domingo, 1 de abril de 2007

ROMANCEIRO PORTUGUÊS



         


                

Para uma situação e caracterização do     

Romanceiro Tradicional Português

      
          
            
            romance tradicional, na sua qualidade de género narrativo-dramático, insere-se num corpus mais vasto de textos que compõem a Literatura Popular Tradicional Oral.
         
            Se, por um lado, o romanceiro faz parte da vida quotidiana de um povo não letrado, analfabeto ou quase analfabeto que o transmite e re-produz, pelo menos, desde a Idade Média (séc. XIV?); por outro lado, há que não descurar o facto de os letrados e estudiosos lhe terem dado atenção, registando-o por escrito em colecções e antologias para sobre ele se debruçarem com propósitos diversos (etno-antropológicos, semióticos, linguísticos...). Não fossem, por vezes, esses registos, muitos dos romances que hoje conhecemos já estariam esquecidos. De qualquer forma, o que observamos é que os romances não são composições de êxito efémero, porque perduraram ao longo dos tempos. Isto não quer dizer que se mantiveram intactos: a sua transmissão de “boca a ouvido e ouvido a boca” trabalhou-os e refundiu-os. Quão prodigiosa é a memória dos seus emissores (produ-transmissores, se quisermos) que os fez, num só ritmo e cadência, recitar (declamar) e/ou cantar dezenas e centenas de versos. A sua sobrevivência pode ter sido, afinal, garantida, quem sabe se inconscientemente, pela fusão de um romance noutro ou criação de dois ou três a partir de um único original ou, ainda, por atribuir determinados feitos de uma personagem a outra.
         



            TEXTO, ESTRUTURA E DISCURSO
            DO ROMANCE TRADICIONAL
           
          O romance tradicional não existe enquanto texto, mas num sentido virtual, isto é, enquanto abstracção de várias versões-ocorrência. É por isso que, estruturalmente, o modelo virtual de romance apresenta-se como uma narrativa aberta, passível de transformações da expressão e do conteúdo inerentes ao processo de memorização e re-produção. Cabe ao estudioso «descobrir o que há de invariante, no meio da variedade, e recolhê-lo como tal» (Diego Catalán et alii, El Romancero Pan-Hispánico, 1984)
         
            Os editores, hoje em dia, preferem grafar estas composições em versos longos – de catorze a dezasseis sílabas, com dois hemistíquios e com cesura a partir da sétima ou oitava sílabas – por estar mais de acordo com os cantares de gesta de que são provenientes.
                                       
                    
Apresento a seguir uma versão-ocorrência de um romance carolíngioisto é, que diz respeito à gesta de Carlos Magno e os seus Pares (referente histórico dos séculos VIII-IX) aproveitada pela literatura oral popular da Península Ibérica:


                   
FLORESVENTO ou CRUEL VENTO
              
Versão de Parada d’Infanções, concelho de Bragança (José Leite de Vasconcelos,Romanceiro Português. 1º vol., Coimbra, 1958. Versão nº 35):
            
 Ó vento, ó cruel vento, — ó roubador maioral!
Derrubaste três cidades1, — todas três em Portugal;
Desonraste três donzelas, — todas de sangue real;
Mataste três inocentes, — todos três por baptizar.
Foge, foge, ó cruel vento, — p’ràs bandas de além do mar.
Nas terras donde passares, — nem água t’hão-de qu’rer dar;
As fontes donde beberem2, — logo se hão-de secar;
A mesa donde comeres, — logo se há-de escachar;
e a cama donde dormires, — em fogo s’há-de abrasar.
Foge, foge, ó cruel vento, — p’ràs bandas dalém do mar.
– Se derrubei três cidades3, — tenho com que as pagar;
Se desonrei três donzelas, — dote tenho p’ra le dar;
Se matei três inocentes, — Deus me queira perdoar.
– Ó vento, ó cruel vento, — ó roubador maiorial!
           
1 Variante: igrejas (na mesma localidade)
2 entenda-se: “beberes”
Variante: igrejas (na mesma localidade)
     




              





Segundo João David Pinto-CorreiaFloresvento ou Cruelvento é uma "impressionante sanção de um cavaleiro que toma a sua própria defesa. Este romance que R. Menéndez-Pidal considerou «la más preciosa joya arqueológica dei romancero portugués», comove-nos pela arrogância e pela violência, ganhando acentos cósmicos pela hábil fusão dos elementos humanos e naturais (a presença do lexema «vento» na própria designação contribui muito para o efeito de sentido) e, sendo um dos romances próprios da tradição portuguesa, considera-se que chegou até nós a partir de um fragmento da canção de gesta francesa Floovent” (in Romanceiro Tradicional Português, Editorial Comunicação, 1984).
                    
