Poemas para Adriano é o conjunto de nove poemas de Manuel Fonseca escritos especialmente para o álbum Que nunca mais, lançado pelo músico português Adriano Correia de Oliveira, em 1975. Com esse álbum, o músico foi eleito o Artista do Ano, pela revista inglesa Music Week.
SAIBAM TODOS EM MONTEMAIOR
Tu que vens agora de Montemaior
que de Montemaior és agora chegado
diz-me se trazes recado
do meu amor
de quem fui separado
lá em Montemaior.
Não temas os ferros deste gradeado
nem as espadas ruins que há em meu redor
tu de Montemaior agora chegado
nesta hora chegado de Montemaior
conta-me o recado
que tens por mandado
do meu amor
de quem fui apartado
lá em Montemaior.
Que inda mais me ama quem me tem amado?
Que inda agora luta pelo que eu lutava?
Se é esse o recado
que trazes mandado
pelo meu amor
outro eu não esperava
de Montemaior.
Tu de Montemaior agora chegado
nesta hora chegado de Montemaior
conta quem cá viste neste gradeado
conta as espadas ruins que há em meu redor
Que saiba o meu amor de quem vens mandado
que todos lá saibam em Montemaior:
de estar onde estou não me temo nem louvo
que sou todos sabem um homem do povo.
Vida que ganhei nunca foi por esmola
pois criança ainda apascentar o gado
da encosta ao vale da planície à serra
era o meu livro de eu andar à escola.
Anos depois, já homem feito, o arado
era o meu jeito de escrever na terra.
E o gesto franco do lançar da semente
era distribuir pão por toda a gente
que é esta a lei que deus fez.
E o não querer que assim não fosse
foi a causa que me trouxe
onde me vês.
E não só a mim foi que isto aconteceu
a muitos mais foi e deles um fui eu:
nas sombras da noite de casa arrancado
por gente sem rosto e longo braço armado
por quem os comanda um alto senhor
que as ordens de el-rei executa apressado.
E agora que ouviste o que se há passado
tu que nesta hora vens de Montemaior
que de Montemaior nesta hora és chegado
e que viste que onde estou estão outros mais
sabe também que é assim que el-rei o quer:
arrancar filhos aos pais
tirar marido a mulher
é a seu ver
a maneira melhor
de espalhar o terror
cá e lá em Montemaior.
Tu que nesta hora vens de Montemaior
que de Montemaior nesta hora és chegado
olha bem as espadas que há em meu redor
olha bem os ferros deste gradeado:
que te fique na memória
a prisão onde me vês.
Esta é a minha história
A saga de um português.
Manuel da Fonseca, Poemas para Adriano, 1972
O poema «Saibam todos em Montemaior» retrata muito bem a história de um camponês alentejano de Montemaior que foi punido de várias formas por ter se revoltado contra os problemas sociais que atingiam a sua classe. O poema é narrado em primeira pessoa, como uma grande parte dos poemas de Manuel da Fonseca, em que o próprio personagem conta a sua história através do discurso direto. Desse modo, a personagem configura-se como o sujeito da enunciação, tornando-se mais autónoma e realçando, assim, o seu poder impressivo em relação ao leitor. O camponês do poema conta a sua história para uma pessoa que vem de Montemaior para trazer-lhe um recado do seu amor, de quem foi separado:
Tu que vens agora de Montemaior
que de Montemaior agora és chegado
diz-me se trazes recado
do meu amor
de quem fui separado
lá em Montemaior.
que de Montemaior agora és chegado
diz-me se trazes recado
do meu amor
de quem fui separado
lá em Montemaior.
O camponês pede para que a pessoa não tenha receio do lugar onde ele se encontra, ou seja, da cadeia: “Não temas os ferros deste gradeado / nem as espadas ruins que há em meu redor” e suplica para que lhe dê o recado do seu amor que ele espera não ser outro a não ser este: “Que inda mais me ama quem me tem amado? / Que inda agora luta pelo que eu lutava?”. Através desse último verso, nota-se que o camponês não está preso por um motivo banal e sim por lutar por algo maior e assim espera que o seu amor continue lutando por esse mesmo ideal. Afinal, ele não se sente intimidado tão pouco vitorioso por estar nessa situação, mas enfrenta-a com a dignidade de um homem simples:
Que saiba o meu amor de quem vens mandado
que todos lá saibam em Montemaior:
de estar onde estou não me temo nem louvo
que sou todos sabem um homem do povo.
que todos lá saibam em Montemaior:
de estar onde estou não me temo nem louvo
que sou todos sabem um homem do povo.
