sexta-feira, 23 de agosto de 2013

UM HOMEM NA CIDADE (Ary dos Santos)



                
                
UM HOMEM NA CIDADE

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!
                
José Carlos Ary dos Santos (1937-1984)
                  
                 
Acreditamos ser este um dos poemas mais belos que já se compôs para um fado, mesmo entre os muitos que o próprio Ary dos Santos escreveu.




Antes de nos determos no poema propriamente dito, cabe aqui comentar sobre a ligação entre o poeta e o fado.
Poderia parecer uma incongruência que um poeta tão revolucionário e tão avesso ao regime salazarista como foi Ary dos Santos viesse a compor poemas para o fado, gênero conhecido por esse mesmo regime como a “canção nacional”.
No entanto, Ary dos Santos soube compreender, como muitos outros poetas, que o fado, embora utilizado pelo regime ditatorial como um dos seus símbolos máximos, nada mais era, na verdade, que a manifestação mais pura da alma lisboeta, do seu povo e da própria cidade de Lisboa enquanto locus cultural.
Só que enquanto outros poetas tiveram seus poemas adaptados ao fado, ou vieram a escrever para o fado, tendo o fado tradicional e amétrica que o rege como primordiais, Ary dos Santos escreveu para o fado quase sempre sem imaginar a música que iria moldar suas palavras. Dessa forma, fugindo à métrica tradicional do fado – a redondilha maior ou a menor – Ary dos Santos acabou por renovar o fado, trazendo para o gênero, não só novos temas, mas mesmo quando trabalhando com temas já firmados no gênero, fazendo-o de forma diversa, mas, também trazendo através de seus poemas a oportunidade de que se criassem novas músicas para o gênero.
Mas, voltemos ao poema em questão.
Aqui, Ary dos Santos traça de forma magistral o entrosamento entre o ser humano lisboeta (aqui na sua versão masculina), a madrugada e a liberdade, sendo esse um poema que foi composto depois do abril de 1974.
O poeta agarra “a madrugada como se fosse uma criança” e vê o “corpo da cidade” como se fosse “uma videira de esperança”, esperança essa que leva o “homem da cidade” a trabalhar sem cansaço, ainda que o faça “por força da vontade”, ou seja por não ter outro destino – tema quase que imprescindível para um fado.
O poeta – incorporado em “homem da cidade” – segue pela madrugada de Lisboa terminando por “desaguar no Rossio”, numa das melhores metáforas que já se fez da noite lisboeta, pois quer se venha do Bairro Alto, da Lapa, de Alcântara, de Alfama, ou da Avenida da Liberdade, passa-se pelo Rossio.
Além disso, o “homem da cidade” trabalha desde cedo, mas o faz com alguma alegria, pois agora tem liberdade.
E vão surgindo outros elementos do fado, embora Ary dos Santos os aborde de forma bem diversa da tradicional: “lua cheia de Lisboa”; “velada canoa”; “gaivota”, e; “maré”. A lua se deslumbra e só então reflete navela, enquanto que a gaivota derrota o mau tempo, reflexo do povo, que como se fosse a maré a subir, invade a cidade em sobressalto, metáfora incrível da liberdade trazida pela Revolução de 1974.
A partir daí assistimos a um ciclo metafórico através do qual amadrugada se converte em manhã, passando esta a flor, que vai ser “desfolhada” – provável evocação de um dos seus maiores êxitos como letrista – transformando-se em um malmequer azul. Mas não se trata de uma flor qualquer, e sim do “malmequer da liberdade”, da flor de Abril”, da “flor sem medo”. E o ciclo é fechado com a integração da liberdade – novo parâmetro do povo português – ao mar – parâmetro de sempre do povo português, transformando-se Lisboa de cidade que malquis o poeta (a Lisboa da ditadura) em cidade que o quer bem (a Lisboa da liberdade).
Possivelmente nenhum outro poeta da sua geração, em nenhum outro momento, tenha sabido colocar em palavras tão bem a integração entre um “Portugal que foi” e um “Portugal que vai ser” como Ary dos Santos o fez nesse poema. E o facto de ser um poema que foi composto para um fado consegue concretizar de forma ainda mais eficaz essa integração.
                   
in Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, nº 40, 2005.
                    
                
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Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/23/um.homem.na.cidade-.aspx]

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