           
            Entretanto, tem acontecido que o Romanceiro tem sido contaminado pela quadra, que, na Literatura Popular, vale por um verdadeiro poema de forma fixa (constituído por heptassílabos com uma só rima, do segundo com o quarto verso). Os próprios emissores dos romances crêem estar a contar histórias (“rimances”, “cantigas de segada”, “segadas”) em quadras. Também tem acontecido estar a perder-se a manifestação musical do romance. O verso rareia, estando, inclusivamente, a prosificar-se no Brasil.
                     
            Outra característica do romance tradicional é a sua pequena extensão. Entenda-se: maior que uma quadra e menor que um conto. Mesmo assim, pode apresentar-se muito curto (exemplos: «Cruel vento», um romance carolíngio; «O prisioneiro», novelesco; Na manhã de S. João, religioso) ou mais desenvolvido (exemplo: D. GaifeirosConde Claros de Montalvão e Conde Alarcos). Além do mais, cada romance pode ter versões de várias extensões, havendo a possibilidade de variar o número de sequências.
                             
            Tal como no cantar de gesta, no romance aparece predominantemente rima toante em versos monorrimos, podendo estes ser também polirrímicos. A rima toante quase sempre vem de uma versão antiga. Por vezes, há irregularidades devidas a uma mudança de uma palavra que era arcaica (ex.: padre/ pai) ou, ainda, a falta de um ou outro hemistíquio.
         
            É característico o uso de expressões formulísticas que tendem à estereotipização. Têm uma função mnemónica no sujeito-transmissor, além de serem normalmente indiciadoras do género, como é o caso do uso de advérbios no princípio de uma composição sem que tenham valor deíctico (ex.: « vem...», «Lá vem a Nau Catrineta», «Bem se passeia a Silvana»).
         
            Mais uma característica do Romanceiro é a sua condensação semântica: há uma economia de sentido, não havendo grandes esclarecimentos, didascálias, apontamentos narrativos e descrições extensas. Recorre-se aos mecanismos do explícito e do implícito. A narração do explícito conduz a um aproveitamento do implícito que vai operar-se a nível do leitor, segundo o processo de encatalização, na designação de Greimas.
         
            O romance tradicional nunca conta uma história completa; reduz-se a um ou dois episódios. É por isso que fecha (e abre) abruptamente. É rara a conclusão. São seguintes as três excepções mais frequentes: Conde AlarcosNau Catrineta e Morte de D. Beltrão. Em geral, são recentes as tentativas de remate.
         
            As componentes discursivas predominantes são a narração e, sobretudo, o diálogo que confere uma certa dramaticidade.
         
            O Romanceiro, que é um prolongamento e evolução do cantar de gesta, segue a via da liricização, retirando-lhe o tom exclusivamente guerreiro e introduzindo-lhe vultos e elementos femininos. (As canções de gesta são demonstrativas de uma circulação de práticas linguístico-discursivas centradas nos feitos de Carlos Magno, de seus Pares e principlamente no “desastre” de “Roncesvales” e morte de Roldão)
         
            Como género da literatura oral tradicional, o romance não se subtrai a motivos esímbolos que se deslocam facilmente de um para outro romance ou versão. São de assinalar os números «três» («três doutores», «três feridas», «três feridas», «três lavadeiras») e «sete»(«sete anos», «sete filhas»). "Outros motivos concernem a qualificação dos actores: na suaapresentação («soldadinho de armas brancas», que encontramos em vários romances) ou na sua actividade (os vultos masculinos «combatem», «jogam», ou «vão à caça», enquanto os vultos femininos «passeiam», «tocam» um instrumento, «bordam» ou «penteiam-se»)" (Pinto-Correia).
         
            Nesta perspectiva, João David Pinto-Correia (meu mestre nesta área da Literatura, especialista que sigo de perto na abordagem deste assunto) afirma o seguinte na apresentação crítica ao Romanceiro Tradicional Português: “não se nos afigura gratuito ou susceptível de uma simplista interpretação literal o emprego de símbolos como «sol», «luar» e «gavião» num romance como a Morte de D. Beltrão. No caso de «gavião» ou «águia» nas várias versões do citado romance, temos forçosamente de o interpretar como a «alma» guerreira, do cavaleiro Beltrão ou Valdevinos, principalmente no intratexto épico do romance em questão, em comparação com o aparecimento de uma «pomba» numa das versões de carácter mais acentuadamente lírico de Belardo e Valdevinos."
         

