domingo, 19 de novembro de 2023

Como fazer caligramas

Salette Tavares, “Aranha”. Tipografia, 40cm x 40 cm. 
In “Brin Cadeiras”, Poesia Experimental-1, 1964
          


Como fazer caligramas:
passo a passo para criar pOEmaS deSenhadoS


  Um caligrama é um poema cujas palavras formam um desenho relacionado com o seu conteúdo. Nesta atividade, vais explorar a tua criatividade, desenhando caligramas com as tuas palavras ou utilizando formas pré-definidas que se relacionem com o tema que pretendes desenvolver.

    Para isso, segue as seguintes etapas:

1. Escolha do tema

    Escolhe um tema livre para o teu poema. Pode ser um objeto, um animal, uma comida, uma pessoa, um lugar, um sentimento ou uma ideia que queiras expressar visualmente e poeticamente.

2. Desenho do contorno

    Desenha um contorno simples no papel ou no computador, que represente o teu tema. Se estiveres a usar o papel, desenha com um lápis, não com uma caneta. Se estiveres a usar o computador, usa um programa de desenho, como o Paint ou o Gimp. O contorno deve ser claro e fácil de reconhecer.

3. Escrita do poema

    Escreve o teu poema normalmente, num documento à parte. Tenta expressar os teus sentimentos em relação ao tema.  Podes usar recursos poéticos, como rimas, aliterações, assonâncias, metáforas, comparações, etc. Evita tornar o poema muito longo; entre 6 a 12 linhas é um bom tamanho.

4. Incorporação do poema na forma

    Escreve o teu poema dentro do contorno que desenhaste, usando um lápis ou um editor de texto. Não te preocupes se as palavras não couberem bem dentro dos limites, pois podes ajustá-las depois. O importante é que as palavras sigam o formato do desenho e criem um efeito visual interessante. Por exemplo, podes escrever as palavras na horizontal, na vertical, na diagonal, de trás para frente e de cabeça para baixo. Podes repetir as palavras, cortá-las e juntá-las. Também podes usar diferentes tamanhos, cores e tipos de letras, se desejares.

5. Ajustes no tamanho da escrita

    Revê o teu caligrama e faz as alterações que achares necessárias. Verifica se o teu caligrama está legível, criativo, original e coerente com o tema. Pede a opinião de um colega ou do professor, se precisares de ajuda. Podes aumentar ou diminuir a tua escrita em certas partes do desenho, para que as palavras se adaptem melhor ao contorno. Podes apagar o teu primeiro rascunho e escrever o poema novamente quantas vezes quiseres até ficares satisfeito com o resultado.

6. Finalização

    Apaga o contorno do teu desenho, de modo que sejam apenas as palavras do teu poema que criem a imagem. Se estiveres a usar o computador, podes usar a ferramenta de apagar ou de preencher com a cor de fundo. 

Parabéns, acabaste de criar um caligrama!

J O S É C A R R E I R O

A escrita criativa na sala de aula

“A escrita criativa constitui uma das melhores formas de estimular os processos de pensamento, imaginação e divergência”, Elisabete Carnaz, Da criatividade à escrita criativa.

Desenhar com poesi

A escrita de caligramas é uma atividade que envolve diversos processos cognitivos, como a planificação, a textualização e a revisão, que são comuns a qualquer produção escrita. No entanto, a escrita deste tipo de textos também requer uma atenção especial à dimensão visual da linguagem, que implica o uso de recursos como a forma, a cor, a disposição e o tamanho das letras, para criar um efeito de sentido. Estimula também a imaginação e a criatividade, pois permite ao aluno expressar-se de forma original e inovadora, combinando palavras e imagens de acordo com o seu tema, o seu estilo e o seu propósito.

Aprendizagens a privilegiar:

  • Utilizar de modo proficiente diferentes linguagens e símbolos associados às línguas, à literatura, à música, às artes, às tecnologias (Área de Competência: Linguagens e textos, PASEO). 
  • Experimentar processos próprios das diferentes formas de arte (Área de Competência: Sensibilidade estética e artística, PASEO).

Avaliação:

  • Coerência e harmonia temática: existe uma relação lógica e harmoniosa entre o tema, o poema e o desenho no caligrama? 
  • Intencionalidade comunicativa: o caligrama transmite eficazmente a mensagem ou o tema escolhido? 
  • Adequação ao formato: o caligrama segue as orientações da atividade e enquadra-se na definição de poesia visual e caligrama?

Sequência didática:

A sequência didática proposta segue uma ordem lógica e progressiva de atividades, que visam desenvolver a habilidade de escrita de caligramas pelos alunos. Esta sequência apresenta também uma articulação entre os conteúdos, as atividades e a avaliação, que estão relacionados com o tema da poesia visual e com o conceito de caligrama. Além disso, a sequência didática utiliza recursos variados, como textos, imagens, diálogos, roteiros e ferramentas digitais que tornam a aprendizagem mais dinâmica, interativa e motivadora.

Primeira aula:

1. Introdução do conceito de poesia visual e contextualização da importância e relevância desta forma artística.

2. Observação dos poemas visuais “Escada” (de Jaime Salazar Sampaio), “Metro e meio de poesia” (de Gastão Debrex), "Velocidade" (de Ronaldo Azeredo) e "Pêndulo" (de E. M. de Melo e Castro), acompanhada de diálogo, em assembleia de turma, sobre as suas características distintivas e/ou semelhantes relativamente aos poemas estudados em aula.

