“Uma ópera para Teresa e
Byron, por J. M. Coetzee” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 16-08-2008. Disponível em:
https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/uma-opera-para-teresa-e-byron-por.html
(2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/16/Teresa.Byron.aspx)
sábado, 16 de agosto de 2008
Uma ópera para Teresa e Byron, por J. M. Coetzee
BYRON EM ITÁLIA
Na sua primeira versão, a ópera girava em torno de Lorde Byron e da sua amante a Condessa Guiccioli. Presos na Vivenda Guiccioli, no calor sufocante do Verão de Ravenna, espiados pelo marido ciumento de Teresa, os dois vagueariam pelos salões sombrios cantando a sua malograda paixão. Teresa sente-se aprisionada; manifesta ressentimento e insiste com Byron para que a leve para outra vida. Quanto a Byron, está cheio de dúvidas, embora seja suficientemente prudente para não as expressar em voz alta. Suspeita que os arrebatamentos apaixonados que tiveram em tempos não se venham a repetir. A sua vida acalmou; obscuramente, começou a ansiar por um isolamento sossegado. E, não podendo ter isso, então a apoteose e a morte. As sublimes árias de Teresa não lhe despertam qualquer desejo; a sua própria voz, obscura, convoluta, passa por ela e não penetra, atravessa-a.
Foi assim que a concebeu: como uma peça de câmara sobre amor e morte, com uma jovem apaixonada e um homem mais velho, em tempos também ele apaixonado, mas não agora; como uma acção apoiada por música complexa e irrequieta, cantada num inglês que evoca continuamente um italiano imaginado.
Superficialmente, esta concepção não é mal pensada. As personagens são bastante equilibradas: o casal encurralado, a amante abandonada batendo nas janelas, o marido ciumento. E até a vivenda, com os macacos de estimação de Byron pendurados languidamente nos candelabros e os pavões a passearem-se de um lado para o outro por entre a pomposa mobília napolitana, ostenta a mistura certa de intemporalidade e decadência.
Contudo, primeiro na quinta de Lucy e agora aqui, não consegue entregar -se ao projecto de alma e coração. Há algo de errado na sua concepção, algo que não vem do coração. Uma mulher que se queixa aos céus por os criados estarem a espiá-la e ter de aliviar os seus desejos com o amante num armário para vassouras — que interessa isso? Consegue arranjar palavras para Byron, mas a Teresa que a história lhe legou — jovem, gananciosa, obstinada, petulante — não coincide com a música com que sonhou, música essa cujas harmonias, luxuriantemente outonais e contudo de uma ironia acutilante, consegue escutar velada na sua mente.
Tenta outra via. Abandonando as páginas de anotações que escreveu, abandonando a ousada e precoce jovem recém-casada com o seu amado Lorde inglês, tenta recriar Teresa na Idade Média. A nova Teresa é uma viúva roliça de baixa estatura que vive na Vivenda Gamba com o pai idoso, tratando da lida da casa, apertando os cordões à bolsa, sempre atenta para que os criados não roubem açúcar. Byron, nesta nova versão, há muito que faleceu; a única aspiração de Teresa à imortalidade e o conforto das noites passadas em solidão é a arca cheia de cartas e recordações que tem debaixo da cama, a que ela chama as suas reliquiae, que as suas sobrinhas abrirão após a sua morte e examinarão com reverência. Será esta a heroína de que ele tem andado à procura? Será que uma Teresa mais velha lhe absorverá o coração, encontrando-se o seu coração no estado em que se encontra neste momento?
O tempo não foi simpático para Teresa. Com o peito pesado, o tronco atarracado, as pernas curtas, parece-se mais com uma camponesa, uma contadina, do que com uma aristocrata. As feições que Byron em tempos tanto admirava, tornaram-se hécticas; no Verão tem ataques de asma que a deixam sem respirar.