                    
A MORTE DE D. BELTRÃO
              
Versão de Vinhais, recolhida pelo Pe José Firmino da Silva, 1904 (José Leite de Vasconcelos, Romanceiro Português1º vol., Coimbra, 1958, versão nº 18, pp. 31-32).
                
– Quedos, quedos, cavaleiros, — que el-rei vos mandou contar,
Falta aqui o Valdevinos — e seu cavalo tremedal;
Falta a melhor espada — que el-rei tem para batalhar.
Não no achastes vós menos, — à ceia, nem ao jantar;
Só o achastes menos — a porto de mau passar.
Deitaram sortes à ventura — a qual o havia d’ir buscar.
Todas sete lhe caíram — ao bom velho de seu pai;
Três lhe caíram por sorte — e quatro por falsidade.
Lá se vai o bom do velho, — o seu filho vai buscar.
Pelos altos vai voando, — pelos baixos procurando,
À entrada duma vila, — à saída dum lugar,
Encontrou três lavadeiras — numa ribeira a lavar.
– Deus vos guarde, lavadeiras, — que Deus vos queira guardar.
Cavaleiro d’armas brancas — viste-lo por aqui passar?
– Esse soldado, senhor, — morto está no areal;
Os seus pés tem sobre a areia — e a cabeça no juncal;
Três feridas tem em seu corpo, — todas três d’homem mortal;
Por uma lhe passa o sol, — pela outra o luar,
Pela mais pequena delas — um gavião a voar,
Com as asas bem abertas, — sem nas ensanguentar.
– Não torno a culpa aos Mouros, — em meu filho matar;
Só a torno ao seu cavalo, — não no saber desviar.
De mandado de Deus Padre — veio o cavalo a falar;
– Três vezes o desviei — e três me fez avançar,
Apertando-me as esporas — alargando-me o peitoral;
Dava-me sopas de vinho — para melhor avançar;
Os muros daquele castelo — três vezes me fez salvar.
                    


                 
            "Outras figuras, como «cipreste» ou «laranjal» (O Conde Ninho ou Nau Catrineta), a «teia» (Conde Claros em hábito de frade), o «tear» (os «três fios» de algumas versões doConde da Alemanha, a «espada» (de Gerinaldo), ou o «oiro» (das «maçãs de oiro» do Cid e o Mouro Búcar ou o «pente de oiro» da Bela Infanta), ou ainda os «cravos», as «rosas», o «candil», o «vestido de carmesim» e a «gargantilha de cutelo» (do Bernal Francês), remetem-nos para um sentido segundo, cuja decifração nos permitirá uma mais completa apreensão da significação dos enunciados.” (Pinto-Correia, p.40)
         
              


ORIGENS DO ROMANCEIRO
            
Acerca da história do Romanceiro Tradicional, Ramón Menéndez-Pidal salienta que os primeiros romances foram cantados em Castela, donde se terão difundido por toda a Península. Castela seria o centro a partir do qual se teria expandido a tradição romancística pan-hispânica. Sabemos que, no século XV (1421) os romances já circulavam, devido a uma nota feita por um estudante maiorquino no seu caderno. A primeira fonte que prova a circulação deste género em língua portuguesa é do século XVI, através de uma citação feita por Gil Vicente noAuto da Lusitânia (1532) de Cid e o Mouro Búcar.
         
            

CID E O MOURO BÚCAR
          
Versão de Parada de Infanções, Bragança, Trás-os-Montes, em 1902 (José Leite de Vasconcelos, Romanceiro Português. 1º vol., Lisboa 1958, versão n° 4, pp. 17-18).
                  