Metro e meio de poesia, Gastão Debrex


3. Registo escrito da sistematização da leitura dos poemas visuais, com base em questões dos roteiros de leitura.

4. Definição de caligrama, de modo que os alunos entendam o que é um caligrama e como ele se relaciona com a poesia visual.

5. Como preparação da atividade do domínio da Escrita, procede-se à visualização de outros exemplos de poesia visual disponíveis no blogue Folha de Poesia, que abrangem diferentes estilos e técnicas, como o uso de colagens, recortes, símbolos e cores.



6. Produção individual de um caligrama, seguindo as orientações do roteiro/tutorial intitulado “Como fazer caligramas: passo a passo para criar pOEmaS deSenhadoS”.

(Nota: A tarefa de criação do caligrama poderá ser terminada como trabalho de casa.)

7. Elaboração de um portefólio de caligramas, publicado no Padlet da turma, com os seguintes propósitos:

- criar um corpus de referência, para, nas aulas de TIC, os alunos transformarem o roteiro/tutorial escrito num vídeo, onde incluirão os caligramas nas suas diferentes etapas de produção e a narração a explicarem os procedimentos que adotaram; 

- preparar a divulgação dos trabalhos numa exposição da Biblioteca Escolar;

Segunda e terceira aulas:

8. Exposição e apreciação dos trabalhos:

- cada aluno apresenta o seu trabalho à turma, indicando também os materiais ou o programa informático que utilizou na criação artística e explicando como a produção do poema foi significativa para si;

- cada aluno da turma elege o poema de que mais gosta e faz um comentário construtivo que realce os pontos fortes e sugira áreas que podem ser melhoradas no caligrama com base em critérios como: coerência e harmonia entre o tema, o poema e a imagem no caligrama; clareza e expressividade da mensagem transmitida; adequação do caligrama ao formato e às orientações da atividade.

9. Feedback global da atividade:

- expressão da opinião sobre a realização da atividade, usando a nuvem de palavras criada com a ferramenta digital Mentimeter, que permite responder à pergunta: «O que achaste da atividade de escrita criativa de um caligrama?». Cada aluno deve escrever uma ou mais palavras que expressem o seu sentimento ou opinião sobre a atividade. As palavras mais repetidas aparecerão em maior destaque na nuvem de palavras, que será projetada na sala de aula;

- avaliação dos resultados pelo professor e síntese final, destacando os aspetos mais relevantes da atividade e as possíveis melhorias para o futuro.


J o s é s a C é r a C a r a r r r e e e i i i r r r o o o J J s



Poderás também gostar de:




CARREIRO, José. “Como fazer caligramas". Portugal, Folha de Poesia2023-11-19. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/11/como-fazer-caligramas.html


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pessoa, leitor de Horácio

foto da biblioteca de Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. 
Horácio ao lado de Homero

 

Quem lê Horácio recebe o seu lugar na comunidade das mentes mais argutas do passado, que encontraram neste poeta um estímulo da inteligência. Quando Camões escreveu a ode «Fogem as neves frias» ou a expressão estapafúrdia «Acroceráunios infamados» (ver Lusíadas 6.82), quis mostrar ao leitor que leu Horácio; talvez que tinha inteligência mais do que suficiente para entender Horácio. No âmbito restrito dos Estudos Clássicos, ainda hoje pasmamos com o rol ilustre de nomes que quiseram dedicar ao estudo de Horácio o melhor das suas capacidades intelectuais. Seria possível citar muitos nomes ingleses, alemães, italianos, americanos, etc. Mas vou só referir o nome de uma latinista de referência para mim, uma mulher extraordinária que assinou, em colaboração com o Professor Robin Nisbet, os melhores comentários alguma vez escritos à obra de Horácio: Margaret Hubbard, professora em Oxford (morreu em 2011, aos 86 anos), célebre pela sua inteligência cintilante, pelos três cigarros que fumava ao mesmo tempo (um na mão e dois acesos no cinzeiro), pelo gosto com que bebia quantidades valentes de vinho branco sem que lhe se notasse a mínima alteração; e namorada, em determinada fase da sua vida, da filósofa e escritora Iris Murdoch.

Outro obcecado por cigarros e por Horácio foi Fernando Pessoa, o homem que obrigou o mundo a rever a definição da palavra «génio». Quem visitar a Casa Fernando Pessoa, vê na biblioteca particular do autor a edição parisiense de Horácio, preparada por F. Plessis e P. Lejay (na edição de 1911, segundo o catálogo da biblioteca). Este livro existe também em várias bibliotecas da Universidade de Coimbra. Mas não pode ter sido a única edição de Horácio consultada por Pessoa, porque a edição de Plessis e Lejay omite alguns poemas que, já nos séculos XVI e XVII, eram considerados escandalosos. Um deles é a Ode 1 do Livro 4, em que Horácio se declara apaixonado: não por Lídia, Cloe ou Neera, mas sim por um jovem chamado Ligurino. Um manuscrito conservado no espólio de Fernando Pessoa mostra que Pessoa escolheu justamente esta ode para uma tentativa de tradução do latim para português. Assim, é certo que, além da edição que se encontra hoje na Casa Fernando Pessoa, o criador dos heterónimos consultou também Horácio noutras edições (remeto para o artigo de Luiz Fagundes Duarte, na revista Euphrosyne 1993, pp. 203-216).

