COMO OUVI LINDA CANTAR POR SEU AMIGO JOSÉ
Se sabeis novas do meu amigo
novas dizei-me que vou morrendo
por meu amigo que me levaram
num carro negro de madrugada.
Dizei-me novas do meu amigo
em sua torre tecendo os dias
dai-me palavras pra lhe mandar
com ruas brisa domingos sol.
Se sabeis novas de meu amigo
novas dizei-me que desespero
por meu amigo que longe espera
tecendo os dias tecendo a esperança.
Mando recados não sei se chegam
leva-me ó vento da noite triste
ou diz-me novas de meu amigo
que tece o tempo na torre negra.
Que tece o tempo que tece a esperança.
Já da ternura fiz uma corda
ó vento prende-a na torre negra
que meu amigo por ela desça.
Por essa corda feita de lágrimas
que meu amigo por ela desça
ou mande a esperança que vai tecendo
que desespero sem meu amigo.
Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas,
1.ª ed. de bolso, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pp. 85-86.
1.ª ed. de bolso, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pp. 85-86.
À semelhança de outros autores, Manuel Alegre recorre, por vezes, à reactualização de alguns temas da lírica trovadoresca, principalmente das situações abordadas nas cantigas de amigo dado que, nelas, se menciona a existência de uma donzela que sofre devido à ausência do amigo que, normalmente, se encontrava ao serviço do rei ou do senhor feudal, e à inexistência de notícias.
Em “Como Ouvi Linda Cantar por seu Amigo José” é particularizado o motivo da ausência e as razões de não ser possível estabelecer contacto com o amigo. Este foi levado para os calabouços da PIDE “num carro negro de madrugada”, encontra-se “em sua torre tecendo os dias”, uma “torre negra” e inacessível. A donzela desespera dado não saber se os recados que manda são entregues e por a única resposta ser o silêncio. Daí o seu pedido insistente ao vento de que leve uma corda, que ela teceu com “ternura” e “lágrimas”, para que o amigo possa fugir ou, pelo menos, consolá-la e enviar-lhe a esperança que ela perdeu.
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 77-78.
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Apesar de esta tendência, que aqui designamos como poesia de intervenção, não existir enquanto movimento literário autónomo (e, em rigor, com ela possamos relacionar autores das mais distintas profissões de fé estético-literárias), adotamos a proposta terminológica sugerida por Óscar Lopes:
Em termos de poesia de qualidade, não é possível isolar uma tendência de intervenção política ou de intenção realista, pois ela manifesta-se, e por vezes de modo bem vivo, em obras de sensibilidade tão diferente como as de Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill […] Vamos no entanto agrupar um conjunto de poetas cuja fase de consagração se liga a uma clara atitude de polémica ou de crítica social […] (Lopes e Saraiva, 1996:1069)
Manuel Alegre é um destes poetas em que tanto a obra, como o ideário socializante e cívico que a sustenta, estão intimamente ligadas à resistência ao estado ditatorial vigente. O próprio autor participou ativamente nas lutas académicas coimbrãs e, mais tarde, em várias tentativas de revolta, que o levaram à detenção e ao exílio. Quanto à sua obra poética, Álvaro Manuel Machado refere que, no seu primeiro livro de poesia, Praça da Canção, Alegre alia o proselitismo ideológico a “um original sentido de musicalidade enraizado nas trovas de tradição popular” e que quanto à “estrutura do verso radica essencialmente na tradição dos antigos cancioneiros” (Machado, 1996:19). No poema “Como ouvi Linda cantar por seu amigo José”, Manuel Alegre funde denúncia política e tópica trovadoresca.
Neste poema, encontramos um eco intertextual da cantiga-emblema “Ai flores, ai flores do verde pino”, através da recuperação e glosa do verso “se sabedes novas do meu amigo”. Além do recurso a alguns processos formais, tais como o dobre, o leixa-pren e o paralelismo literal, detetam-se também algumas coincidências temáticas com o cancioneiro de amigo: o uso do distintivo de género logo no primeiro verso (“amigo”), o tema da separação e espera ansiosa por parte da amiga, a intuição da figura do mensageiro a quem a amiga transmite os seus recados e de quem espera receber notícias e a animização de elementos naturais – o vento, a quem a amiga pede ajuda, exercendo a função de adjuvante. Aliadas a estas marcas trovadorescas, encontramos a mensagem ideológica de Manuel Alegre, através da crítica e denúncia da repressão do regime, atuando por meio de detenções ilegais (alusão à PIDE), levando as suas vítimas num “carro negro de madrugada” e deixando-os “em sua torre tecendo os dias”, numa remissão alusiva análoga à do poema de Manuel da Fonseca de que antes nos ocupámos.
Deste modo, Manuel Alegre (re)utiliza o motivo frequente do cancioneiro de amigo para adaptá-lo à realidade que ele próprio conheceu de perto, intervindo para denunciar e expor as atrocidades perpetradas por uma ditadura desumana e desumanizante.
Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena, Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha. Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 47-48.
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► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/17/como.ouvi.Linda.cantar.por.seu.amigo.Jose.aspx]
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