Bem se passeia Mourilho — de calçada em calçada,
Olhando para Valência, — como estava amuralhada:
O Valência, ó Valência, — Valência, não vales nada!
Quando tu eras dos Mouros, — d’ouro eras mociçada;
Agora, que és dos Cristãos, — nem de pedra mal picada.
Ouvira-o el-rei D. Cidro, — d’altas torres d’onde ‘stava;
Chamou pela sua filha: — Pega lá nessa almofada,
Dilata-m’ aquel’ Mourilho — de palavra em palavra.
– Como farei isso, meu pai, — seu d’amores não sei nada?
Bem-vindo sejas, Mourilho, — boa é a tua chegada!
Sete anos hai, ó Mourilho, — qu’eu não visto faldra lavada.
Outros tantos hai, senhora, — qu’eu não faço a minha barba.
Meteu a mão el bolsilho. — maçãs d’ouro lh’atirava.
Dessas, dessas, ó Mourilho, — tamém meu pai me las dava.
Vai-te daí, ó Mourilho, —  não digas que te sou falsa:
Meu pai deu fio à lança, — não foi para ir à caça...
– Não há cavalo que alcance — a minha eguinha vaia,
Senão o cavalo qu’eu tenho, — qu’ela dele anda prenhada.
Oh qu’aradas tão cumpridas! — Oh que cumpridas aradas!
Quando os touros andam gordos, — os mancebos adelgadam.
Ao passar do Guadiana, — atirou-le ?a lançada:
A lança ficou no corpo, — e o pau caiu à água.
– Espera aí, ó Mourilho, — que te quero dá-la paga!
– Come esperarei eu, meu senhor, — se meu sangue vai pela água?
               


          
0045:20 El moro que reta a Valencia (á-a)            (ficha nº: 3685)
             
Versión de Nuez (ay. Aliste, ant. Aliste, p.j. Zamora, ant. Alcañices, ZamoraEspaña).  Recitada por Rosa Fernández. Recogida por Diego Catalán y Álvaro Galmés, 00/01/1948(Archivo: AMP; Colec.: María Goyri-Ramón Menéndez Pidal). Publicada en Catalán Siete siglos, 1969, pp. 136-137. Reeditada en Petersen Web-2006, Texto. (ms. original, p. 2).  078 hemist.  Música no registrada.

   
    
Paseándose anda el morito    por las sendas de Granada;
  2  
mirándose anda a Valencia,    que estaba muy bien cercada:
    
--¡Oh Valencia, oh Valencia,    así tú fueres quemada,
  4  
primero fuiste de moros    que de cristianos cercada!
    
Tres hijas tiene el rey,    todas tres mis cautivadas:
  6  
una me ha de hacer la lumbre    y otra me ha de hacer la cama,
    
otra, antes de medianoche,    ha de ser mi enamorada
  8  
y su madre la Babilionia    m` ha llevar `l caballo al agua.--
    
Oyéndolo estaba el buen rey    de altas salas donde estaba,
  10  
llamó a su hija más chiquita,    a la que llaman Mariana:
    
--Aprisa, ponte el vestido,    aprisa el zapato calza
  12  
y súbete a ese balcón    a esa ventana más alta;
    
a ese moro que ahí viene    entreténmelo en palabras,
  14  
las palabras eran pocas,    de amores sean tocadas.
    
--¿Yo qué le he d`ecir, mi padre,    yo de amores no sé nada?
  16  
--Tú dile lo que quisieres,    de amores seán tocadas.--
    
--Vaya con Dios, el morito,    el que vas por la calzada,
  18  
siete años va para ocho    que por ti no me peinaba.
    
--Otros tantos, la señora,    que por ti no corto barba.
  20  
Tírate de ese balcón,    de esa ventana más alta,
    
que yo te recogería    en alas de la mi capa.
  22  
Toma esta manzana de oro,    el pinzón de fina plata.
    
--¡Que mucha fineza es esa    pa quien no merece nada!
  24  
De esas manzanas, el moro,    mi padre tenía un arca.
    
Vete con Dios, el morito,    no digas que te soy falsa,
  26  
que en las cuadras del mi padre    un caballo se ensillaba,
    
no sé si es para ir a moros,    no sé si es para ir a caza.
  28  
--No tengo miedo a tu padre,    ni a todos los de la cuadra,
    
sino es a un potrezuelo,    hijo de esta yegua baya,
  30  
que a mí me lo habían hurtado    en las sendas de Granada.
    
--Ese caballo el morito,    mi padre le da cebada
  32  
y cada vez que le da pienso    le comía media carga.--
    
Al estar n`estas razones,    el su padre que asomaba.
  34  
Donde pon la yegua el pie,    pone el caballo la pata.
    
--¡Oh malhaya, el potrezuelo,    que a la yegua no la alcanza!
  36  
--Yo no la quiero alcanzar    porque es la mi madre Baya.--
    
Al pasar un arroyuelo,    al llegar a una esplanada,
  38  
le tira lanza    y se la deja clavada.
    
--Atrás, atrás, el morito,    que me llevas una alhaja.
           
Variante: -22b: rica plata.
Nota: Véase fotocopia del ms. original.. La nuera de Rosa Fernández, Rosa Fernández Fernández, ha sido entrevistada y grabada varias veces por miembros del SMP (más recientemente en el verano de 2001) También figura este romance entre su repertorio.
             

