quarta-feira, 12 de setembro de 2007

ULISSES NA ILHA DE CIRCE (José Carreiro)

Flor de Lotus (National Papyrus Center, Giza, Egipto)

      



ULISSES NA ILHA DE CIRCE
     
      
I. ULISSES
    
Que força é esta ou que prazer identifico
no lótus que me ofereces?
O que eu posso comer faz-me diverso de meus companheiros.
O chão reparte a flor de lótus
sendo a escolha uma ordem: o prazer.
Lançarei os braços em toda a certeza do espaço
e voltarei ao mar corrido este torpor que sinto.
Eu demoro, prudente, e mais me separo
de quem me espera.
Algo em mim será sem retorno.
     
    
II. CIRCE
    
Um sopro aclara a falange redita pelo sol.
Um canto obscuro vem trazer a raiva
de me saber traída.
Como podes escolher a outra casa
como posso ser nada se me destino a ti.

    
Chuva de ÉpocaPonta Delgada, 2005.





CARREIRO, José. “Ulisses na ilha de Circe”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 12-09-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/09/flor-de-lotus.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/09/12/ulisses.aspx)


quarta-feira, 20 de junho de 2007

CAMÕES, HERÓI HUMANISTA

                 

               
               
                 
HUMANISMO CÍVICO EM OS LUSÍADAS 
                   
Por: José Maria de Aguiar Carreiro
              
               
                             
              
              
DIMENSÃO EXEMPLAR DA HISTÓRIA NARRADA
              
A história narrada em Os Lusíadas tem uma dimensão exemplarpor apresentar factos e figuras como modelos a seguir, bem como atitudes a evitar (estas em menor número).
              
Quem são as personagens agentes de feitos ilustres notáveis?
              
São muitas. São os heróis da navegação, da conquista, os reis portugueses que dilataram a Fé e o Império, que difundiram a civilização nas terras de África e Ásia; são também aqueles cujo nome ficou na História por actos de excepção… (cf. Canto I, 1-2)



              
Os Lusíadas, canto I



              
Em Os Lusíadas, especialmente a partir do Canto V, no final de cada Canto, há partes que não são narrativas, porque o poeta aproveita para tecer os seus comentários e críticas. Contudo, segundo os cânones da epopeia, o Poema de Camões deveria ser alheio à pessoa do poeta. É neste sentido que Luís António Verney, no séc. XVIII, faz as seguintes críticas:
              
“Errou o Camões em não sustentar sempre o carácter e grandeza do seu herói, que abaixa sensivelmente no canto VIII, do meio para diante. Errou nas enfadonhas digressões que introduz por toda a parte. Errou em acabar quase todos os Cantos com exclamações mui fora de propósito e muito contra o estilo da epopeia.” (in Carta VII do Verdadeiro Método de Estudar, Editorial Presença, p. 168).
              
De opinião oposta à anterior, Eduardo Lourenço, dois séculos mais tarde, diz o seguinte:
              
Os Lusíadas não são a primeira epopeia realista dos tempos modernos, mas a primeira que nada perdeu da sua força, graças ao fulgor da sua forma, quer dizer, graças à sua autonomia de poema humanista, de realidade escrita” (“Camões e o tempo ou a razão oscilante” in Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983, p. 34)
              
Um dos propósitos de tais intromissões do poeta é o de doutrinar e construir, por cima do tradicional herói guerreiro, um novo tipo de herói, o humanista.
              
              

O HERÓI POSSÍVEL
              
Camões, em Os Lusíadas, apresenta o heroísmo em termos teóricos, programáticos, havendo uma distância entre a perfeição idealizada e o plano da realidade.
              
Primeiro, Camões anuncia as formas de comportamento que o herói deve evitar (Canto VI, 95-96): não descansar à sombra dos louros conquistados pelos seus antecessores e evitar a ociosidade, inércia e comodismo.
              
Depois, anuncia o programa em forma afirmativa (Canto VI, 97-99): necessidade de exercício, esforço da coragem e capacidade de enfrentar todo o tipo de sofrimento.
              
Assim, advêm-lhe não só honras próprias, isto é, do seu próprio mérito, como também coragem para enfrentar os perigos de guerra e para dominar o medo e a comoção – manifestações exteriores que se forem moldadas dão-lhe uma superioridade moral e uma serenidade intelectual.
              
Numa sociedade justa e bem organizada, um homem destes será chamado ao desempenho de cargos de responsabilidade: será chamado “contra vontade sua, e não rogando” (Canto VI, 99). Requer-se um homem desprendido do poder, que aceite exercer cargos mesmo sem o desejar, apenas movido por uma consciência cívica de servir a pátria.
              
O bom herói, ou bom português, deve renunciar a tirania, a ociosidade, a cobiça, as “honras vãs”, o “ouro puro” (cf. Canto IX, 92-95)   pois,
              
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
              
Cumpridos estes preceitos,
              
Sereis entre Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos
(Canto IX, 95)
              
Apesar de tal prémio, este tipo de herói ainda não corresponde, por completo, ao ideal ético do poeta dos tempos novos.
              
              

O PODER DO POETA
              
Em última análise, quem premeia os nautas com uma ilha mitológica é o próprio vate ao resgatá-los do esquecimento (da lei leteia), dispensando-lhes a fama e imortalidade no e atravésdo seu canto.
              