Nas cartas que Byron lhe escreveu chama-lhe Minha amiga, depois Meu amor e, depois,Meu amor para sempre. Mas existem outras cartas, cartas a que ela não tem acesso e às quais não pode deitar fogo. Nessas cartas, dirigidas aos seus amigos ingleses, Byron trata-a com desrespeito, colocando-a na lista das suas conquistas italianas, troça do marido dela, alude a mulheres do seu meio com quem dormiu. Durante os anos que se seguiram à morte de Byron, os seus amigos escreveram memórias atrás de memórias com base nas suas cartas. Depois de conquistar a jovem Teresa, rezam as histórias, Byron depressa perdeu o interesse por ela; achava-a de cabeça oca; ficou com ela apenas por obrigação; foi para fugir dela que partiu para a Grécia e para a sua morte. Estas calúnias magoam-na imenso. Os anos que passou com Byron são o ponto mais alto da sua vida. O amor de Byron é tudo o que a faz sentir diferente, a faz sentir alguém. Sem ele, ela não é nada: uma mulher que já viveu a mocidade, sem planos, passando os dias numa cidade de província, trocando visitas com amigas, massajando as pernas do pai quando lhe doem, dormindo sozinha.
Conseguirá amar esta mulher feia e vulgar? Conseguirá amá-la o suficiente para compor música para ela? Se não conseguir, o que lhe resta?
Regressa ao que deve ser agora a cena de abertura. O fim de mais um dia abafado. Teresa encontra-se à janela do primeiro andar da casa do pai, olhando para lá dos pântanos e dos pinheirais da Romagna, em direcção ao sol que brilha no Adriático. Fim do prelúdio; silêncio; respira fundo. Mio Byron, canta ela, com a voz vibrante de tristeza. Um clarinete a solo responde-lhe, decresce, fica em silêncio. Mio Byron, chama outra vez, com mais força.
Onde está ele, o seu Byron? Byron está perdido, é essa a resposta. Byron vagueia por entre as sombras. E ela também está perdida, a Teresa que ele amava, a rapariga de dezanove anos com os seus caracóis loiros, que se ofereceu com tanta alegria ao irresistível cavalheiro inglês, acariciando-lhe depois a fronte, enquanto ele permanecia deitado por cima do seu peito nu, respirando profundamente, entorpecido após a grande paixão.
Mio Byron, canta pela terceira vez; e, vinda de algures, das profundezas, uma voz responde-lhe cantando, vacilante e desencarnada, a voz de um fantasma, a voz de Byron. Ondeestás? canta a voz; e, depois, uma palavra que ela não deseja escutar: secca, seca. Secou, a fonte de tudo.
Tão ténue, tão balbuciante é a voz de Byron que Teresa tem de repetir as suas palavras, ajudando-o palavra a palavra, ressuscitando-o: o seu filho, o seu menino. Estou aqui, canta, apoiando-o, salvando-o, evitando que se afunde. Sou a tua fonte. Lembras-te quando visitámos juntos a nascente de Arquà? Juntos, tu e eu. Eu era a tua Laura. Lembras-te?
Tem de ser assim, daqui para a frente: Teresa dando voz ao seu amado e ele, o homem na casa saqueada, dando voz a Teresa. O aleijado a guiar o coxo, à falta de melhor.
Aumentando ao máximo o seu ritmo de trabalho, agarrando-se com força a Teresa, tenta esboçar as primeiras páginas de um libreto. Pensa que é preciso pôr as palavras no papel. Depois de o fazer, tudo será mais fácil. Então, terá tempo para estudar os mestres — Gluck, por exemplo — tirando melodias, talvez — quem sabe? — tirando ideias também.
Mas com o passar do tempo, à medida que começa a ter os dias mais preenchidos com Teresa e com o falecido Byron, torna-se-lhe evidente que canções surripiadas não servirão, que aqueles dois exigirão uma música própria. E, surpreendentemente, aos poucos, a música aparece. Por vezes o contorno de uma frase surge-lhe antes mesmo de saber o que as próprias palavras serão; por vezes as palavras chamam a cadência; por vezes a sombra de uma melodia, depois de pairar durante dias no ouvido, revela-se-lhe inteira. À medida que a acção começa a desenrolar-se, evoca as modulações e transições de acordes que sente no sangue mesmo quando não possui os recursos musicais para as realizar.
Senta-se ao piano e começa a juntar os fragmentos do início de uma partitura. Mas há algo no som do piano que o embaraça: demasiado arredondado, demasiado físico, demasiado rico. No sótão, numa arca cheia de livros e brinquedos velhos de Lucy, encontra o pequeno banjo de sete cordas que comprou nas ruas de KwaMashu, quando ela era criança. Com a ajuda do banjo, começa a tocar a música que Teresa, ora pesarosa, ora zangada, cantará ao seu amado já falecido, a que o som mortiço da voz de Byron responderá da terra das sombras.