          Fonte desta versão-ocorrência de nuestros hermanos: Pan-Hispanic Ballad Project,University of Washington.
          O Romanceiro deve ser considerado como um só ("pan-hispânico"), conforme se designa no Catálogo General.
         Consulte online o Romanceiro Pan-Hispânico:
            
               
              

            Os romances de contexto histórico peninsular, onde ainda é evidente a componente épica, correspondem a romances derivados de cantares de gesta primitivos ou de suas prosificações (Penitência do Rei Rodrigo; Queixas de D. Urraca; O Cid e o Conde Lázaro; Cid e o Mouro Búcare a romances noticiosos (Morte do Príncipe D. Afonso de Portugal; Morte do Príncipe D. João).
         
   Os romances podem ser também representantes das baladas europeias: são os chamados novelescos. Nestes, os temas e os motivos são múltiplos e preponderam as componentes lírica, sentimental e dramática – não já a épica que ainda subsiste nos romances carolíngios e de contexto histórico-peninsular. Não são manifestamente históricos, mas, sendo lendários, em princípio, poderão assentar em factos reais.
         
            A divulgação do Romanceiro Sagrado faz-se, sobretudo, a partir do século XVI, em que se observa uma preocupação apologética e catequética influenciada pelo Concílio de Trento. Osciclos «de Natal» e «da paixão de Cristo» têm como fontes quer os evangelhos canónicos quer os apócrifos. É de notar que os romances profanos «a lo divino» tornam-se importantes na difusão de alguns temas. Para além dos romances dedicados à virgem Maria, existem ainda aqueles que compõem os ciclos de santos e de milagres, relacionando-se, por isso, com aslendas hagiográficas. A maioria dos romances religiosos torna-se em orações, o que não é de admirar, pois são de teor altamente edificante e moralista.
         
            Para além destas categorias temáticas de romances até agora enunciadas, existem outros que não cabem em nenhumas delas e que, no entanto, são muito importantes no contexto nacional, como é o caso da Nau Catrineta. Crê-se que é o romance tradicional mais conhecido pelos portugueses, talvez por ser de matéria épico-maravilhosa que, de alguma forma, se coaduna com a relação mitificada que o povo português tem com o seu passado de expansão ultramarina.
         


            
Nau Catrineta
tríptico de Almada Negreiros, na gare marítima de Alcântara, Lisboa.

                  



               
NAU CATRINETA
           
Lá vem a nau Catrineta     que dá muito que contar:
passava um ano e um dia     sobre las ondas do mar.
Já nã tinham que comer,      já não tinham que manjar:
deitam sola de molho      p’a o outro dia o jantar.
A sola era tão rija     que não a puderam travar.
Logo deitaram as sortes     para ver que haveram de matar,
logo foi cair a sorte     no capitão-maioral.
– Assobe, assobe, marinheiro,      àquele mastro real;
vê se vês terras d’Espanha     e areias de Portugal.
– Não vejo terras d’Espanha,      nem areias de Portugal;
só vejo três meninas     dobaixo dum laranjal:
?a assentada a coser     e outra na roca a fiar,
e a mais formosa de todas     está no meio a chorar.
– Todas três são minhas filhas,      quem me dera as abraçar,
e a mais fermosa de todas     contigo há-de casar.
– Eu não quero as tuas filhas,      que te custou a criar.
– Dou-te o meu cavalo branco,      que lá não há outro igual.
– Eu não quero esse cavalo,      que te custou a ensinar.
– Dou-te a nau Catrineta     para com ela navegare.
– Não quero a nau Catrineta     que te custou a ganhare;
só quero a tua alma     para comigo lovare.
– Arrenega-te de Deus, diabo,      que me andas àtentare;
a minha alma é para Deus,      e o corpo eu deito p’ra’o mare.
No outro dia a seguir     estava a nau Catrineta em terra a varare.
               
Recitado por Domingos Abreu, de 76 anos de idade (natural da Ponta do Sol, Madeira), no dia 12 de Setembro de 1971, em Hayward (EUA – Califórnia) (in Costa Fontes 983 a: v. 9)


                        
Nau Catrineta 
           Gravura da Nau Catrineta.
                   