Pessoa sabia latim, mas traduziu apenas o princípio da ode horaciana sobre Ligurino. Aliás, fez várias versões dos versos iniciais; e depois desistiu. Fez o mesmo com o início da Arte Poética. Talvez ele tenha sentido aquilo que eu próprio muitas vezes tenho sentido: como é difícil (ou mesmo impossível) transpor para a tradução a beleza das palavras em latim. É a frustração com esse problema que me tem impelido a fazer edições bilíngues de Vergílio e de Horácio: para que, ao menos, o texto latino esteja debaixo dos olhos dos leitores; e para que a tradução portuguesa tenha como objetivo primeiro constituir uma ajuda para a decifração do texto original.

Mas o que Pessoa (esse génio!) conseguiu com as Odes de Horácio foi um feito maior do que traduzi-las. Recriou-as. Fez renascer a voz de Horácio, 2000 anos após a morte do poeta romano. Na verdade, a poesia do heterónimo Ricardo Reis é uma recriação espantosa de Horácio. Sem que haja, porém, uma única citação literal do poeta romano! É como se a alma de Horácio tivesse reencarnado em Pessoa, tal como a de Homero teria reencarnado no poeta romano arcaico Énio (segundo testemunho do próprio Énio... presunção e água benta!). Reis não precisa de citar Horácio para ser Horácio. Aliás, quem cita Horácio literalmente não é Reis mas Álvaro de Campos, dando assim outro testemunho da obsessão de Pessoa por Horácio.

Leia-se o poema de Campos que começa com o verso recheado de palavras latinas «O mesmo "Teucro duce et auspice Teucro"». Campos está aqui a citar uma ode horaciana: em concreto, a Ode 7 do Livro 1. O segundo verso do poema de Campos dá-nos mais uma palavra em latim e mais uma alusão à mesma ode de Horácio: «É sempre "cras" - amanhã - que nos faremos ao mar». Este verso remete para o último da ode de Horácio: «Amanhã araremos de novo o mar enorme». E a expressão de Campos «nada que desesperar...» traduz o latim «nil desperandum» da ode horaciana.

Ricardo Reis não traduz, portanto, versos de Horácio. Transforma-se em Horácio. E escreve os poemas que Horácio poderia ter escrito se tivesse composto em português. Horácio escreveu quatro livros de Odes. Reis acrescentou mais um livro ao conjunto: um livro que destila a quintessência de Horácio e também interpreta e soluciona problemas famosos nas odes horacianas.

Um exemplo fascinante é a ode de Reis que começa com as palavras «Floresce em ti, ó magna terra, em cores / a vária primavera». Este poema de Ricardo Reis explica duas odes horacianas que têm causado perplexidade aos intérpretes, porque são dois poemas sobre a chegada da primavera em que, abruptamente, Horácio muda para o tema da morte (Ode 1.4; Ode 4.7). Reis explica a associação que Horácio fez entre a primavera e a morte: «Mas dorme em cada campo o outono dele. / O inverno cresce com as folhas verdes.» Ou seja: a morte está latente em cada nascimento.

É sabido que Fernando Pessoa quis de tal modo encarnar Horácio que andou às voltas com os problemas da métrica usada pelo poeta romano. No espólio de Pessoa, há testemunhos desse fascínio pela métrica latina, estudados pelo saudoso Fernando Lemos no seu livro «Fernando Pessoa e a Nova Métrica» (Lisboa, 1993). No entanto, não é na métrica de Horácio (impossível de reproduzir em português) que assenta o horacianismo de Ricardo Reis: é muito mais na dicção. A colocação das palavras nas frases lembra os hipérbatos da textura em «puzzle» das frases horacianas. Um exemplo expressivo é o poema de Reis que começa «As rosas amo dos jardins de Adónis, / Essas vólucres amo, Lídia, rosas». Na ordem direta, teríamos «Amo as rosas dos jardins de Adónis; amo essas rosas vólucres, Lídia».

Já agora: vólucres? Os especialistas de Pessoa discutem se o poeta escreveu «vólucres» ou «volúveis». Parece-me claro que Reis está a referir-se ao verso de Horácio «as flores demasiado breves da rosa amena» (Ode 2.3); e, de facto, Horácio usa o adjetivo latino «volucer» (cujo sentido é «alado», «rápido», «fugidio», «transitório»). Mas também usa «volubilis» uma vez nas Odes: curiosamente, é a última palavra da ode sobre a paixão por Ligurino.

E por falarmos em dúvidas quanto a uma palavra que Ricardo Reis escreveu: na única ode ricardiana em que Quinto Horácio Flaco é nomeado, será que o poeta português lhe chamou «louro Flaco» ou «louco Flaco»? As edições de Ricardo Reis são discrepantes: tanto lemos «louco Flaco» como «louro Flaco». Não há nada na poesia do próprio Horácio que nos leve a pensar que ele era louro: o que ele diz do seu cabelo é que ficou prematuramente grisalho (Epístolas 1.20.24). Mas no final da Arte Poética, fica claro que o poeta verdadeiro terá necessariamente um toque de loucura.

Dir-se-á que «louCo FlaCo» resulta numa aliteração inestética. Mas é bem horaciana. Veja-se o v. 22 da Arte Poética: «Currente rota Cur urCeus exit?» (em português: «enquanto a roda rodopia, porque sai um cântaro?»).

