L’ÉTÉ AU PORTUGAL
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.
Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros campos
espanejando as caudas com que se ataviam.
Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios com o bem e o mal
‑ mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?
Chatins engravatados, peleguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem as pernas – e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.
Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas todos tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.
Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
(Na tarde que anoitecer o entardecer nos prende).
Jorge de Sena, “Exorcismos” (1972) in Trinta Anos de Poesia, 2.ª ed., Lisboa: Edições 70, 1984, pp. 270-271.
A apatia, o conformismo e a inatividade (que serão as marcas particulares do país) estão, desde logo, condensadas no título do poema “L’Été au Portugal” uma vez que a estação do ano evocada – o verão – gera efeitos sensoriais aliados à dificuldade em agir (devido ao calor), ao descanso (época de férias), ao término de um processo de maturação (época em que tudo, na natureza, atingiu o estado adulto) que, inapelavelmente, representa o início do envelhecimento e morte que culminam nas estações subsequentes.
Esta simbologia do Verão vai condicionar a leitura do poema e a apreensão do rosto de Portugal será efetuada a partir desse pressuposto. Com o intuito de gerar o já mencionado distanciamento, o sujeito poético dirige-se, num diálogo virtual, a um interlocutor que nunca é nomeado nem identificado, mas a quem se destinam as sucessivas perguntas retóricas que perpassam a generalidade do poema: “Que esperar daqui?”, “Que Portugal se espera em Portugal?”. Porém, esse destinatário pode ser cumulativamente um Outro – que nada teria a ver com o país – ou o próprio sujeito poético numa espécie de cisão interna em que o seu lado mais crítico dialogaria com o que permanece associado emotivamente ao país alvo do retrato.
Ao longo das sete estrofes do poema (se excluirmos o monóstico final que, à semelhança da finda das cantigas medievais, recolhe e sintetiza o conteúdo de todos os versos anteriores) surge um país onde as pessoas nada esperam, pois até mesmo a “vida e morte” são “informes consentidas”, devorando-lhes não só o conceito de vida como os seus princípios e ideologias. Decorrente desse facto, o sujeito poético vê-as como vermes indesejáveis – as baratas – que “se envenenam” com “pó de raiva” numa ironia extrema que a pergunta retórica acentua. Neste ambiente repressor e destrutivo, as únicas soluções encontradas são a emigração (com o respetivo regresso em que se privilegiam os bens materiais adquiridos em detrimento dos ideológicos e/ou humanos – “e voltam como se eram só mais ricos”) ou o permanecer calando e vestindo “as opas/de lágrimas de gozo e sarapicos”. Como fizera Ruy Belo, também aqui não há a dissociação vida quotidiana/religião; em momentos de sofrimento, a população enverga as vestes solenes dos sacerdotes, porém, a solenidade em questão é o camuflar o sofrimento, as “lágrimas”, imbricando-as numa dança – o sarapico – e o suposto “gozo” que adviria de tal ato.
O esvaziamento do país e consequente desertificação e abandono das profissões produtivas é bem evidente na terceira estrofe com as “serras nuas”, os “baldios campos”, as “artes e mesteres que se esvaziam”. Se os adjetivos “nuas” e “baldios” remetem para a ideia do abandono, essa ação surge como progressiva e inacabável devido à contínua aliteração das sibilantes, à agressividade das vogais da sílaba tónica (que alternam entre as vogais abertas e baixas e as fechadas e altas) por oposição às fechadas que predominam ao longo desses versos e o uso do presente do indicativo “esvaziam” que, sintomaticamente, rima com outra forma verbal também no presente do indicativo “ataviam”. Tudo o que sobrou dessas atividades é “um relento de lampeiros campos/espanejando as caudas com que se ataviam”. De facto, eles parecem ser o único aspeto positivo (de notar o prolongamento da ação inerente ao uso do gerúndio “espanejando”), muito embora os “campos” já não sejam o objeto da produção, limitando-se a espanejar “as caudas com que se ataviam”. Esta imagem extremamente visual que, por associação com o ato praticado pelo pavão, mina a possibilidade de evolução, já que este é apenas um ato estético na medida em que só há a necessidade de um observador para vislumbrar as possibilidades contidas nessa cauda aberta.