Quanto mais persegue a Condessa para as suas profundezas, cantando-lhe palavras e trauteando-lhe a linha melódica, mais inseparável se torna dela o ridículo plinc-plonc do banjo de brincar, o que não deixa de o surpreender. Começa a abandonar lentamente as árias luxuriantes com que tinha sonhado; é só um passo daí até colocar-lhe o instrumento nas mãos. Em vez de se pavonear pelo palco, Teresa senta-se agora a olhar para os portões do inferno por cima dos pântanos, tocando o bandolim com o qual acompanha os seus voos líricos; enquanto isto, a um lado, um trio discreto de calções pelos joelhos (violoncelo, flauta, fagote) preenchem os entreactos ou fazem parcimoniosamente comentários entre estrofes.
Sentado à escrivaninha, olhando para o jardim maltratado, maravilha-se com o que o pequeno banjo lhe está a ensinar. Seis meses atrás pensara que o seu lugar fantasmagórico emByron em Itália seria algures entre Teresa e Byron: entre o anseio de prolongar o Verão do corpo apaixonado e uma lembrança relutante do longo sono do esquecimento. Mas estava enganado. Afinal de contas, não é o erótico que o chama, nem o elegíaco, mas sim o cómico. Ele não está na ópera como Teresa, como Byron ou como uma mistura de ambos: está preso à própria música, ao som rápido, menor, minúsculo das cordas do banjo, essa voz que se esforça por se afastar do burlesco instrumento, mas que é continuamente retida, como um peixe no anzol.
Com que então, é isto a arte e é assim que funciona! Que estranho! Que fascinante!
Passa dias inteiros agarrado a Byron e a Teresa, alimentando-se apenas de café e cereais. O frigorífico está vazio, a cama por fazer; folhas esvoaçam pelo chão perto da janela partida. Não interessa, pensa: os mortos que enterrem os seus mortos.
Foi com os poetas que aprendi a amar, canta Byron no seu tom monótono e dissonante, nove sílabas na escala natural de Dó; mas a vida, descobri (descendo cromaticamente para o Fá), é outra história. Plinc-plonc-plunc fazem as cordas do banjo. Oh, diz-me, porque falas assim?canta Teresa num longo arco exprobratório. Plunc-plinc-plonc fazem as cordas.
Teresa quer ser amada, quer ser amada para todo o sempre; quer fazer companhia às Lauras e às Floras de outrora. E Byron? Byron será fiel até à morte, mas é tudo o que promete.Ficaremos juntos até a morte levar um de nós.
Meu amor, canta Teresa, avolumando o dissílabo já de si opulento que aprendeu na cama do poeta. Plinc, ecoam as cordas. Uma mulher apaixonada, espojando-se no amor; um gato no telhado, miando; complexas proteínas redemoinhando no sangue, distendendo os órgãos sexuais, fazendo transpirar as palmas das mãos, e a voz, espessa como a alma, bradar com veemência as suas ânsias aos céus. […] Teresa na casa de seu pai em Ravenna, para seu infortúnio, não tem ninguém que lhe sugue o veneno. Vem até mim, mio Byron, grita; vem até mim e ama-me!E Byron, sem vida, lívido como um fantasma, responde escarninho: Vai-te, vai-te, vai-te!
Há anos atrás, quando vivia em Itália, visitou a mesma floresta entre Ravenna e a costa do Adriático onde um século e meio antes Byron e Teresa costumavam andar a cavalo. Algures por entre aquelas árvores deve encontrar-se o local onde o cavalheiro inglês levantou pela primeira vez as saias da rapariga de dezoito anos, noiva de outro homem, que o enfeitiçou. Podia ir de avião até Veneza no dia seguinte, apanhar o comboio para Ravenna, vaguear pelos velhos caminhos, passar por esse mesmo local. Está a inventar a música (ou a música a inventá-lo a ele), mas não está a inventar a história. Debaixo daqueles pinheiros Byron possuiu a sua Teresa — «tímida como uma gazela», chamou-lhe ele — amarrotando-lhe a roupa, enchendo-lhe a roupa interior de areia (os cavalos ao lado deles, desinteressados) e nesse momento nasceu uma paixão que fez Teresa bradar aos céus para o resto da sua vida natural numa febre que também o fez bradar.