Dignidade essa que parece ser uma característica intrínseca ao homem alentejano, fazendo com que este se infle de uma coragem que mesmo diante de situações adversas sua consciência não se abate. Característica essa que de acordo com Miguel Torga (Portugal. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, pp. 125-126) tem origem na integração entre o homem e o espaço do Alentejo:
E talvez nada haja de mais expressivo do que esse limite nítido entre a intimidade do homem e a integridade do ambiente. Assegura-se dessa maneira a conservação duma dignidade que o bípede não deve alienar, nem a paisagem perder. Se há marca que enobreça o semelhante, é essa intangibilidade que o alentejano conserva e que deve em grande parte ao enquadramento. O meio defendeu-o duma promiscuidade que o atingiria no cerne. Manteve-o vertical e sozinho, para que pudesse ver com nitidez o tamanho da sua sombra no chão. Modelou-o de forma a que nenhuma força, por mais hostil, fosse capaz de lhe roubar a coragem, de lhe perverter o instinto, de lhe enfraquecer a razão.
Assim, o camponês retratado no poema é um homem que desde criança aprendeu na prática o significado da palavra trabalho e sempre levou uma vida dura de homem do campo, sem direito à educação e por isso relaciona a sua atividade com o trabalho do escritor:
Vida que ganhei nunca foi por esmola
pois criança ainda apascentar o gado
da encosta ao vale da planície à serra
era o meu livro de eu andar à escola.
Anos depois, já homem feito, o arado
era o meu jeito de escrever na terra.
E o gesto franco do lançar da semente
era distribuir pão por toda a gente
que é esta a lei que deus fez.
E o não querer que assim não fosse
foi a causa que me trouxe
onde me vês.
pois criança ainda apascentar o gado
da encosta ao vale da planície à serra
era o meu livro de eu andar à escola.
Anos depois, já homem feito, o arado
era o meu jeito de escrever na terra.
E o gesto franco do lançar da semente
era distribuir pão por toda a gente
que é esta a lei que deus fez.
E o não querer que assim não fosse
foi a causa que me trouxe
onde me vês.
Nos versos finais desse trecho do poema, o camponês revela o motivo que o levou à prisão, isto é, se rebelar contra a exploração do trabalho que leva os camponeses a uma vida miserável. Em seguida, o camponês declara que não somente ele foi punido por se erguer contra essas injustiças sociais, muitos outros também tiveram o mesmo destino, ou seja, serem tratados como criminosos, ter que se separarem das suas famílias de forma violenta, deixando-as ainda mais desamparadas e aterrorizadas e então serem privados da liberdade.
E não só a mim foi que isto aconteceu
a muitos mais foi e deles um fui eu:
nas sombras da noite de casa arrancado
por gente sem rosto e longo braço armado
por quem os comanda um alto senhor
que as ordens de el-rei executa apressado.
E agora que ouviste o que se há passado
tu que nesta hora vens de Montemaior
que de Montemaior nesta hora és chegado
e que viste que onde estou estão outros mais
sabe também que é assim que el-rei o quer:
arrancar filhos aos pais
tirar marido a mulher
é a seu ver
a maneira melhor
de espalhar o terror
cá e lá em Montemaior.
a muitos mais foi e deles um fui eu:
nas sombras da noite de casa arrancado
por gente sem rosto e longo braço armado
por quem os comanda um alto senhor
que as ordens de el-rei executa apressado.
E agora que ouviste o que se há passado
tu que nesta hora vens de Montemaior
que de Montemaior nesta hora és chegado
e que viste que onde estou estão outros mais
sabe também que é assim que el-rei o quer:
arrancar filhos aos pais
tirar marido a mulher
é a seu ver
a maneira melhor
de espalhar o terror
cá e lá em Montemaior.