A dicção de Reis, com o seu puzzle de palavras, é parte integrante do prazer que nos é proporcionado pelos poemas de Ricardo Reis e de Horácio. Em 1973, Margaret Hubbard (certamente com três cigarros acesos e com um copo de vinho branco à sua frente) fez esta pergunta a respeito da poesia lírica horaciana: «what is the nature of the pleasure one feels or should feel in it?»

A resposta, quanto a mim, está na dicção: no puzzle de palavras e de sentidos; e também no desafio prazeroso que coloca à nossa inteligência. É um prazer que nos toma e domina, tal como o dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis, que sentem o «inútil gozo / sob a sombra tranquila do arvoredo / de jogar um bom jogo».

Mas este gozo não é tão inútil assim: funciona, como os jogadores de xadrez bem sabiam, como amortecedor pessoal contra as tragédias do mundo. Na 2.ª Guerra Mundial, prisioneiros de guerra alemães e ingleses encontraram um prazer partilhado na poesia de Horácio (como conta Patrick Leigh Fermor - mas isso fica para outro post, pois este já vai longo).

Queremos uma síntese dos 7795 versos de Horácio? Ricardo Reis conseguiu fazê-la numa frase: «Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada é livre».

 

Frederico Lourenço, Coimbra, 29/10/2023

“Pessoa, leitor de Horácio” disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

AO PRINCÍPIO ERA O LIVRO (Natália Correia)

Tertúlia em casa de Natália Correia.

 

O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor. Mas esse percurso não seria possível se dele não fossem motores o editor e o livreiro, figuras por vezes obscuras, mas não menos importantes na marcha do livro para o seu destino universal.

Contudo não é sem razão que hoje se levanta um alarme. Agouros tecnológicos de entre os quais avulta a aldeia global de MacLuan vaticinam, se não a liquidação do livro pela hipnose dos meios dos meios audio-visuais, pelo menos a grande redução do seu espaço. Ai de nós se assim for. Porque a audiovisualidade por mais apuradamente cultural que seja e dificilmente o será, não permite a retenção da palavra, o voltar atrás que a escrita faculta, elementos indispensáveis à reflexão, do exercício da memória e ao despertar da subjectividade cada vez mais apoucada pela tirania da massificação.

Dignificar o livro e promover a sua expansão é, pois, obra de quantos se empenham em salvaguardar os valores individualizantes que poderão resistir à imbecilização de uma humanidade puerilizada pelo igualitarismo da quantificação tecnológica.

Quando Gutemberg inventou o prelo tipográfico, alguns viram nesse meio de democratização dos conhecimentos obra faustica de um pacto com o diabo. E ainda Lope de Vega nela denunciava o perigo de abandalhar pela quantidade o que devia ser património da qualidade. Contudo, hoje, por ironia da mudança dos tempos e das vontades, é nesse produto nobre da tipografia que residem as virtudes da defesa do qualitativo da tecnologia globalista que despersonaliza e que desidentifica, que anula os indivíduos. Bem hajam, pois, os que nesta ilha confirmam a tradição da bibliofilia que tanto a tem ilustrado e a dotam com mais um instrumento de cultura. Porque esta é a própria condição do fortalecimento da personalidade açórica e da sua invulnerabilidade à usura de um Estado centralizador, que no seu narcisismo, se condena a afundar-se nas águas fatais da autocontemplação, tragicamente alheio a realidades indefectíveis como esta: açorianidade!

Natália Correia, “Ao princípio era o Livro” - discurso proferido aquando da inauguração da livraria Nove Estrelas, dirigida por José de Almeida, em 07-12-1981.

(Partilhado por Carlos Melo Bento, em https://www.facebook.com/carlos.melobento, 23-09-2023)


domingo, 24 de setembro de 2023

Não chores (Fernando Venâncio)

 

"NÃO CHORES"

 

Vivo actualmente num lar em Beja. Da minha janela, desenha-se a Oeste o perfil do casario desta capital do Baixo Alentejo. A vida sozinho, em Mértola, que eu adorava, tornara-se impossível. Sou muito bem tratado aqui, tenho de dizer, fiz uma boa escolha.

Há dias, enquanto uma auxiliar me mudava a cama de cima a baixo, outra fazia-me a barba. Gente de enorme simpatia e competência. Foi quando, ao regressar ao quarto na cadeira de rodas, pedi para me deixarem observar melhor a paisagem. Assim se fez. E então apontei: "Ali é o Sul."

Via-se o mais calmo e baixo quadro alentejano: montado, cerros a perder de vista. Uma das jovens senhoras adivinhou-me o pensamento. "Mértola", disse ela. Não retive as lágrimas. Além, 50 exactos quilómetros adiante, estaria a minha terra, onde vivi estes últimos sete anos.

"Não chore", ouvi-lhes em uníssono.

Mas não. Era de chorar o que eu ali mais precisava. Um choro muito íntimo, muito amargo e muito doce.

Sim, em certos momentos, o mais acertado é deixarem-nos chorar. É a melhor forma de consolo.

 

Fernando Venâncio, https://www.facebook.com/fmvenancio, 23-09-2023

 


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

pequeno crime diário (Maria Judite de Carvalho)




 

UM LUGAR NO AUTOCARRO

 

Basta entrar num autocarro, num metropolitano ou num elétrico e olhar. É que vemos sempre coisas ou adivinhamo-las ou imaginamo-las, claro. Mas às vezes acontecem mesmo. Esta foi num autocarro – n.º 5, n.º 7, sei lá, eu e os números…

Sentada logo à entrada, uma menina de uns quinze anos muito bonita. Loiros cabelos verticais até aos ombros, nem um fora do lugar, sardas postiças e, sobre os joelhos, livros, cadernos e duas mãos cuidadas. Uma menina-mulher que talvez tivesse sido chamada e tido uma boa nota, porque nos seus olhos claros havia um brilho feliz. Não sei porquê mas pensei que ela devia ser estudiosa, muito eficiente, extraordinariamente atenta ao mundo apaixonante que a rodeava. Uma rapariguinha completa, há quem diga, como se as raparigas andassem por aí aos bocados.