Teresa guia-o; página após página, ele segue-a. Depois, certo dia, outra voz emerge das trevas, uma voz que ele nunca ouvira antes e que não esperava escutar. Pelas palavras, sabe que essa voz pertence à filha de Byron, Allegra; mas, de dentro dele, de onde vem essa voz?Por que me abandonaste? Vem buscar-me! pede Allegra. Que calor, que calor, que calor!queixa-se, num ritmo próprio que corta insistentemente as vozes dos amantes.
Não há qualquer resposta ao chamamento da inconveniente criança de cinco anos. Desengraçada, mal-amada, negligenciada pelo seu famoso pai, anda de mão em mão até que as freiras tomam conta dela. Que calor, que calor! geme deitada na cama do convento onde está a morrer de malária. Por que te esqueceste de mim!
Por que não lhe responderá o pai? Porque já teve vida que chegue; porque preferia estar onde merece, na outra margem da morte, afundado no seu velho sono. Minha pobre filhinha!Canta Byron, hesitante, relutante, baixo demais para ela conseguir ouvi-lo. Sentados nas sombras, a um lado, o trio de instrumentistas toca uma canção de embalar — uma linha ascendente; a outra descendente, a de Byron.
[…]
Com a camisa de noite vestida, Teresa está à janela do quarto. Tem os olhos fechados. É a hora mais escura da noite: respira pesadamente, acompanhando o sussurrar do vento, o coaxar das rãs.
— Che vuol dir — canta, num tom de voz pouco mais que um suspiro — Che vuol dire questa solitudine immensa? Ed io — canta — che sono?
Silêncio. A solítudíne immensa não lhe responde. Até os elementos do trio, ao canto, permanecem silenciosos como arganazes.
— Vem! — diz ela num sussurro — Vem ter comigo, suplico-te, meu Byron! —Abre os braços, abraçando a escuridão, abraçando o que ela lhe vai trazer.
Quer que ele venha com o vento, que a envolva, que esconda o rosto na clivagem dos seus seios. Ou, em alternativa, que ele chegue com a madrugada, que surja no horizonte como um deus-sol arremessando sobre ela o seu calor intenso. Quer tê-lo de volta sob qualquer forma.
Sentado à mesa no pátio dos cães, ele escuta a triste e arrebatadora curvatura do pedido de Teresa ao confrontar a escuridão. É uma altura má do mês para Teresa, está desgostosa, não pregou olho, está desvairada de ansiedade. Quer que a salvem — da dor, do calor do Verão, da Villa Gamba, do mau feitio do pai, de tudo.
Pega no bandolim que estava pousado numa cadeira. Embalando-o como a uma criança, volta para a janela. Plinc-plonc faz o bandolim nos seus braços, suavemente, para não acordar o pai. Plinc-plonc estrila o banjo no pátio desolado, em África.
Apenas algo para passar o tempo, disse ele a Rosalind. Uma mentira. A ópera não é um passatempo, deixou de o ser. Ocupa-o noite e dia. Contudo, apesar dos bons momentos, a verdade é que Byron em Itália não está a andar para a frente. Não tem acção, desenvolvimento, não passa de uma cantilena longa e vacilante proferida por Teresa para a atmosfera vazia, entrecortada de quando em vez pelos gemidos e suspiros de Byron em off. O marido e a amante rival foram esquecidos, como se não existissem. O seu impulso lírico não pode ter morrido, mas após décadas de míngua pode ter saído da sua caverna angustiado, enfezado, deformado. Ele não possui os recursos musicais nem as reservas de energia para conseguir tirar Byron em Itáliada monotonia em que caiu desde o início. Tornou-se o género de trabalho que um sonâmbulo poderia escrever.
J. M. Coetzee, Disgrace (1999)
(Desgraça, tradução de José Remelhe, revisão de Ana Maria Chaves para Publicações Dom Quixote, 2000)
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
«Lara» de Lord Byron (Canto I, estância XVIII lida por J.M.Coetzee)
XVIII.