                    


CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO
               
Perante a dificuldade e a complexidade na classificação dos romances tradicionais,Michelle Débax (Romancero, Madrid, 1982, pp. 5-8) aponta os critérios através do determinante que acompanha a referência a um romance, a saber:
         
  • história (romance velho, romance novo, primitivo);
  • geografia (romance catalão, da região X);
  • autor (romance trovadoresco, jogralesco);
  •  transmissor (de cego, de tradição oral, de cordel);
  • função (noticioso, segada);
  • a matéria ou assunto:
            - segundo a origem do tema: épico-nacional, carolíngio, fronteiriço;
- segundo o conteúdo: odisseico, de amor fiel, de incesto;
- ou segundo os protagonistas: do Cid, de Beltrão, de Gerinaldo;
  • estilo (épico, épico-lírico, erudito, vulgar).
         

            
 COLECTORES E AMANTES DO ROMANCEIRO
           
            Não devo terminar este texto sem antes referir a importância de escritores do séc. XIX, como Almeida Garrett (Romanceiro1843-1851) e Teófilo Braga (Romanceiro Geral Português1906-1909), que redescobriram e valorizaram o Romanceiro que corria pela boca do povo. Foi, no entanto, o conceituado filólogo José Leite de Vasconcellos quem sistematizou o estudo do Romanceiro em moldes idênticos aos actuais. Pouco a pouco foi coligindo o corpuspostumamente editado por Manuel Viegas Guerreiro, Maria Aliete Galhoz e Lindley Cintra, entre outros, e que deve ser considerado como a mais importante colecção de romances tradicionais publicada até hoje.
         
Muito embora as colecções de romances incluam produções recolhidas nos Açores,chamo também a atenção para Romanceiro Popular Açoriano da responsabilidade de Armando Cortes-Rodrigues.
                    

         
                    
Romanceiro, Almeida Garrett
               
                    

Na mochila de soldado levou para os Açores o manuscrito do Romanceiro, que sempre com ele tem andado. Em Angra encontrou uma mulata brasileira, mucama de sua irmã e émula de Rosa de Lima. Essa e outras criadas velhas da família aumentam a sua colecção de «romances» e reacordam na sua memória o paraíso perdido que é a idade infantil. Homem feito, Garrett procura, como em criança, os carinhos da mãe. […] Para a distrair, Garrett deixar-lhe-á o Romanceiro ao embarcar para São Miguel. E a esse facto deverá a salvação do livro que, por ser do povo, não é menos seu. Aquela que o amparou na meninice, guardando nas mãos carinhosas a sua obra, protege-a contra o Destino. (in O Romance de Garrett, José Osório de Oliveira, Ed. Bertrand, 1952)
             
                     


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CARREIRO, José. “Romanceiro Português”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 01-04-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/04/romanceiro-portugues.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/04/01/romanceiro.aspx)


segunda-feira, 19 de março de 2007

O SENTIMENTO DE CULPA


VOLVESTE

Volveste
instando absolvição
para, acaso, vaza a alquimia, te encontre.
Volveste.
No entanto, nas mesas sobre as mesas
nas passagens das horas das ruas eu continuo a procurar-te
   
não há fôlego em que não possas comparecer
que te não negue
também
   
ar aura que em nada me ajusta
desordem líquida, refrigério.
   
Falemos da experiência ou da falta de tacto
e comiseração nas pequenas ambiências
moradias adiadas por um sentido obliterado dos termos
palavras vãs
cascatas, supremos gostos
validades
fulgores, risos de deuses bem dispostos
chuva, na maior das vezes, apodrecendo os sentidos
mastigação do riso por cada um dos intervalos.
   
Vem da floresta a sugestão ideada
a voz devolvida
alguma vez direi não mais!
por algum motivo descurado ou
um não sentido imotivado pensado no estômago.

  

José Maria de Aguiar Carreiro

Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.




*
                                              
   
   
ARREPENDIMENTO, UMA EMOÇÃO BÁSICA
   
As emoções provocadas face ao erro e as respectivas reacções vão desde a tristeza até à raiva, passando pela vergonha, a culpa e os remorsos. Há quem se recomponha depressa e quem se atormente o resto da vida.
   
O arrependimento é uma emoção universal que nos permite pedir desculpa e recomeçar, pois está relacionado com a generosidade e a empatia (i.e., compreensão do eu de outrem, procurando prever as suas potencialidades mediante um esforço de lucidez e participação).
   
O perdão é sempre benéfico, quer seja sincero e sentido ou não. O importante é concedê-lo. A sinceridade não é um factor muito claro nesta conduta invisível que é o perdão, uma atitude em que a vontade se sobrepõe aos sentimentos e em que é preciso proceder a uma renúncia emocional para que a razão governe a vida. Por exemplo, os ciumentos patológicos, aqueles que reagem intempestivamente a uma causa real ou inventam as suas próprias fantasias, oscilam constantemente entre a agressão e o arrependimento.
   