A certa altura entrou um homem de uns sessenta anos, não mais, e, como todos os lugares estavam ocupados, deixou-se ficar na retaguarda. Era um homem bem conservado, bem vestido, um homem que devia ter sido interessante e que talvez ainda se julgasse capaz de interessar. Era também um homem bem-educado, viu-se depois. Depois, foi quando o olhar claro e lavado da rapariguinha se deteve nele, e ela se levantou, muito amável, para lhe oferecer o lugar. Sabia que se deve oferecer o lugar às pessoas idosas e aquele homem era para ela muito idoso, podia ser seu avô. Então…

Há muito que não vejo uma pessoa tão atrapalhada como aquele homem. Primeiro subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue. Depois, em voz um pouco trémula, disse: «Obrigado, mas sinto-me perfeitamente de pé.» A rapariguinha, porém, queria por força levar a cabo a sua boa ação diária e insistiu. Que fizesse favor, que ela ia sair na paragem seguinte… Havia sorrisos em volta, pessoas bichanavam, o homem devia sentir-se horrivelmente infeliz. E acabou por se sentar, com um sorriso muito falso, quase esgar, para fugir aos olhares do carro inteiro.

A rapariguinha saiu, de facto, na paragem seguinte, e eu fiquei a perguntar a mim própria se ela já teria feito mais vezes bonitas ações daquelas. É possível que logo que chegasse a casa pegasse no seu diário – porque quase todas as meninas de quinze anos têm um diário – e escrevesse qualquer coisa à volta disto: «Tive um dezoito em Matemática e dei o meu lugar no autocarro a um pobre velho.» Porque o critério das idades varia conforme vamos envelhecendo. E se aquela menina não rasgasse o tal caderno e pudesse lê-lo daqui a muitos anos, e pudesse também recordar o homem a quem ofereceu o seu lugar, saberia que no dia tal às tantas horas praticara o seu pequeno crime diário.

 

Maria Judite de Carvalho, A janela fingida (Textos publicados entre 1968 e 1969 no Diário de Lisboa e outras publicações). Lisboa, Seara Nova, 1975. Prefácio de Batista-Bastos intitulado “Maria Judite de Carvalho: Uma ternura magoada”.

 


A crónica "Um Lugar no Autocarro" de Maria Judite de Carvalho é uma reflexão delicada e observadora sobre as interações humanas quotidianas. Através de uma narrativa simples, a cronista apresenta uma cena com personagens aparentemente comuns, mas que nos conduzem à reflexão sobre a natureza humana e a passagem do tempo.

A escritora começa por destacar a capacidade das pessoas de observar e imaginar as vidas alheias em espaços públicos como o autocarro, o metropolitano e o elétrico. Essa habilidade permite criar histórias e conjeturas sobre desconhecidos, um tema que ressoa com a nossa curiosidade inerente sobre os outros.

O foco da crónica recai sobre uma jovem estudante e um homem mais velho. A descrição meticulosa dos detalhes físicos da jovem, a sua atitude gentil ao oferecer o seu lugar ao homem mais velho e a reação envergonhada deste último são elementos que evidenciam as complexidades das interações humanas. A autora sugere que a jovem, apesar da sua idade, é madura e generosa, enquanto o homem “idoso”, embora educado, está desconfortável com a inversão de papéis tradicionais.

A expressão final “pequeno crime diário” é uma metáfora que sugere que a menina, ao ceder o seu lugar ao senhor, praticou um ato de violência simbólica contra ele, atingindo a sua dignidade e autoimagem. A expressão revela ainda que a menina desconhece a gravidade do seu gesto, que julga ser uma boa ação, e que o faz todos os dias, por hábito. Essa expressão sintetiza a essência da crónica de Maria Judite de Carvalho, que explora a complexidade das interações sociais, a perceção pública e as motivações por trás das boas ações. Ela convida o leitor a refletir sobre como as nossas ações podem ter interpretações surpreendentes e como a conformidade social pode condicionar a nossa conduta. A crónica evidencia que nem sempre as boas intenções garantem uma boa comunicação e que nem sempre a realidade corresponde às aparências. A crónica propõe também que devemos ter mais respeito e sensibilidade pelos outros, especialmente pelos mais velhos, que muitas vezes são tratados como objetos de piedade ou de desprezo.

*

Do ponto de vista literário, a crónica de Maria Judite de Carvalho intitulada «Um lugar no autocarro» pode ser analisada como um texto que apresenta as seguintes características:

Estrutura: A crónica tem uma estrutura simples, composta por três partes: a introdução, onde o narrador apresenta o cenário e as personagens; o desenvolvimento, onde o narrador relata o conflito entre as personagens e as suas reações; e a conclusão, onde o narrador faz uma reflexão sobre o significado do episódio.