There was in him a vital scorn of all:
As if the worst had fall'n which could befall, He stood a stranger in this breathing world, An erring spirit from another hurled; A thing of dark imaginings, that shaped By choice the perils he by chance escaped; But 'scaped in vain, for in their memory yet His mind would half exult and half regret: With more capacity for love than earth Bestows on most of mortal mould and birth, His early dreams of good outstripp'd the truth, And troubled manhood followed baffled youth; With thought of years in phantom chase misspent, And wasted powers for better purpose lent; And fiery passions that had poured their wrath In hurried desolation o'er his path, And left the better feelings all at strife In wild reflection o'er his stormy life; But haughty still and loath himself to blame, He called on Nature's self to share the shame, And charged all faults upon the fleshly form She gave to clog the soul, and feast the worm; Till he at last confounded good and ill, And half mistook for fate the acts of will: Too high for common selfishness, he could At times resign his own for others' good, But not in pity, not because he ought, But in some strange perversity of thought, That swayed him onward with a secret pride To do what few or none would do beside; And this same impulse would in tempting time Mislead his spirit equally to crime; So much he soared beyond, or sunk beneath, The men with whom he felt condemned to breathe, And longed by good or ill to separate Himself from all who shared his mortal state; His mind abhorring this had fixed her throne Far from the world, in regions of her own; Thus coldly passing all that passed below, His blood in temperate seeming now would flow: Ah! happier if it ne'er with guilt had glowed, But ever in that icy smoothness flowed! 'Tis true, with other men their path he walked, And like the rest in seeming did and talked, Nor outraged Reason's rules by flaw nor start, His madness was not of the head, but heart; And rarely wandered in his speech, or drew His thoughts so forth as to offend the view.
As if the worst had fall'n which could befall, He stood a stranger in this breathing world, An erring spirit from another hurled; A thing of dark imaginings, that shaped By choice the perils he by chance escaped; But 'scaped in vain, for in their memory yet His mind would half exult and half regret: With more capacity for love than earth Bestows on most of mortal mould and birth, His early dreams of good outstripp'd the truth, And troubled manhood followed baffled youth; With thought of years in phantom chase misspent, And wasted powers for better purpose lent; And fiery passions that had poured their wrath In hurried desolation o'er his path, And left the better feelings all at strife In wild reflection o'er his stormy life; But haughty still and loath himself to blame, He called on Nature's self to share the shame, And charged all faults upon the fleshly form She gave to clog the soul, and feast the worm; Till he at last confounded good and ill, And half mistook for fate the acts of will: Too high for common selfishness, he could At times resign his own for others' good, But not in pity, not because he ought, But in some strange perversity of thought, That swayed him onward with a secret pride To do what few or none would do beside; And this same impulse would in tempting time Mislead his spirit equally to crime; So much he soared beyond, or sunk beneath, The men with whom he felt condemned to breathe, And longed by good or ill to separate Himself from all who shared his mortal state; His mind abhorring this had fixed her throne Far from the world, in regions of her own; Thus coldly passing all that passed below, His blood in temperate seeming now would flow: Ah! happier if it ne'er with guilt had glowed, But ever in that icy smoothness flowed! 'Tis true, with other men their path he walked, And like the rest in seeming did and talked, Nor outraged Reason's rules by flaw nor start, His madness was not of the head, but heart; And rarely wandered in his speech, or drew His thoughts so forth as to offend the view.
Byron (Inglaterra, 1788-1824)
Lara (1814), Canto I, Estância XVIII
— Prosseguimos com Byron — diz ele, mergulhando nas suas anotações. — Como vimos na semana passada, a celebridade e o escândalo afectaram não apenas a vida de Byron mas também a forma como os seus poemas foram recebidos pelo público. Byron viu-se fundido com as suas próprias criações poéticas — com Harold, com Manfred, até mesmo com Don Juan. […]
Mandara-os ler «Lara». As suas anotações são sobre «Lara». Não há forma de poder escapar ao poema. Lê em voz alta:
Era um estranho neste mundo respirado,
Espírito errante de um outro mundo tombado;
Uma coisa de obscuros intentos, que moldou
Pela escolha os perigos a que por sorte escapou.
— Qual de vocês vai dissecar estas linhas? — Quem é este «espírito errante»? Por que razão se autodenomina ele «uma coisa»? De que mundo vem ele?