Finalizando o poema, o poeta deixa bem evidente a sua revolta em relação ao momento histórico pelo qual Portugal passa na época da ditadura salazarista, especialmente ao retratar as classes mais oprimidas da região do Alentejo. Entretanto, ao dar voz a um representante da classe camponesa, o poeta não almeja apenas representar a vida sofrida do homem alentejano, o poeta vai muito além e remete aos conflitos que o homem português em face da situação política, social e econômica vivia nesse período. Uma situação de opressão, de miséria, de exploração das classes mais populares, de alienação do povo português, de desrespeito aos direitos mais essenciais do homem, de censura à liberdade de expressão:
Tu que nesta hora vens de Montemaior
que de Montemaior nesta hora és chegado
olha bem as espadas que há em meu redor
olha bem os ferros deste gradeado:
que te fique na memória
a prisão onde me vês.
Esta é a minha história
a saga de um português.
que de Montemaior nesta hora és chegado
olha bem as espadas que há em meu redor
olha bem os ferros deste gradeado:
que te fique na memória
a prisão onde me vês.
Esta é a minha história
a saga de um português.
Lírica e sociedade: um olhar sobre a obra poética de Manuel da Fonseca, Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 108-110.
Manuel da Fonseca foi dos poetas que militaram nas fileiras deste movimento [Neo-Realismo]. Entre outros temas, privilegia o isolamento social do Alentejo, a denúncia e reparação das injustiças. No entanto, não ficou também indiferente às potencialidades expressivas e ideológicas da lírica medieval. No seu poema “Saibam todos em Montemaior”, que inscreve palimpsesticamente a cantiga de amor de D. Gil Sanches, “Tu, que ora vees de Monte-mayor”, podemos verificar isso mesmo. Ora, na cantiga trovadoresca, Monte Maior referir-se-á a Montemor, nos arredores de Coimbra, pelo que a composição datará do início do século XIII, uma vez que terá sido produzida no ano do cerco de Montemor (1213). Porém, nesta cantiga de amor, o sujeito poético começa por pedir notícias de ‘sua senhor’ («Tu, que vens de Monte-Maior / digas-me mandado mia senhor»), uma vez que esta se encontra provavelmente em Montemor e a cidade estava cercada. No entanto, o seu lamento justifica-se, sobretudo, por não ver o seu amor correspondido. No poema “Saibam todos em Montemaior”, de Manuel da Fonseca, a situação é bem diferente.
Como se vê, é óbvia a aproximação à cantiga de Sanches que constitui o irrefutável hipotexto do poema de Manuel da Fonseca. Antes de mais, uma vez que a sua obra privilegia o espaço sociológico e simbólico do Alentejo, é plausível que o topónimo Montemaior se refira a Montemor-o-Novo, na província alentejana. Por outro lado, este não é um lamento por um amor não correspondido, mas sim o deplorar da vigência de um regime ditatorial, cuja política é “arrancar filhos aos pais / tirar marido a mulher / espalhar o terror”. A prisão do sujeito poético e o consequente afastamento da sua amada devem-se aqui à perseguição política e aludem ao contexto de repressão salazarista. Porém, o amor do sujeito lírico é correspondido, uma vez que o mensageiro vem saber notícias do encarcerado a mando da sua amada e este espera o seu recado (“que inda mais me ama quem me tem amado”), uma figura que é claramente reminiscente do mandadeiro galego-português. Além de unidos pelo amor, os enamorados estão também juntos pela combatividade ideológica, uma vez que o eu poético refere que a sua amada “inda agora luta” pelo que ele lutava.
Em termos formais, o poema medieval encontrava-se estruturado em apenas duas estrofes de doze versos, oito dos quais constituíam o refrão; o poema de Manuel da Fonseca é composto de seis estrofes que oscilam entre os seis e os vinte versos e, nas primeiras três, verificamos também a presença de um refrão inusitadamente extenso (1ª estrofe: dois versos mais quatro de refrão; 2ª estrofe: quatro versos mais cinco de refrão; 3ª estrofe: dois versos mais cinco de refrão). Este poema recorre também ao paralelismo literal, à rima consoante em –ado, a processos de dobre e a estruturas quiasmáticas que lhe conferem o ritmo e a musicalidade evocativos dos poemas dos trovadores.
Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena, Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha. Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 33-35.
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► Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para
análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha
de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html
► “Poesia
útil e
literatura de resistência”
(A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas),
José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/16/cantiga.de.montemaior.aspx]
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