O rudo canto meu, que ressuscita
as honras sepultadas,
as palmas já passadas
dos belicosos nossos Lusitanos,
para tesouro dos futuros anos,
convosco se defende
da lei leteia, à qual tudo se rende.
(Ode VII)
              
              
Nas estâncias 83 a 87 do Canto VII, Camões chega a enumerar as pessoas que não merecem a glória que o canto do poeta dá: os lisonjeiros; os que actuam movidos por um interesse pessoal em prejuízo de um bem comum e do seu rei; os que actuam movidos pela ambição (os que sobem ao poder por influências, compra de cargos de importância), permitindo dar largas aos seus vícios; e os que exercem despoticamente o poder.
              
O poeta chega ao ponto de se queixar do facto de a aristocracia portuguesa, representada na pessoa de Vasco da Gama, não ser amiga das Musas:
              
Que ele, nem quem, na estirpe, seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga
(Canto V, 99)
              
Por isso, diz, não é por Vasco da Gama que as Musas (o poeta) cantam; é pela pátria:
              
Às Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga
              
E mais: “se este costume dura” Portugal ficará pobre em heróis:
              
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
              
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
(Canto V, 97-98)
              
Sem Virgílio não há Eneias, sem Camões, Gama.
              
Em toda a sua poesia, a começar no canto épico, há a expressão, quase cansada, de uma decepção causada por uma crise inerente à sua época.
              

              
O HERÓI HUMANISTA
              
“A melhor forma de serviço público e de empenhamento cívico, aquela em que se logra a desejada simbiose entre a vida activa e a vida contemplativa, é a do homem de intelecto, do humanista, que é simultaneamente um homem de acção, um soldado. Por isso tanta importância tem no nosso discurso histórico-literário o topos das Armas e Letras.
              
Doravante a ideia de mérito e experiência individual, sempre que se trate de eleger alguém para lugares de responsabilidade pública, vai sobrepor-se à ideia de linhagem e privilégio de nascimento.” (Luís de Sousa RebeloA tradição clássica na literatura portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1982).
              
Nesta ordem de ideias, há uma visão de conjunto sobre os heróis portugueses como sendo imperfeitos (cf. Canto V, 92-97), por não ultrapassarem o desenho tradicional do herói cavaleiresco.
              
O poeta diz ter vergonha destes heróis, porque são ignorantes, ao contrário dos Antigos, como Octávio que,
              
[…] entre as maiores opressões,
Compunha versos doutos e venustos
(Canto V, 95)
              
As figuras da Antiguidade são o paradigma humanista da associação das ARMAS e das LETRAS.
              
Da galeria de heróis de Os Lusíadas, Nuno Álvares Pereira é aquele que Camões decide construir à medida do novo conceito de herói, pois é representado como excelente na capacidade de discursar (cf. Canto IV, 14-21) e excelente no campo de batalha (cf. Canto IV, 28-44).
              
Mesmo que historicamente Nuno Álvares Pereira tenha sido um bom estratega e orador, naturalmente que Camões o estilizou tão à maneira de Fernão Lopes que, por sua vez, já o havia tornado lendário.
              
Mas, convenhamos,  em Os LusíadasCamões é o único que comporta majestosamente estas duas qualidades: a conciliação das Armas e das Letras.
              
Se repararem, quando se fala da epopeia Os Lusíadas o nome que vem imediatamente à mente é o de Camões e não o de um herói literárioOs Lusíadas não nos remetem senão para o seu criador; ao passo que, no que toca a outras epopeias, ocorrem-nos os nomes de Ulisses, Eneias, El Cid, Tristão, Hamlet, D. Quixote, isto é, os respectivos heróis literários.
              
“Para compensar uma tal ausência – cujo mistério se repercute sobre a imagem global da nossa literatura – temos uma espécie de herói-vivo, cuja lenda verídica teve o condão de se converter em existência ideal, como é apanágio da ficção perfeita. Referimo-nos, naturalmente, ao próprio Camões, herói da sua própria ficção, que se tornou para um povo inteiro bem mais mítico e, mesmo, bem mais heróico que os heróis exaltados pelo seu Poema.” (Eduardo Lourençoop. cit.)
              


              
AUTOMITIFICAÇÃO
              
“Com efeito, o esforço original de automitificação através do qual Camões tenta escapar à insignificância e ao esquecimento […] não é uma descoberta de Camões. Constitui a vivência mais inovadora do seu tempo cultural.” (Eduardo Lourençoop. cit.)
              
Na estância 154 do Canto X, o poeta caracteriza-se:
              
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
[…]
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
              
A seguir, na estância 155, pede para servir o rei e a pátria através do seu canto.
              
Em Os Lusíadas, podemos ver a encarnação dos ideias do humanismo cívico na figura do poeta, numa associação do homo politicus e homo theoreticus.
              
O poeta apresenta-se com os mesmos termos que refere César:
                                                                 
 
Vai César sojugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas, nũa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
(Canto V, 96)
                   
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
[…]
Nũa mão sempre a espada e noutra a pena
                 
(Canto VII, 79)
                 
                  
Aliás, o naufrágio do próprio poeta é tomado como objecto quer da narração épica quer do canto da deusa Tethis:
              
“Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço o Canto que molhado
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapado,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.”
(Canto X, 128)
              
              
O poeta é cantado como infeliz, mas honroso pelo seu canto.
              
A glória que mais alta se levanta é a dos heróis que Camões narra, mas é também a
sua.
              

José Maria de Aguiar Carreiro

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/06/20/lusiadas.aspx] 



           
        
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