Há já muito tempo que deixara de se surpreender com a ignorância dos seus alunos. Pós-cristãos, pós-história, pós-alfabetizados, até parecia que tinham nascido ontem. Por isso, não espera que saibam algo acerca de anjos caídos ou de onde Byron possa ter lido a seu respeito. O que ele espera é uma série de tentativas bem intencionadas, as quais, com alguma sorte, ele poderá levar ao bom caminho. Mas hoje apenas há silêncio, um silêncio tenaz que se baseia obviamente na figura do desconhecido que se encontra entre eles. Não falarão, não entrarão no seu jogo enquanto um desconhecido ali estiver a escuta a fazer julgamentos, a gozar.
— Lúcifer — diz ele. — O anjo caído do paraíso. Pouco sabemos acerca da forma como os anjos vivem, mas podemos partir do princípio de que não necessitam de oxigénio. Na sua terra, Lúcifer, o anjo negro, não tem necessidade de respirar. De repente, dá por si atirado para este mundo desconhecido «onde se respira». «Errante»: um ser que escolhe o seu próprio destino, que vive perigosamente, chegando mesmo a criar o perigo. Vamos ler mais um pouco.
O rapaz não olhou para o livro uma única vez. Em vez disso, com um pequeno sorriso nos lábios, um sorriso onde existe, possivelmente, um laivo de perplexidade, absorve as suas palavras.
Podia
renunciar ao seu pelo bem que aos outros faria,
Mas não por pena, por dever ou sentimento,
Mas sim por uma estranha perversidade de pensamento,
Que o impelia para a frente com um orgulho velado,
A fazer o que poucos ou nenhuns teriam gizado;
E este mesmo impulso iria, pela tentação,
Conduzir ao crime a sua mente e o seu coração.
— Portanto, que tipo de criatura é este Lúcifer?
Neste momento, de certeza que os alunos sentem a corrente a passar entre os dois — ele e o rapaz. A pergunta foi dirigida apenas ao rapaz; e, como quem acorda de repente, o rapaz responde. — Ele faz o que lhe apetece. Não lhe importa se é bom ou mau. Limita-se a fazê-lo.
— Exactamente. Bom ou mau, ele limita-se a fazê-lo. Ele não actua por princípios, mas sim por impulsos, e a fonte dos seus impulsos é-lhe desconhecida. Vamos ler mais umas linhas: — «A sua loucura não se encontra na cabeça, mas no coração». Um coração louco. O que é um coração louco?
Está a perguntar de mais. O rapaz gostaria de levar a sua intuição mais longe, compreende-o. Quer mostrar que não percebe apenas de motas e roupas vistosas. E se calhar até é verdade. Talvez saiba mesmo o que é ter um coração louco. Mas aqui, nesta sala de aula, na presença destes desconhecidos, as palavras não saem. Abana a cabeça.
— Não interessa. Reparem que não nos é pedido que condenemos este ser de coração louco, este ser com o qual há continuamente algo de errado. Pelo contrário, somos convidados a compreendê-lo e a simpatizar com ele. Mas existe um limite para a simpatia. Embora viva entre nós, não é um de nós. Ele é exactamente aquilo que se auto-denomina: uma coisa, ou seja, um monstro. Por fim, Byron sugere que não será possível amá-lo, pelo menos no sentido mais profundo, no sentido mais humano da palavra. Ele será condenado à solidão.
As cabeças baixam-se, escrevinhando as suas palavras. Byron, Lúcifer, Caim, para eles é tudo o mesmo.
J. M. Coetzee, Disgrace (1999)
(Desgraça, tradução de José Remelhe, revisão de Ana Maria Chaves para Publicações Dom Quixote, 2000)
“«Lara» de Lord Byron (Canto I, estância XVIII lida por J.M.Coetzee)”
in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 11-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/lara-de-lord-byron-canto-i-estancia.html
(2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/11/Lara.Byron.aspx)
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
William Wordsworth lido por J. M. Coetzee
[…] That very day,
From a bare ridge we also first beheld
Unveiled the summit of Mont Blanc, and grieved
To have a soulless image on the eye
That had usurped upon a living thought
That never more could be. […]
William Wordsworth (Inglaterra, 1770-1850)
The Prelude: Or, Growth of a Poet's Mind. (1805, 1850)
“Book Sixth Cambridge and the Alps”, vv. 525-530
“Book Sixth Cambridge and the Alps”, vv. 525-530
[…] Ainda estão a dar Wordsworth, vão no Livro 6 de O Prelúdio, o poeta nos Alpes.
