RETRATO
DE NATÁLIA
Hierática cromática socrática
passas branca de neve pela sala
nebulosa da pele via láctea
do único percurso que nos falta.
No teu andar há ventres há tecidos
de leve lã circuitos do brocado
duma seda tecida na manhã
dos raios dos teus olhos deslumbrados.
Nos teus quadris há cisnes há pescoços
de virgens degoladas há indícios
do alabastro quente dos teus ossos
iluminando claros precipícios.
É isso. Uma vestal iluminada
uma deusa rangendo uma secreta
porta barroca aberta para o nada
que é o docel da cama do poeta
Ali deitas crianças animais
gemidos e maçãs vagidos e atletas
pois que amas as coisas naturais
com a tua carne impúbere e erecta.
Porém tu acalentas tu alentas
nossa senhora lenta mãe do escândalo
ave de carne lírio de placenta
com aroma de nardos e de sândalo.
Desinfectante e amante eis que transformas
em teus olhos de cânfora as orgias
e o teu corpo ânfora é a forma
em que a lira da noite vaza o dia.
José Carlos Ary dos Santos, Fotos-Grafias, 1970.
Natália
Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923 em Fajã de Baixo, concelho de
Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, e morreu em Lisboa na madrugada de
16 de Março de 1993.
Nascida no seio de uma família da pequena-média burguesia dos arredores de
Ponta Delgada, permaneceu até aos onze anos na ilha, aí se deixando impregnar
de vivências e imagens que viriam a constituir um dos mais sólidos e
recorrentes motivos de toda a sua produção artístico-literária.
Depois, acompanhada da mãe e da irmã, partiu para a capital, onde se
radicou e viria a destacar-se como uma das mais influentes figuras intelectuais
da segunda metade do século.
É autora de uma obra extensa e multifacetada, que integra a poesia, a prosa
de ficção, o teatro, o ensaio, a diarística, a tradução e a organização de
antologias.
Colaborou assiduamente na imprensa, impôs-se na televisão com o programa
“Mátria”, realizou numerosas conferências e está traduzida em várias línguas.
Tomou posições de grande coragem, quer antes, quer depois do 25 de abril, o
que lhe valeu ter sido eleita deputada à Assembleia da República.
Na base de toda a sua intervenção na coisa pública está a sua orgânica
aversão a qualquer tipo de totalitarismo.
Dotada de um espírito desassombrado e de um forte sentido da
convivialidade, Natália Correia — que chegou a dirigir a editora Arcádia
(1973), além de importantes publicações (Século Hoje e Vida
Mundial, em 1976) — tornou-se no natural polo agregador de boémios,
artistas e personalidades representativas dos vários meios sociais do país.
Na vida noturna lisboeta, ficaria célebre o Botequim, bar que abriu no
Largo da Graça, em 1971, com Isabel Meyreles.
Mas o essencial da sua vida está, como ela mesma fazia questão de acentuar,
na sua obra literária, especialmente em O sol nas noites e o luar nos
dias, título sob o qual, pouco antes de morrer, reuniu toda a sua obra
poética. Aqui se “cantam”, “narram” e “dramatizam” os sucessivos lances de um
trajeto existencial consagrado por completo ao conhecimento dos homens, das
coisas e das palavras.
Desde cedo, a escritora assumiu-se como herdeira espiritual de um Ocidente
que via assolado por graves dissensões — um Ocidente que reduzira a moderna
emancipação do homem ao fanatismo do progresso. Daí o duplo e contraditório
posicionamento nataliano em relação aos rumos da chamada modernidade: por um
lado, intransigente denúncia do racionalismo, do economicismo e do sociologismo
de extração iluminista; por outro, galvanizante defesa e ilustração da arte
moderna, entendida esta como um domínio capaz de cicatrizar feridas, de
reunificar o todo, ao articular dialeticamente o futuro com o passado, a rutura
com a tradição — seja a tradição do novo, que remonta aos primórdios de Oitocentos
e inclui formas, ritmos e géneros populares; seja a tradição dita clássica, de
que foi conhecedora profunda, nos seus vários sucedâneos; seja finalmente a
Tradição pura e simples, a Tradição das tradições, que mergulha na espessura de
remotos saberes e experiências. Esta sua fidelidade à modernidade estética
traduzir-se-á numa especial forma de fidelidade ao alto romantismo — agregador
por excelência quer da Memória, do Amor e da Imaginação (na lógica profunda da
sua poesia, traves-mestras de qualquer existência votada à necessidade de se
entender e de se merecer), quer dos múltiplos “registos” artísticos que convoca
(o virtuosismo barroco; o clima simbolista ou pós-simbolista de alguns poemas
“místico-patrióticos”, o exaltante espraiamento de Cântico do país
emerso, o óbvio fascínio pelo universo libertador do surrealismo...), quer
das três distintas vozes que de si o tempo fora destilando.