Narrador: O narrador é um observador que testemunha e comenta o que se passa no autocarro. Ele usa a primeira pessoa do singular, mas não se identifica nem revela os seus sentimentos ou opiniões. Ele mantém uma certa distância e neutralidade em relação às personagens, mas também mostra alguma simpatia e compreensão pelo homem. Ele usa um tom coloquial e informal, mas também recorre a algumas expressões cultas e eruditas.

Personagens: As personagens principais são a rapariguinha e o homem, que representam dois tipos humanos opostos: a juventude e a velhice, a inocência e a experiência, a idealização e a realidade. As personagens secundárias são os outros passageiros do autocarro, que funcionam como um coro que reforça a ironia e o humor da situação.

Espaço: O espaço é o autocarro, que simboliza um lugar de encontro e de desencontro entre as pessoas. É um espaço fechado, limitado e transitório, onde se manifestam as diferenças sociais, culturais e geracionais.

Tempo: O tempo é o presente, que coincide com o tempo da narração. É um tempo breve, que corresponde à duração da viagem de autocarro. É um tempo que marca a passagem da vida e que evidencia o contraste entre o tempo cronológico e o tempo psicológico das personagens.

Tema: O tema é o conflito entre as gerações, que resulta da incompreensão mútua e da falta de comunicação. É também o tema da solidão humana, que se manifesta na dificuldade de estabelecer laços afetivos e de reconhecer o valor do outro.

Estilo: O estilo é marcado pela ironia, que se expressa na discrepância entre o que as personagens pensam, dizem e fazem. A ironia também se manifesta na contraposição entre os adjetivos usados para caracterizar as personagens e os seus comportamentos. O estilo é ainda caracterizado pelo humor, que se baseia no exagero, na surpresa e na antítese. O humor serve para criticar os preconceitos e os estereótipos sociais, mas também para suavizar a amargura e a tristeza do tema.

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Do ponto de vista sociológico, a crónica revela alguns aspetos da sociedade portuguesa dos anos 60 do século XX, como o papel da mulher, a educação, o envelhecimento e as relações intergeracionais. A rapariguinha que oferece o seu lugar ao homem é apresentada como uma menina-mulher, estudiosa, eficiente e atenta ao mundo, mas também como alguém que segue as normas sociais de cortesia e de boa ação diária. Ela representa uma geração que procura o sucesso escolar e a integração social, mas que ainda não questiona os valores tradicionais. O homem que aceita o lugar é descrito como um homem bem conservado, bem vestido e bem-educado, mas também como alguém que se sente humilhado e infeliz por ser considerado velho e incapaz. Ele representa uma geração que se vê confrontada com o declínio físico e social, mas que ainda se julga interessante e ativo. A crónica mostra, assim, o contraste entre duas formas de estar no mundo e de lidar com o tempo, que geram mal-entendidos e conflitos.

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Do ponto de vista psicológico, a crónica explora os sentimentos e as reações das personagens perante uma situação aparentemente banal, mas que se revela significativa. A rapariguinha oferece o seu lugar ao homem com uma intenção bondosa, mas também com uma certa ingenuidade e presunção. Ela não se apercebe do impacto que o seu gesto tem na autoestima do homem, nem da ironia dos outros passageiros. Ela vive num mundo idealizado, onde as boas ações são recompensadas e os velhos são pobres e agradecidos. O homem recebe o lugar da rapariguinha com uma mistura de gratidão e ressentimento. Ele não consegue recusar o lugar sem parecer mal-educado ou orgulhoso, mas também não consegue aceitá-lo sem se sentir diminuído e ridicularizado. Ele vive num mundo realista, onde as aparências enganam e os jovens são arrogantes e insensíveis. A crónica mostra, assim, o abismo que separa as duas personagens e que impede uma verdadeira comunicação e compreensão.

 

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A Vida é um Autocarro Vazio - Uma crónica sobre a vida e obra de Maria Judite de Carvalho, disponível na RTP Play, 19-09-2023.

Figura incontornável da literatura portuguesa do século XX, Maria Judite de Carvalho preferiu sempre observar à exposição. Apelidada por Agustina Bessa Luís como "flor discreta da literatura", não poupou nas palavras que escreveu sobre a sociedade portuguesa, com uma acutilância que poucos conseguiram alcançar. Talvez o silêncio que preferia a fazia mais atenta aos pequenos pormenores do quotidiano. Casada com Urbano Tavares Rodrigues, passou alguns anos em Paris, mas foi em Lisboa que encontrou o território perfeito para os seus romances e crónicas que tantos jornais popularam. Publicou 13 romances, venceu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco por duas vezes e foi ainda feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Quem lê Maria Judite de Carvalho antevê um pouco daquilo que foi a sua vida. Com este documentário, mergulhamos no seu percurso e esperamos que nos possa dar algumas pistas para desvendar os silêncios de uma das maiores escritoras portuguesas


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Romance de D. Pedro e Dona Inês (Natália Correia)

Pedro e Inês, os amantes infelizes, por Sérgio Marques, 2021

 

Romance de D. Pedro e Dona Inês

 

Era seu colo de neve
tocado daquela graça
do contorno mais breve
onde o infinito se enlaça.

Morta, em sua fronte uma constelação
era presságio do ritual macabro
duma coroação.

O que bebera em sua carne a claridade
que dos deuses escorre para a mais pura taça
partiu com mãos de tempestade
apressando com ira
e com desgraça
a fatalidade que os ungira.

E só parou quando mudo no espanto
onde o enlevo da morte se adivinha
o fim do mundo ficou esperando
aos pés da mais fantástica rainha.