— «De um cume despido» — lê em voz alta,
vimos pela primeira vez também
Despido, o cume do Monte Branco, e sofremos
Ao guardar uma imagem sem alma nos olhos
Que tinha usurpado um pensamento vivo
Que nunca mais poderia existir.
— Portanto. A majestosa montanha branca, o Monte Branco, revela-se uma desilusão. Porquê? Comecemos pela pouco habitual forma verbal usurpar. Alguém foi ver ao dicionário?
Silêncio.
— Se tivessem ido, teriam verificado que usurpar significa forçar a entrada, invadir. Mas também extorquir, roubar. A palavra é, portanto, polissémica, adquirindo diversos significados em função do contexto em que está inserida.
As nuvens dissiparam-se, diz Wordsworth, o pico foi revelado e sofremos ao avistá-lo. Uma réplica estranha, para um viajante dos Alpes. Porquê o sofrimento? Porque, diz ele, uma imagem sem alma, uma mera imagem na retina, usurpou o que, até então, fora um pensamento vivo. E o que era esse pensamento vivo?
[…]
— A mesma palavra usurpar surge novamente umas linhas mais abaixo. A usurpação é um dos temas mais profundos da sequência dos Alpes. Os grandes arquétipos da mente, as ideias puras, são usurpadas por meras imagens sensitivas.
Contudo, não podemos viver o dia-a-dia no domínio das ideias puras, arredados da experiência dos sentidos. A questão não é «Como poderemos manter a imaginação pura, protegida das arremetidas da realidade?» A questão tem de ser «Será possível coexistirem as duas coisas?»
Vejam o verso 599. Wordsworth escreve sobre os limites da percepção sensitiva. Trata-se de um tema que já focámos. A medida que os órgãos dos sentidos atingem o limite das suas capacidades, a sua luz começa a extinguir-se. Contudo, no momento dessa extinção, a luz tem uma última arremetida como a chama de uma vela, dando-nos um vislumbre do invisível. Este trecho é difícil; talvez contradiga até o momento do Monte Branco. Não obstante, Wordsworth parece encaminhar-se para um certo equilíbrio: não a ideia pura, em nuvem espiralada, nem a imagem visual marcada na retina, açambarcadora e desiludindo-nos com a sua clareza prosaica, mas a imagem sensitiva, mantida fugidia o mais possível, como forma de estimular ou activar a ideia que se encontra mais profundamente enterrada no pântano da memória.
Faz uma pausa. Incompreensão. Foi longe de mais, depressa de mais. Como conseguir captar-lhes a atenção? Como conseguir captar a atenção dela?
— É como se estivessem apaixonados — diz. — Se fossem cegos, dificilmente se teriam apaixonado. Mas agora, desejam mesmo ver a amada na claridade fria do mecanismo visual? Talvez seja do vosso interesse colocar um véu sobre o olhar, para manter vivo o seu arquétipo, a sua forma divina.
Isto não é Wordsworth, mas pelo menos acorda-os.
Arquétipos? pensam eles. Formas divinas? Sobre o que está ele a falar? O que sabe este velho acerca do amor?
Uma recordação ensombra-o: aquele momento no chão quando ele lhe ergueu a camisola e expôs os pequenos seios, puros e perfeitos. Ela ergue os olhos pela primeira vez; os seus olhares cruzam-se e, de repente, ela compreende tudo. Confusa, baixa o olhar.
— Wordsworth está a escrever sobre os Alpes — diz. — Neste país não existem Alpes, mas temos o Drakensberg ou, numa escala mais pequena, a Table Mountain, que escalamos ressuscitando os poetas, esperando um desses momentos revelatórios wordsworthianos de que todos ouvimos falar. — Agora está só a falar, a disfarçar. — Mas momentos como esses não ocorrerão se o olho não estiver meio virado para os grandes arquétipos da imaginação que carregamos connosco. […]
J. M. Coetzee, Disgrace (1999)
(Desgraça, tradução de José Remelhe, revisão de Ana Maria Chaves para as Publicações Dom Quixote, 2000)
CARREIRO, José. “William
Wordsworth lido por J. M. Coetzee”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias
e o sentimento de si,
08-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/william-wordsworth-lido-por-j-m-coetzee.html
(2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/08/Wordsworth.aspx)
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