Destas vozes, a que primeiro se gera e avulta é obviamente a particular, a
mais “egológica” e lírica de todas, voz por detrás da qual se adivinham, ainda
que muito transformadas, experiências e comoções realmente vividas ou sentidas
por uma irredutível subjetividade. Surpreendemo-la, operosa e insinuante,
sobretudo nos seus livros iniciais — Rio de Nuvens(1947), Poemas (1955), Dimensão
Encontrada (1957), Passaporte (1958) —, aqueles
livros onde o eu, graças à magia da palavra poética, procura precisamente
“encontrar” a sua “dimensão”, lograr o “passaporte” que lhe faculte a
identidade e o reconhecimento. Trata-se de uma voz intrinsecamente saudosa,
filha dileta da Sehnsucht romântica, que ora se mostra presa
ao passado, ao paraíso perdido da infância (a ilha, a mãe, a casa, o quarto, a
natureza consonante...), ora se mostra enfeudada ao futuro, a um além que o
mistério cerra mas que ela vislumbra no verbo por lampejos.
A segunda voz de Natália — meio sibila, meio libertária... — é aquela que
impera em Comunicação (1959), Cântico do País Emerso (1961), O
Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968),A Mosca
Iluminada (1972), O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973)
e Epístola aos Iamitas (1976), livros cujos títulos dão bem a
ideia da inflexão em profundidade então registada no romantismo nataliano.
Agora ela já não é só ela, encruzilhada de forças contraditórias, espaço oferecido
ao ilimitado e ao intangível; agora ela é também, e sobremaneira, a “feiticeira
Cotovia”, maga insubmissa, herdeira designada de antiquíssimos ritos e
mistérios. À poetisa está-lhe reservada a mais alta e sagrada das missões: a
de, pelo “vinho” e pela “lira”, mudar a vida dos Homens e das Cidades,
levando-os à recuperação da verdade que esqueceram e junto da qual habitam
desde o princípio dos tempos. A última das vozes natalianas — a d’ O
Dilúvio e a Pomba (1979), d’O Armistício (1985) e de Sonetos
Românticos (1990) — traduz um acontecimento decisivo da vida da
poetisa: a gratífica consciencialização do excecional dom ou favor que merecera
do Espírito, entidade agora dominante, devotadamente elevada a princípio dos
princípios. À medida que o tempo foge e o Eterno a intima, Natália quer ser
mais do que musa ou vate eméritos; quer encontrar uma via que aprofunde e
sobreleve o Mistério e a Tradição antes cantados; quer, por assim dizer,
tornar-se sófica, votar-se por inteiro à sabedoria, que outra coisa
não há que melhor distinga a sua condição de eleita. Em definitivo convicta de
que o poeta e o sacerdote são um só, como nas origens o haviam sido, Natália
pugna pela harmonia universal das coisas e dos seres, pela confluência de mitos
regressivos e projetivos, pela diluição das galvanizantes vivências do porvir
nas longínquas experiências do passado.
Conforme houve oportunidade de referir, em estudo mais desenvolvido e aqui
parcialmente retomado (Pimentel, 1999), todas estas vozes globalmente
românticas não equivalem a personalidades individuadas. São, no essencial,
vozes de uma mesma voz; estádios (noutra perspetiva: níveis) de uma vida
soberanamente imolada à Vida maior que nela pulsa. Daí que elas, devidamente
adaptadas aos ditames modais e genéricos de cada texto, se afigurem de
indiscutível produtividade para todos quantos pretendam abordar outras obras de
Natália Correia. Recorde-se, por exemplo, no âmbito da narrativa, do
romance A Madona (1968), que pugna pela recuperação e
ressacralização da mulher genuína, e da novela As Núpcias (1990),
que exalta o androginismo e a fraternidade primordiais. Ou ainda, no âmbito
teatral, de peças como O Encoberto (1969), que insiste no tema
do messianismo, de A Pécora (1983), que procede à
desmistificação do “mercado religioso” (ver o respetivo prefácio) ou de Erros
Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (1981), sem dúvida uma das mais
significativas experiências entre nós realizadas nos domínios da “festa” e do
“espetáculo” cívicos.