Contudo, também há aqueles que simplesmente não se arrependem do mal que provocam. Por exemplo, os jovens que pegaram fogo a uma sem-abrigo numa caixa Multibanco ou os que torturaram e deixaram morrer um transexual sabem perfeitamente o que fazem. O arrependimento talvez venha depois ou talvez nunca surja (P.V./I.J., Super Interessante nº108 – adaptado)
   

   

   
   
   
NÃO DIGA QUE A CULPA É MINHA!
   
Nós ocidentais, com uma tradição cultural judaico-cristã, temos os próprios pais míticos, Adão e Eva, a fazerem o jogo da culpa: o homem disse que a culpa era da mulher e esta atribuiu-a à serpente. Sobre esta cena, C. R. Snyder faz o seguinte comentário: “O primeiro acto livre da humanidade… não foi acompanhado por um sentimento de orgulho ou de realização pessoal, mas, sim, por uma desculpa” (Excuses, John Wiley & Sons, 1983, p.9).
     
      
   

Adão e Eva (1994), H. Peter Irberseder
Adão e Eva (1994), H. Peter Irberseder
   
   
   

Tony Gough, num livro que tem o interessante título Não diga que a culpa é minha. Como deixar de se culpabilizar a si e aos outrosé peremptório no que diz:
   
A culpa é, pois, o que fica depois de abdicarmos da nossa responsabilidade pessoal.
   
Segundo este psicoterapeuta, “culpar nem sempre é «ou… ou», raramente é uma questão com dois lados – o certo e o errado; culpar é mais um continuum, com diferentes níveis de culpa, que vão do «mais» ao «menos» (único culpado, principal culpado, igualmente culpado, parcialmente culpado, sem nenhuma culpa). Culpar tem a ver com graus de responsabilidade e não com uma atitude «ou tudo ou nada»”.
   
Ursula Markham (hipnoterapeuta e consultora especializada na área das relações do trabalho) descreve um tipo de pessoa-problema que acha que a culpa é de todos ou de tudo, menos dela: “O Delfim (e outros parecidos) na sua mente vê o mundo como aquele lugar perfeito que acha que devia ser e, quando esse mundo não corresponde às suas expectativas, sente-se impotente para fazer seja o que for. O único recurso que lhe resta é ir à procura de outras pessoas que considera mais capazes do que ele e chorar-lhes no ombro até que façam qualquer coisa para rectificarem a situação. Ao queixar-se, o Delfim acha que desempenhou o seu papel e que agora compete aos outros todos resolver o problema.
   
O Delfim faz a vida negra a todas as pessoas com quem está em contacto. A maior parte dessas pessoas acabam por se tornar defensivas ou passar uma quantidade descomunal de tempo a tentar animá-lo e fazê-lo esquecer a situação de partida. Mesmo quando consegue apontar um problema real, o discernimento do Delfim desaparece num pântano de lamúrias e os outros acabam por ignorá-lo.”
   


   
COMO ABANDONAR O JOGO DA CULPA?
   
Ursula Markham (no seu livro Como lidar com pessoas difíceis, Gradiva, 2006) propõe as seguintes medidas que se devem tomar frente a alguém como o Delfim:
   
·         Não concorde com ele, não lhe peça desculpa, nem lhe dê justificações (porque se o fizesse só serviria para prolongar os choros e as lamúrias).
·         Procure enquadrá-lo numa situação mental de resolução de problema.
·         Interrompa-lhe qualquer discurso negativo na primeira oportunidade.
·         Parafraseie o que ele disse (mas só as críticas, não as opiniões, que deverá ignorar).
·         Faça perguntas tendentes à resolução do problema e veja se ele propõe uma solução positiva.
   
Voltando ao livro Não diga que a culpa é minha (Difusão Cultural, 1993)Tony Gough apresenta algumas frases destinadas a aumentar o grau de consciencialização tanto do acusador irremediável como do irremediável culpado:
   
·         Recuso-me a aceitar a culpa por...
·         Tu é que fizeste essa opção, não fui eu!
·         A responsabilidade não é minha, é tua!
·         Porque tens tanta dificuldade em reconhecer que és culpado?
·         Eu não te obriguei… tu é que quiseste!
·         Assume a responsabilidade das tuas acções!
·         Fico mesmo chateado quando tentas que eu assuma a responsabilidade pelos teus erros!
·         Já reparaste que a decisão de te inscreveres naquele curso foi tua e não minha?
·         Não vou consentir que continues a fazer de mim bode expiatório!
·         Estou farto de ser tratado como o caixote de lixo da família!
·         Não aceito ser o único responsável pela tua infelicidade!
·         Porque te consideras sempre responsável por tudo o que corre mal no nosso casamento?




