quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O PORTUGAL FUTURO (Ruy Belo)


         RUY BELO
             
              
O PORTUGAL FUTURO

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
                 
Ruy Belo (1933-1978), Homem de Palavra(s), 1970
                 
                 
AUDIÇÃO DO POEMA
Pode escutar o poema «O portugal futuro», de Ruy Belo, nas seguintes versões:




               
INTERPRETAÇÃO DO TEXTO
               
Escrito em 1970, este é um poema que expressa a esperança.
1. O que é possível no "portugal futuro"? Repara no valor simbólico dos elementos "pássaro" e "criança".
1.1 E as crianças fazem um desenho. Que forma tem? O que representa?
1.2 E o asfalto negro sobre o qual desenham que representará?
2. O "portugal futuro" terá a mesma dimensão e as mesmas fronteiras que "este". O que será diferente, então?
3. Nesse país futuro, o sujeito poético gostaria de ouvir as badaladas do relógio da igreja, mas um receio assalta-o. Que receia ele?
4. Mostra como a musicalidade deste poema se constrói através de uma rima muito livre e de outros jogos de sons como a aliteração e outras repetições.
             
(In Plural – Português 10º ano / Ensino Secundário, Elsa Pinto, Paula Fonseca, Vera Baptista, Lisboa Editora, 2007, p. 243.)
                
                  
TEXTOS DE APOIO
I
O título do segundo poema de Ruy Belo – “O portugal futuro” - remete, desde logo, para o facto de a imagem de Portugal que vai ser apresentada não corresponder ao país real, mas ao que ele poderá vir a ser. Decorrente desse facto é possível constatar que as características apresentadas não existem no país da época.
Ao longo do poema é notória a referência a elementos constitutivos do imaginário coletivo português que permitiram ao Estado impor uma identidade e silenciar as vozes discordantes, mantendo a população incapacitada do uso da fala. Tal estratégia pode ser encarada como um recurso usado pelo aparelho de Estado de forma a manter o seu poder.
Para acentuar esse carácter de abstração, de possibilidade que urge edificar, o substantivo “portugal” nunca aparece maiusculado, retirando-se-lhe, assim, as suas propriedades específicas. A própria construção do poema é feita a partir da alternância entre o presente do indicativo (muito embora com carácter de probabilidade) e o futuro do indicativo e, com exceção do ponto final a encerrar o poema, não há sinais de pontuação; eis a razão pela qual a única estrofe existente corresponde a um cumular gradual de todos os versos balizados pela repetição do próprio título no início do primeiro verso e no fim do último verso, criando uma circularidade.
Neste país futuro, o “puro pássaro”, metáfora da liberdade, será possível; essa metáfora é, de imediato, associada à simbologia do vocábulo “crianças” (a ausência de limites, o inconformismo e insubmissão). É delas que depende “a forma do [seu] país” já que elas “desenharão a giz” esse formato sobre “o leito negro do asfalto”. Será, nesse espaço a edificar, que o sujeito poético encontrará o seu “portugal” e “lá [será] feliz”. Ele poderá ter características do Portugal seu contemporâneo, ao nível geográfico – “Poderá ser pequeno como este/ter a oeste o mar e a espanha a leste” -, mas “tudo nele será novo”: esse país a haver distinguir-se-á do Portugal presente ao nível do sistema político, das relações interpessoais e, principalmente, por nele poder existir a liberdade. Ao contrário do que sucede no presente, nesse país futuro, o sujeito poético antevê os novos comportamentos desses futuros cidadãos e construtores do país: as crianças. Elas poderão não só desenhar, como dançar “na avenida que houver à beira-mar” e também o “pode o tempo mudar será verão”. A selecção desta estação do ano, representativa da época das colheitas, do estado adulto, do amadurecimento, tem como condicionante um pressuposto positivo1: será no Verão que as “profundas crianças” assumirão todas as suas potencialidades e poderão contribuir para edificar ativamente esse Portugal que corresponda às expectativas do sujeito poético. 
Apesar dessa consciência de que o país presente não corresponde ao país idealizado, o sujeito poético deteta alguns elementos positivos, como é o caso do “ouvir as horas do relógio da matriz”. No entanto, se o relógio/sino delimita os momentos do dia, organiza o quotidiano dos seres humanos e, dessa perspetiva, seria algo positivo; assim o relógio/sino está intimamente associado aos ditames do estado opressor que o usava para controlar as pessoas. Por isso mesmo, apesar de gostar da sua sonoridade, o sujeito poético constata que ele é também um símbolo do “passado” e que não seria viável construir um país novo sobre marcas de um passado tão presente e doloroso. Decorrente desse facto, o que urge fazer é “edificar” esse Portugal rasurando completamente o passado, esquecendo o que nele havia de negativo e positivo. Desta perspetiva, o autor opõe-se às teorias providencialistas portuguesas que consideravam que só se podia construir o futuro de Portugal resgatando o seu passado.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 85-87.
                 
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(1) Esta perspetiva positiva do Verão surge em contraste com a que Jorge de Sena irá utilizar no poemaL’Été au Portugal”; nele o Verão é a antecipação da morte, o símbolo do conformismo.
                 
              
II
Na obra Homem de Palavra(s) de Ruy Belo, o próprio poeta menciona qual a função da poesia desta época que foi denominada de poesia de intervenção: “Em [seu]entender, a poesia de intervenção tem de partir de um grande sentido de justiça ou de revolta que o poeta fez seus, como o amor num poema de amor, e tem de ser discreta se não quer ser demagógica. Era assim quando havia censura (ou o eufemístico ‘exame prévio’) (…)” (Cf. BELO, Ruy - Homem de Palavra(s) (1970) in Todos Os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pág. 184). Com a palavra poética procura-se uma forma de intervir no real que, discreta ou simbolicamente, revele as fraquezas do presente para que elas sejam colmatadas pacificamente. Esta forma de tecer as palavras e as imagens poéticas é evidente nos dois poemas de Ruy Belo por nós selecionados: “Portugal Sacro-Profano” e “O Portugal Futuro”. Em ambos surge a não aceitação da representação de Portugal imposta pelo regime e o segundo funciona como uma espécie de projeto de Portugal que se assume como um início de busca de uma outra identidade ou, pelo menos, da parte dela que foi rasurada da imagem oficial. Desta perspetiva, o poeta procura encontrar a entidade Portugal não desvirtuada e não mutilada através da escrita […].
Nestes dois poemas de Ruy Belo torna-se evidente a consciência que o poeta tem da sua pátria e dos valores, das situações que necessitavam ser alteradas bem como das vivências que, hipoteticamente, poderiam ser reutilizadas no futuro. Por comparação com o país real, constata-se que nele nada do que o poeta deseja e antevê existe, há apenas fragmentos de esperança. No primeiro poema, o comboio e o seu circuito contínuo na ânsia de reintegrar as pessoas noutras comunidades; no segundo, as crianças que, como no poema de Mário Cesariny, aguardam o momento de agir, de preencher os espaços em branco. Porém, Ruy Belo apreende que esse tempo de atuação não corresponde ao presente, mas a um futuro longínquo que está, acima de tudo, dependente do poder volitivo dessas crianças.
                 
Paula Fernanda da Silva Morais, op. cit., p. 83 e p. 88.
                 
                 
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           
► Leitura do poema “Portugal sacro-profano”, de Ruy Belo.


 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/21/o.portugal.futuro.aspx]

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