*
Senhora
de uma vasta cultura, deveu-a essencialmente ao convívio com intelectuais e à
sua incansável actividade de leitora, tendo em sua casa uma das melhores
bibliotecas de Lisboa.
Aos 20
anos era jornalista no Rádio Clube Português. No final da Segunda Guerra
Mundial, assinou as listas do MUD (Movimento de Unidade Democrática). Amiga de
António Sérgio, torna-se frequentadora do Chiado e das livrarias onde se reúnem
escritores e políticos. Na década de cinquenta a sua casa vai ser uma espécie
de salão literário, frequentado pelos mais diversos artistas, como o escultor
Martins Correia, Almada Negreiros e representantes do movimento surrealista. Aí
será mesmo representada a peça de Jean-Paul Sartre Huis-Clos,
proibida pela censura.
No
período de campanha do general Humberto Delgado à Presidência da República,
afluem a casa de Natália Correia poetas, romancistas, pintores e expoentes de
diversos quadrantes da oposição ao salazarismo.
Em
1969, Natália Correia combate a ditadura de Marcelo Caetano no CEUD, ao lado de
Mário Soares e Salgado Zenha. Como proprietária do bar O Botequim, aí junta
amigos, escritores, gente de teatro, boémios, criaturas excêntricas, um pequeno
mundo onde reina, com a sua irradiante mescla de narcisismo e generosidade.
Depois
do 25 de Abril de 1974, lá se encontram, entre outras, estrelas do PREC, os
protagonistas do Grupo dos Nove. Primeiro afecta ao PS, depois ao PPD de Sá
Carneiro e, por fim, ao PRD, foi deputada pelo PPD à Assembleia da República,
de 1979 a 1980 e de 1980 a 1983 e pelo PRD, como independente, de 1987 a 1991.
Nos últimos anos da sua vida aproximou-se da esquerda.
Ensaísta,
cronista, teatróloga, romancista é, no entanto, na poesia que se revela
completamente, nela projectando erotismo, ânsia libertária, desafio
iconoclástico, sentido do fantástico, tudo isto com alguns ecos românticos e
acentuadas marcas surrealistas.
Luciano
Reis, Personalidades Artísticas. Século XX. 1º Volume
*
[Sobre Natália Correia, Jorge de] Sena disse:
"um poeta que se impôs pessoalmente e às suas atitudes, na vida literária
portuguesa […] pela forma como soube transformar o escândalo numa espécie de
terror sagrado do provincianismo embevecido". Esse pecado original
acompanhou-a até ao fim. A independência tem um alto preço (...). Em vida,
Natália foi respeitada e ridicularizada com igual convicção. Depois da sua
morte, lembro-me das palavras solidárias de David Mourão-Ferreira e Manuel
Alegre, enaltecendo no Parlamento a memória da "feiticeira cotovia".
De resto, a generalidade dos companheiros de geração olhou para o lado, numa
reserva que traduz o preconceito da intelligentsia contra a autora
de Mátria. (…)
Poeta,
ensaísta, dramaturga, ficcionista, estudiosa de cantares galego-portugueses, da
tradição erótica e satírica, do barroco, do surrealismo, de certas vertentes do
oculto, e de outros assinalados domínios (...), Natália foi uma vítima do
obscurantismo soez dos ominosos tempos da ditadura, mas, ironia suprema, a
democracia foi-lhe fatal.
Eduardo
Pitta, "Entre o perfume e a morte”, in Comenda de Fogo, Ed.
Círculo de Leitores, 2001
*
"Senhora
da Rosa", chamou-lhe Manuel Alegre e falava de Natália Correia
SENHORA
DA ROSA, chamou-lhe Manuel Alegre e falava de Natália Correia. Uma rosa de amor
e morte de uma poetisa que não aceitava a ditadura da razão e da perceção
redutora dos cinco sentidos. Ela era mais do que isso, era a pitonisa, a vestal
iluminada, uma máquina de passar vidro colorido, como disse Mário Cesariny,
referindo-se à sua dimensão cromática.
“A
Natália era um daqueles seres muito raros que vêm do futuro, que vêm adiantados
ao tempo, que não cabem no tempo, nem no espaço, nem no corpo, nem nos comportamentos
que nos estão destinados. Ela ultrapassava, extravasava tudo isso.” –
depoimento de Fernando Dacosta em “A Senhora da Rosa (Natália Correia)”,
um documentário realizado
por Teresa Tomé para a RTP-Açores, em 1999, que nos leva ao encontro de Natália
Correia, seguindo um caminho que ela própria traçou - A partir de agora, se
alguém me quiser encontrar, procure-me entre o riso e a paixão.