   
Hino de Amor, Canto da Maya (1890-1981),
 
Col. Museu Carlos Machado.
       


   
REACÇÕES SAUDÁVEIS CONTRA REACÇÕES DOENTIAS
   
Confessar as nossas próprias culpas, ou confrontá-las com as dos outros, é sempre difícil. Para dar um exemplo divertido, peguemos neste excerto da conhecida série de televisão Fawlty Towers. Basil Fawlty vê dois hóspedes abraçados e, como não sabe que são pai e filha, convence-se de que se trata de uma união ilícita. Manda-os embora, mas tem de se explicar à esposa, a indomável Sybil. Segue-se este diálogo:
   
SYBIL: O que fizeste?
BASIL: Mandei-os embora.
SYBIL: Mandaste-os embora?
BASIL: Bem, como querias que eu soubesse? Porque não me disseste nada, minha imbecil? Porque é que eles não me disseram? Não podes atirar as culpas para cima de mim.
SYBIL: Vai lá dizer-lhes que podem ficar.
BASIL: Porque não vais tu?
SYBIL: Não fui eu quem os mandou embora.
BASIL: Pois, pois, estou a ver que a culpa é toda minha, não é?
SYBIL: Vai lá dizer-lhes! Já!
BASIL: Não vou, não.
SYBIL: Vais sim.
BASIL: Não vou, não.
SYBIL: Ai isso é que vais.
BASIL: Ai isso é que vou. Pronto! Está bem… deixa comigo. Eu que te salve desta situação! É para isso que eu sirvo, não é? Resolver as trapalhadas dos outros. Por indicação da esposa, Sybil... Eu sei lá o que lhes hei-de dizer.
SYBIL: Diz-lhes que te enganaste.
BASIL: Oh, brilhante. Foi isso que fez a grandeza da Inglaterra? «Peço imensa desculpa mas enganei-me.» O que é que tens em vez de cérebro, pão de ló?» (sobe as escadas a correr, ensaiando) «Peço imensa desculpa, mas enganei-me, peço imensa desculpa, mas enganei-me...» (Para os ocupantes do quarto)... Desculpem... peço imensa desculpa mas a minha mulher enganou-se. Não sei como, mas enganou-se. Arranjou uma enorme embrulhada, como de costume, é evidente que podem ficar, já esclareci tudo, peço as maiores desculpas, mas sabem como são as mulheres, todas juntas têm só um cérebro, bem todas não, mas algumas, em particular a minha esposa, portanto façam o favor de ficar e até logo, muito obrigado... Fiquem, por favor, a minha mulher enganou-se redondamente.
(© John Cleese e Connie Booth, The Complete Fawlty Towers, Methuen, 1988, pp. 70-71)
   
Podemos acreditar que a «honestidade é a melhor política», mas perder a dignidade por termos de confessar o que fizemos, ou perder a amizade de uma pessoa por a confrontarmos com o que ela acabou de fazer, é capaz de ser tarefa muito difícil, em especial para todos os Basil Fawlty deste mundo. Afinal, podemos magoar alguém!
   


   
Mea Culpa, William Kitchens (New Orleans, Louisiana)


   
   
Não há hipótese de abandonarmos o «Jogo da Culpa» se não atribuirmos e aceitarmos a culpa verdadeira, em vez de a evitarmos.
   
Seguem-se algumas sugestões de fórmulas linguísticas que, no nosso próprio interesse, devíamos aprender. De início, podemos engasgar-nos com algumas, mas com a prática tornar-se-ão mais naturais.
   
·         Lamento. Lamento muito.
·         A culpa foi minha.
·         Peço desculpa.
·         Assumo inteiramente a responsabilidade.
·         Errei.
·         Admito que estás a dizer a verdade. Eu menti.
·         Fui eu. Eu fiz isso.
·         Tu não tens culpa nenhuma.
·         Por favor, perdoa-me.
·         Tens razão em estares zangado pelo que eu acabei de fazer.

    


CARREIRO, José. “O sentimento de culpa”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 19-03-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/03/o-sentimento-de-culpa.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/03/19/culpa.aspx)