A incredulidade do Eu quanto à hipótese de ocorrer, realmente, uma evolução é notória nas perguntas retóricas “Que Portugal se espera em Portugal?/ Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?”. O mote da espera, neste caso da “não espera” da primeira estrofe, é reutilizado para realçar o conformismo dos portugueses com a imagem do país que o aparelho de Estado difunde e os ideais que ele promove. A própria conjugação perifrástica “há-de erguer-se” antecedida do advérbio de tempo “ainda” enfatiza essa descrença quanto à capacidade de inverter a situação, principalmente porque o império português foi construído na simbiose do “bem e [do] mal” e os denunciantes não são penalizados pelo Estado, mesmo que as suas informações sejam falsas. Por isso, não é possível encontrar uma recompensa adequada para essas situações, o sujeito poético não sabe “com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?”. Não só o aspeto negativo da impossibilidade de reprimir denunciantes é notório como o facto de eles fazerem uso da palavra camufladamente já que se “agacham”.
A esta imagem da ataraxia generalizada vai justapor-se a da referência aos grupos de pessoas que constituem o país: “Chatins engravatados, peleguentas fúfias/passam de trombas de automóvel caro./Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços/ou sem as pernas – e como cães sem faro/os pilhas poetas se versejam trúfias.” Todos eles contribuem para gerar a imagem de um país amorfo, corrupto, dominado por vícios e defeitos. Mesmo aqueles que poderiam usar a palavra para denunciar as atrocidades, perderam o “faro” (nessa comparação corrosiva dado que um dos sentidos mais importantes do cão é o faro) e limitam-se a bajular o poder instituído para obterem favores; daí eles serem “pilhas poetas” e versejarem-se a eles próprios. Decorrente desta constatação, Portugal é formado por “moribundos mortos” independentemente da idade real. A ideia da decrepitude é bem evidente nesse cumular de sentidos entre “moribundos” e “mortos” que, para além dessa desistência ou cessação da vida, se “arrastam” para o “nada nulo”: a anulação total.
À inatividade vai associar-se a mesquinhez e uma população desvirtuada, são “todos tortos”, nenhum tem vontade de contrariar o pré-estabelecido e autocomprazem-se com o sofrimento próprio e o dos outros: “estão contentes de tristeza,/sentados em seu mijo, alimentados/dos ossos e do sangue de quem não se vende.”. Para além dos denunciantes, mencionam-se aqui os outros cúmplices: a nação inteira que se alimenta, qual canibal, da vida dos que não se calam, dos que não compactuam. Este ser amorfo, decrépito – sentado “em seu mijo” – que representa o país e os seus habitantes está de tal forma apodrecido que nenhum ato violento (“Chicote? Bomba? Creolina?”) é capaz de o acordar: “É tarde” para inverter a marcha da destruição.
Se durante todo o poema o sujeito poético se distanciou deste Portugal e destes portugueses, no monóstico final inclui-se nesse destino coletivo ao utilizar o pronome pessoal na sua forma de complemento ‑ “nos” ‑ para realçar que, neste verão infindável em que vive Portugal – “(Na tarde que anoitecer o entardecer nos prende)” ‑, também ele é prisioneiro desse país nefasto.
Depois deste primeiro quadro de um país envelhecido, apático e inerte, Jorge de Sena traça-nos um outro que nos leva a viajar pelos pontos mais importantes da história de Portugal. No entanto, o trajeto efetuado conduz-nos ao contacto com um país que não aparenta possuir qualidades ao nível geográfico e humano. O autor equaciona, de uma forma muito particular, o discurso ideológico e identitário que o aparelho de Estado havia inventado para difundir como o seu Portugal. Torna-se claro que a representação mental de Portugal é um discurso que implica uma simbiose entre meio circundante, mitos e crenças – apropriadas pela sociedade que os gere – e os sujeitos que se autoincluem nessa imagem, nesse conceito de identidade.
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/05/ete.au.Portugal.Jorge.de.Sena1972.aspx]
1 comentário:
Boa tarde, será que me podia esclarecer em particular os versos "O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?"?
Tenho uma interpretação para os primeiros dois versos, mas não entendo o que é o pó de raiva com que se envenenam.
Obrigado.
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