonomia: poesia como crítica do presente (notas de pesquisa)”, Sandro Ornellas. Revista landa, vol. 1, n.° 2 (2013)

 



CARREIRO, José. “SIDA, Al Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 07-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/sida-al-berto.html