 

Natália Correia, Poemas (1955)

 

O poema é inspirado na história de amor trágico entre o infante D. Pedro e a sua amante Inês de Castro, que foi assassinada por ordem do rei D. Afonso IV, pai de D. Pedro, em 13551. Após a morte de Inês, D. Pedro declarou que se tinha casado secretamente com ela e mandou coroá-la como rainha, expondo o seu cadáver no trono.

O poema apresenta uma estrutura narrativa, podendo ser dividido em três momentos: a descrição da beleza de Inês (primeira estrofe), o relato do seu assassinato (segunda e terceira estrofes) e a reação de D. Pedro (quarta estrofe).

As imagens da primeira parte parecem ser ambíguas, visto que a neve pode simbolizar a palidez da pele de Inês após a morte, mas também pode simbolizar a brancura e a delicadeza da sua pele em vida. A graça e o contorno podem sugerir a beleza e a delicadeza da sua forma mesmo na morte, mas também podem sugerir a elegância e a perfeição da sua forma em vida. O infinito pode representar a transcendência da beleza de Inês, mesmo após sua morte, mas também pode representar a eternidade do amor entre Inês e D. Pedro.

A meu ver, os versos da primeira estrofe parecem evocar a beleza serena do corpo morto de Inês após a sua morte violenta, usando imagens de pureza e tranquilidade para contrastar com a tragédia que ocorreu. Assim, o contorno breve do corpo mortal demarcaria a fronteira entre o físico e o espiritual, como se estivesse tocando o infinito.

A segunda estrofe introduz elementos sombrios na narrativa, com a menção de uma constelação na sua fronte como presságio do "ritual macabro / duma coroação" póstuma, como de facto veio a acontecer.

A terceira estrofe revela a crueldade do destino, sugerindo que o que atraía a claridade dos deuses na sua carne foi arrancado com fúria e desgraça. O sujeito poético emprega nesta parte do texto uma linguagem bem sombria e dramática para narrar o ato cruel que tirou a vida de Inês. Palavras como "tempestade", "ira", "desgraça" e "fatalidade" são escolhidas cuidadosamente para expressar a fúria e a injustiça que marcaram o crime. A palavra "tempestade" evoca uma sensação de caos e violência, sugerindo que o ato foi tumultuoso e selvagem. "Ira" ressalta a intensidade da raiva subjacente a essa ação violenta, enquanto "desgraça" aponta para o trágico e infortunado destino de Inês. A palavra "fatalidade" enfatiza a inevitabilidade do ocorrido, como se o destino estivesse selado desde o início.

Na quarta estrofe, o sujeito poético retrata a profunda reação de D. Pedro perante o cadáver de Inês, revelando seu espanto e dor de maneira comovente.

A utilização de uma hipérbole, ao afirmar que "o fim do mundo ficou esperando / aos pés da mais fantástica rainha," é notável. Essa expressão enfatiza a intensidade do amor de D. Pedro por Inês e a extensão de seu sofrimento. Ao sugerir que o "fim do mundo" estava à espera, a poeta indica que, para D. Pedro, nada mais importava a não ser o seu amor por Inês. Essa hipérbole realça o aspeto trágico e atemporal do amor do protagonista, como se a própria ordem do mundo estivesse suspensa ou interrompida diante da morte de Inês.

Além disso, ao chamar Inês de "rainha" depois de sua morte, a poeta destaca o caráter fantástico e paradoxal da situação. Inês, embora morta, é descrita como uma rainha, talvez indicando que o seu amor e beleza transcenderam a vida e a morte, conferindo-lhe uma realeza eterna. Esse uso do termo "rainha" também ressalta a importância de Inês na vida de D. Pedro e a profunda reverência que ele sentia por ela, independentemente das circunstâncias.

O poema "Romance de D. Pedro e Dona Inês" de Natália Correia é um texto que evoca uma atmosfera sombria e trágica, mergulhando na lenda histórica do amor proibido entre D. Pedro I de Portugal e Dona Inês de Castro.

 

Túmulos de D. Pedro e D. Inês, dispostos frente a frente, no Mosteiro de Alcobaça



sexta-feira, 25 de agosto de 2023

és o cacto que organiza os pensamentos do dia (Marcelo Torres)


 

PEQUENOS BUDAS DO NORDESTE


Talvez seja assim
você se afasta sofrendo
têm duas mãos trêmulas juntas
com elas pode tocar
o outro que não está
nem na rua
nem na padaria
és o cacto
que organiza
os pensamentos do dia

 

Marcelo Torres, Infernos Fluviais e Por que nunca conversamos sobre Nick Cave?, São Paulo, Editora Clóe, 2023

 


terça-feira, 1 de agosto de 2023

A tradução como interpretação no Cântico dos Cânticos: o caso da cor da pele da noiva

 


“Sou negra – MAS bela”? - Não!

(A propósito dos episódios de racismo desta semana que envergonham toda a raça humana)

O nome – ainda que não o punho – de Salomão foi responsável por aquele que pode ser considerado o brinde-surpresa da Bíblia: o facto de, neste heteróclito e tantas vezes contraditório conjunto de livros (de épocas e autorias muito diversas) sobre a história da relação dos judeus com Jeová, se encontrar lá no meio uma pequena antologia de versos eróticos de que Jeová está totalmente ausente.

O motivo que justificou a inclusão desta antologia erótica no Antigo Testamento foi a atribuição da sua autoria ao rei Salomão. Na versão grega do Antigo Testamento, o título afirma-se como “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão” e o nome do filho de David surge, com efeito, no interior do texto; de tal forma, aliás, que não é impossível experimentarmos a ilusão de ser o próprio rei a enunciar alguns dos versos emitidos por uma boca masculina, em resposta a outros versos claramente enunciados por uma mulher. No entanto, tal como no caso do livro de Sabedoria (também falsamente atribuído a Salomão), questões de cronologia tornam impossível a aceitação de que tenha sido o grande rei judeu a compor este conjunto de versos desgarrados em que um noivo e uma noiva antevêem (e, a dada altura, parecem gozar) as delícias do leito conjugal.

Excluída a possibilidade da autoria salomónica, fica então a pergunta: o que fazer deste pequeno livro, no seio da austera Bíblia, livrinho esse cujo tema é sintetizado pela palavra “sexo”? Porque com ou sem a assinatura de Salomão, o conteúdo do livro é inescapável: é uma antologia de versos eróticos.

Confrontados com a necessidade de explicar a razão da existência do Cântico dos Cânticos, exegetas bíblicos de todas as épocas e quadrantes (judeus, católicos, ortodoxos, protestantes, etc.) desenvolveram uma artilharia de interpretações metafóricas do Cântico, através das quais procuraram fazer-nos ver que não é de sexo entre um casal humano que aqui se trata, mas do amor de Deus (o “noivo”) ou de Jesus por uma noiva que pode ser o povo eleito, a igreja católica ou até a Virgem Maria. A liturgia das Vésperas Marianas inclui trechos do Cântico dos Cânticos, como “Pulchra es, amica mea” (“És bela, minha amiga”), e – surpreendentemente – os versos do primeiro capítulo deste livrinho que começam “Nigra sum – sed formosa” (“Sou negra – mas bela”, Cântico dos Cânticos 1: 5).

Esta voz feminina que aqui nos fala descrevendo-se como negra (“mas” bela) sugere um caminho de reflexão bem interessante. Porquê o “mas”? Que surge tanto na tradução portuguesa da Bíblia dos Capuchinhos, como na consagrada tradução latina da Vulgata? Na versão grega do Antigo Testamento, a noiva do Cântico dos Cânticos diz de si própria “sou negra e bela” (μέλαινά εμι κα καλή). Segundo o comentário ao Cântico de Othmar Keel, também é nessa linha que devemos entender o original hebraico (e por isso o ilustre teólogo suíço traduz “schwarz bin ich und anziehend”). São Jerónimo, autor da tradução latina, deve ter sentido a necessidade de pôr uma desculpa na boca da Sulamita (como a noiva é designada no capítulo 7 do Cântico) por ser negra, levando-a a afirmar que era bela apesar de ser negra. Os tradutores da Bíblia dos Capuchinhos mantêm espantosamente o “mas”, mitigando-o por meio da alteração de “negra” para “morena”: “Sou morena, mas formosa... não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou...” Tanto em hebraico, em grego como em latim, a noiva é claramente negra. Não há volta a dar.

E o noivo – surpresa! – é branco. “O meu amado é alvo e rosado”, canta a noiva negra (5: 10); o ventre dele é da cor de marfim (5: 14); as pernas são “pilares de alabastro” (5: 15). Além de ser uma antologia de versos eróticos incrustada no meio da Bíblia, o Cântico dos Cânticos celebra aquilo que, ainda nos anos 60 do século passado, era proibido no chamado Bible Belt dos EUA: um casamento “misto”. Ainda bem que, “no fundo”, se trata de um texto altamente alegórico que nada tem que ver com aquilo que ostensivamente se lê no próprio texto... Ainda bem que é tudo sobre (os nunca mencionados) Jeová ou Jesus ou Maria ou a Igreja... É que ler o Cântico dos Cânticos de forma literal e simplista seria decerto muito redutor! É melhor dizermo-nos que os peitos referidos (8: 10) não são peitos, mas símbolos de realidades místico-divinas. Contudo, temos o direito de ser selectivos com a aplicação destas leituras alegóricas, pois por vezes é mais aconselhável ler o texto à letra! É claro que o noivo a entrar no “seu jardim” para “colher lírios” no “canteiro dos aromas” (6: 2) só designa mesmo actividades hortícolas...

Sarcasmo à parte (e perdoem-me todos aqueles que perfilham a ideia de que o Cântico dos Cânticos é o grande texto religioso sobre o amor místico de Deus): como são belos os versos desta extraordinária antologia erótica; versos para os quais a filologia bíblica contemporânea encontra paralelos expressivos em tantas outras literaturas de territórios próximos de Israel (mormente o Egipto antigo e helenístico). Quão belos são os versos que nos dizem “forte como a morte é o amor; implacável como o abismo é a paixão” (8: 6). Como é verdade, meu Deus, que não há fortuna no mundo que possa comprar o amor (8: 7). E como é mais verdade ainda que se identifica o verdadeiro amor por ser aquele que, simplesmente, é portador da paz (8:10).

 

#RacismoNão #viniciusjunior #Bíblia #teologia

 

Crónica de Frederico Lourenço, «Sou negra – MAS bela? - Não!» in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 28-05-2023


Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval,
Marcel Camus, Brasil, Itália, 1959

 

  

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Cantar de Cantares - Códice Alcaíns, Javier Alcaíns.
Barcelona, Moleiro editor, 1999. ISBN: 9788488526700